A despedida simbólica de um grande senhor do vinho

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Fernando Guedes ainda olha o Mateus como a criação pródiga da família, mas na sua gestão a Sogrape tornou-se global

Fernando Guedes escolheu um tinto monumental para celebrar o seu legado. Com ele, a Sogrape deixou de ser só Mateus Rosé. Manuel Carvalho (texto) e Nelson Garrido (fotos)

Na noite em que apresentou o seu legado simbólico às novas gerações da família, Fernando Guedes decidiu escrever um discurso. Não tanto por ter medo de se dispersar com a emoção, mas porque, avisou depois, tinha medo de deixar no esquecimento qualquer pormenor das suas memórias, os detalhes da sua mensagem. Afinal, 60 anos de vida na Sogrape é tempo suficiente para reunir um acervo de histórias, de saberes, de experiências, de afectos, difícil de encaixar em poucos minutos de discurso. O que queria, afinal, dizer o patriarca, hoje com 81 anos? Três ideias simples: que na Sogrape há uma cultura a conservar; que a visão global que levou a empresa à Nova Zelândia ou ao Chile é uma base para o futuro; e que se sente confortável por saber que as novas gerações da serão capazes de levar o barco a bom porto.

Fernando Guedes podia ter proclamado o seu legado numa cerimónia lustrosa, mas preferiu fazê-lo com um extraordinário vinho do Douro. Percebe-se. Afinal, o que estava em causa não era um adeus liminar. Ele é ainda o incontestado presidente da holding Sogrape. O que estava em causa era antes a intenção de simbolizar o laço geracional na Sogrape. Ainda que os Guedes detenham "apenas" 56% do capital da empresa, e por muito que Joe Berardo continue a manter uma posição incómoda de 31,5% , a Sogrape é, desde 1942 até hoje, uma façanha dos Guedes. Do pai de Fernando, que a fundou, dele próprio, que a consolidou, dos seus filhos Salvador, Manuel e Fernando, que a internacionalizaram. E agora também de Mafalda, a quarta geração.

O que liga todas estas gerações, além do nome é pois "a tradição", diz Fernando Guedes, mas poderia também ter dito o rasgo, ou a inovação. Fernando Van Zeller Guedes, o fundador, tinha trabalhado durante 20 anos numa empresa do vinho do Porto, a Martinez Gassiot, e era normal que tivesse optado por este sector quando reuniu capital de 30 amigos para lançar a companhia em plena Guerra Mundial. "Mas o meu pai nunca mais se interessou por esse sector", diz Fernando Guedes. Deixou-se levar pela ideia de um vinho revolucionário: o Mateus.

Quando Fernando Guedes entrou na Sogrape, em 1952, a empresa lutava ainda contra a lenta recuperação do pós-guerra ou com a crise do Brasil. Mas quando regressou de Dijon, onde fora estudar enologia, em 1956, viam-se já os sinais do sucesso meteórico dos próximos 25 anos. Combinando marketing e irreverência, o Mateus tornou-se um fenómeno. Elton John foi um dos seus devotos, uma foto mostra o ídolo do rock Jimmy Hendrix a bebê-lo com razoável sofreguidão. No final dos anos 1970 a Sogrape vendia 50 milhões de garrafas por ano de Mateus (hoje vendem-se 14 milhões).

Fernando Guedes chegaria à administração da Sogrape em 1969, no auge do boom. Ao contrário do pai, interessava-lhe mais o vinho e a adega do que o comércio. Ainda hoje fala com mais enlevo das vinhas do que dos mercados. Mas aprendeu com o pai a importância de ser duro nas negociações duras. Como as que a família manteve com o conde de Mangualde, dono do solar de Mateus, que fez o pior negócio do mundo ao recusar uma comissão de 20 centavos por cada garrafa de vendida. JEm 1980, o pai enfrentou uma cisão no núcleo familiar e accionista, com uma parte a querer vender a empresa à multinacional Whitbread e Fernando Van Zeller Guedes e a outra parte, o grupo do Porto, a recusar essa saída. O primeiro-ministro, Sá Carneiro, deu uma ajuda, barrou a venda da Sogrape a estrangeiros e os Guedes tornaram-se maioritários.

Após o falecimento do fundador, em 1987, Fernando toma as rédeas do negócio e a Sogrape entra num fulminante processo de crescimento. As vendas de Mateus estavam a desacelerar e era importante encontrar alternativas. Nesse mesmo ano, a emblemática Ferreira é adquirida. Além de um campeão de vendas, a Sogrape inclui no seu portefólio grandes vinhos do Porto, quintas durienses e a marca clássica dos grandes tintos nacionais, a Barca Velha. Depois, o processo não pára: Carvalhais, no Dão, é adquirida em 1988, a Herdade do Peso, no Alentejo, no ano seguinte; em 1995 a Offley Forrester. Após o fracasso na tentativa de compra da Aveleda, que estava nas mãos no ramo da família que saíra da Sogrape na crise accionista de 1980, surge um novo fôlego: em 2001 a Sandeman junta-se ao grupo.

Obra em porto seguro

Já sob a égide da terceira geração, a empresa aventura-se além-mar. Na Argentina, compra da Finca Flichman, em 1997; na Nova Zelândia, a Framingham, em 2007; no ano seguinte, Los Boldos, no Chile. Actualmente, estas empresas valem já 15% do volume de negócios, que ronda os 190 milhões de euros (de longe a maior empresa do sector). Salvador Guedes, o rosto executivo da Sogrape, admite que, no futuro a empresa seja maior lá fora que cá dentro.

De todas estas operações, Fernando Guedes só não visitou a neozelandesa. A neta, Mafalda, vai à Argentina e ao Chile pela primeira vez em Abril. O patriarca dá vazão à paixão e não esconde a vaidade ao falar das vinhas nas cordilheiras andinas, da frescura dos brancos neozelandeses. Mafalda começou na área da distribuição mas cedo quis ir para a área dos vinhos, que considera muito "mais apelativa". Aos quatro anos, fez uma redacção na qual dizia querer trabalhar com o avô na Sogrape e, depois de estudar gestão em Inglaterra, lá está. Agora faz uma pós-graduação em enologia. Com o pai mais metido na parte comercial e financeira, Mafalda talvez venha a ser na Sogrape o que o avô representou face ao fundador.

Com três gerações a bordo, a Sogrape é uma empresa com uma gestão agressiva, moderna, que explora oportunidades de negócio e reage intempestivamente a ameaças ao seu núcleo accionista - aconteceu em 1980 com a proposta da Whitbread, aconteceu com a compra hostil de 31,5% do capital por Joe Berardo. Mas é uma gestão que sabe de vinho, que identifica castas, que distingue terroirs, que sabe o que valem técnicos da craveira de António Graça e Luís Sottomayor, Manuel Vieira ou Manuel Pessanha.

Olhando o seu legado, Fernando Guedes sente uma ponta de emoção. "Tenho imenso gosto em ver a nova geração interessada na Sogrape", diz". Legado firmado, Fernando Guedes não descansa. Vai diariamente às salas de prova ou às adegas, (o seu "amor antigo") prova vinhos, opina, discute, propõe. Mas fá-lo sem stress. A sua obra está em porto seguro. E a caminho já vem a quinta geração. Em breve será bisavô. "Deus queira que seja menino."

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