Portugal, passado, presente e futuro

Em Alma, o texto de Gil Vicente cruza-se com alguns dos seus herdeiros: Vitorino Nemésio, Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoaes.

Quando, em 2009, Nuno Carinhas montou o Breve Sumário da História de Deus no TNSJ, o português passado de Gil Vicente acabou cruzado com o português futuro de Ruy Belo - não porque o texto original fosse "insuficiente", mas como "gesto de aproximação", para sublinhar que o que Vicente escreveu no século XVI não nos é assim tão estranho. Quando se tratou de olhar para o Auto da Alma (1518), o encenador deu a Pedro Sobrado, que co-assina a dramaturgia do espectáculo, liberdade total para procurar autores que, sendo exteriores ao texto original, pudessem parecer carne da carne dele. E foi assim que, depois de ter andado por muitos outros caminhos, Alma foi parar a Vitorino Nemésio (A minha voz e Prece), Guerra Junqueiro (A lágrima) e Teixeira de Pascoaes (A minha aldeia).

É um salto arriscado - quatro séculos em menos de uma hora. Em sua defesa, Pedro Sobrado cita Nemésio, "que avança a tese curiosa de que uma boa porção dos valores vicentinos só foi desenvolvida e avivada na literatura portuguesa dos séculos XIX e XX". Foi, explica, "um processo muito espontâneo de tentativa e erro", mas há de facto proximidade entre Vicente, Nemésio, Junqueiro e Pascoaes, como se estes três últimos constituíssem "uma escola vicentina extemporânea": "O Nemésio tem um património vocabular extremamente vicentino. O Junqueiro partilha com o Vicente uma tensão muito fecunda entre o sarcasmo e a piedade. E, tal como o Vicente, o Pascoaes é um homem de um só lugar, e por isso mesmo universal".

Para os fazer entrar no texto, Nuno Carinhas inventou uma personagem, o Peregrino (Miguel Loureiro, que já tinha sido o Job de Breve Sumário da História de Deus): espectador interno, duplo da Alma, comentador, mestre de cerimónias, é ele que abre, com Nemésio ("Vamos a ver se te levanto/ com estas palavras escuras/ que são a luz do meu canto/ vamos a ver se pode ser"), e que encerra, com Pascoaes ("Vede! Jesus lá vai, ao sol de Portugal!") o ritual. Que é o ritual do teatro (e do teatro dentro do teatro, tão querido de Nuno Carinhas), mas também o ritual da Eucaristia, na cena, crucial (e eventualmente blasfema), da chegada da Alma à pousada da Madre Igreja - que, uma vez mais, Nuno Carinhas põe a fazer reverb em Junqueiro (A lágrima) e Nemésio (Prece).

Que Alma acabe na paisagem tão irremediavelmente portuguesa de uma Páscoa na aldeia, com Cristo no andor e rosmaninho e alecrim pelo chão, é mais um programa estético ("Há um Vicente poeta que se exponencia nestes textos. Às vezes quase que antecipa a lírica de Camões de forma muito clara", argumenta Carinhas) do que um programa moral para estes tempos em que "estamos precisamente confrontados com a doutrina da pobreza". A vida, no século XVI como no século XXI, pode ser uma via sacra. Mas com ou sem recessão aqui na aldeia não haverá Páscoa, não haverá Verão, em que não lancemos os foguetes (as canas apanhamos depois).

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