Sensibilidade em bruto

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André Cepeda

Os Wraygunn sempre representaram o lado insaciável do rock'n'roll, Mas em L'Art Brut, a capacidade explosiva é acompanhada de um desejo de subtileza. Paulo Furtado explica porquê

A entrevista está a chegar ao fim. Falámos dos Wraygunn que regressaram aos discos cinco anos depois de Shangri-La, falámos de doo-wop e de "tangos em contra-senso". Passámos pela Arte Bruta, vertida em título do novo álbum, L'Art Brut, para a ouvirmos definida como a "busca do Paraíso". Ouvimos falar da música dos Wraygunn como existindo numa "bolha" onde os músicos se isolam para criar isto que lhes ouvimos e que é o espírito do rock'n'roll transportado (e transformado) pela idiossincrasia dos homens e mulheres que formam a banda. A entrevista está a chegar ao fim e Paulo Furtado, vocalista, guitarrista e principal compositor, sorri de espanto.

Perguntámos-lhe qualquer coisa sobre os 13 anos que já passaram desde que esta banda começou a ser banda, esta banda que é já presença obrigatória na história rock cá da terra e Furtado pára: "Só agora é que me apercebi que são 13 anos, o que é um bocado assustador..." Mas Furtado não demora o olhar no horizonte enquanto vê passarem-lhe pelos olhos os momentos mais marcantes dessa quase década e meia. "Estou feliz por chegarmos a este álbum e continuarmos a fazer música. Por estarmos ansiosos e expectantes para ver como as pessoas vão reagir a isto e se estarão nos concertos." Treze anos, um EP e quatro álbuns depois, gosta que a banda se sinta "como se fosse o início". "Será possível daqui a dez anos sentir esta ansiedade e este prazer em ter uma banda? Não sei, mas isso não é importante. É importante que o tenhamos agora".

L'Art Brut, que chega às lojas na segunda-feira, teve um nascimento demorado. Entre ele e Shangri-La houve Femina, o álbum mais ambicioso e mais bem-sucedido de Legendary Tigerman, e Furtado andou anos a mostrá-lo mundo fora - e, pelo meio, o colapso da produtora que os agenciava em França, onde eram nome firmado desde Eclesiastes 1.11, o segundo álbum, fez com que perdessem o momento e tivessem que recomeçar tudo de novo. Em França, regressarão a Abril para uma digressão. Por cá, há concertos já este mês: dia 17 no Lux, Lisboa; dia 22 no Teatro Académico Gil Vicente, Coimbra; no dia seguinte na ACERT, Tondela; a 24 no Hard Club, Porto.

Viver as canções

Entre as primeiras sessões de L'Art Brut, mero recolher de ideias, e as segundas, que serviram para montar o esqueleto do disco, passou-se um ano e meio. Em nenhuma delas, e isto aconteceu pela primeira vez, havia uma ideia clara do que ele seria. "Normalmente fica muita coisa em aberto, mas tenho noção do que quero fazer e de como lá chegar". Em L'Art Brut, só com as canções em cima da mesa e preparadas para serem misturadas é que o álbum se revelou verdadeiramente. "Foi construído como colagem", descreve Furtado.

E que é ele? É um álbum que será "dos mais fáceis de tocar em concerto, porque é simples e directo, quase todo gravado ‘live' no estúdio". Um álbum em que Furtado trouxe para os Wraygunn algo que ambicionava há muito: "o doo-wop está muito presente, quer nas vozes, quer nos teclados que por vezes parecem funcionar como coros". Um álbum de uma banda que é "a reunião destas pessoas e das suas idiossincrasias", e que não anda atrás "de nenhum som, de nenhuma moda que esteja a acontecer": "Às vezes parece que habitamos uma bolha, fechados naquilo que fazemos juntos". Não se confunda isto com autismo. Os Wraygunn, gente versada e sabedora do rock'n'roll e seus afluentes, preferem aproveitar aquilo que floresce quando se juntam a controlar demasiado a situação. O seu som nasce de pormenores como bastar a banda distrair-se um segundo para que o baixista Sérgio Cardoso comece a tocar umas linhas de dub ou de, por exemplo, o percussionista João Doce ser homem exuberante que aprecia puxar o grupo para luxúrias rítmicas mais agressivas - Pedro Pinto, o baterista, não hesita em seguir o andamento. O som, este som, nasce de terem nas vocalistas Raquel Ralha e Selma Uamusse duas vozes "determinantes": "A forma como cantam são um equilíbrio perfeito para a agressividade das guitarras e mesmo para o lado mais rude da minha voz".

Não surpreende, portanto, que Furtado não refira acordes, arranjos ou "estilos" quando nos fala dos Wraygunn. "Temos que viver as canções. E vivê-las, no nosso caso, implica que quase não toquemos. Quase não tocar na guitarra, quase não cantar. E depois explodir. Temos que perceber do que é que as músicas precisam. Não penso se estou a fazer um tango. Penso como gerir o ambiente e as tensões da canção".

O novo paraíso

Os Wraygunn sempre foram transposição para palco e disco do lado insaciável do rock'n'roll, dos mistérios do blues ou da capacidade "epifânica" da soul. Assim em Soul Jam, o primeiro álbum, assim em Eclesiastes 1.11, o disco da explosão em Portugal e do entusiasmo em França, onde gerou títulos na imprensa apontando à descoberta de um novo e excitante país que os franceses desconheciam - tudo à volta da ideia "Portugal depois da mala de cartão".

L'Art Brut, ao contrário do que o título indica, é o disco em que a capacidade explosiva dos Wraygunn é acompanhada de um desejo de subtileza - o primeiro single, a balada de inocência 50s Don't you wanna dance? não surge por acaso. É uma banda a descobrir uma nova natureza para a sua inspiração: "Conseguimos uma delicadeza que antes não conseguíamos alcançar e pode ser estranho fazer um disco com tantas canções calmas, mas conseguimos ir [musicalmente] a sítios onde nunca fôramos anteriormente. E só enquanto conseguirmos fazê-lo é que valerá a pena estarmos artisticamente juntos." A repetição não é uma hipótese. "O dia em que não conseguirmos mais que o que fizemos no passado será o dia em que não haverá mais Wraygunn", acentua Furtado.

E como se liga tudo isto, esse desejo de sensibilidade e a atenção ao detalhe, com a expressão que se destaca na capa do álbum, L'Art Brut? "A Arte Bruta é um refúgio bonito, como que a busca do Paraíso: podemos não conseguir chegar lá mas essa procura espontânea, e honestidade, esse desligar das expectativas exteriores e a vontade de reinvenção é uma inspiração".

L'Art Brut, álbum dos Wraygunn que, apesar das diferenças óbvias, reconhecemos imediatamente como obra dos seus autores (essa marca identitária está lá), é obra de uma banda que, ri-se Furtado, "não é uma ditadura, mas também não é uma democracia" - "as pessoas acreditam que eu faço bem e eu faço o melhor possível, portanto há sempre alguma ordem dentro do caos".

Entre as canções assinadas por Furtado ou o par assinado por Raquel Ralha descobre-se, ultrapassado o rock'n'roll em forma de manifesto chamado I'm for real, a última canção, aterramos num extra inesperado. Os Wraygunn em modo homenagem. Cheree, dos Suicide, em cadência lenta, hipnótica, eléctrica. Furtado explica que a banda há muito queria fazer uma versão da banda de Ghost rider. O minimalismo rock'n'roll do duo Martin Rev e Alan Vega, criado com caixa de ritmos e sintetizadores, é referência marcante e Cheree uma das canções preferidas de vários dos Wraygunn. Já tinham tentado abordar os Suicide, mas acabavam sempre com a sensação "o que traz isto de novo à história desta música?" A redundância horroriza e o tépido "não está malzinho" é coisa abominável. Mas desta vez, eles sentiram que a sua Cheree merecia ser gravada. Tal como sentiram que uma renovada sensibilidade e atenuar a efervescência rock não diminuiria o impacto. Estavam cobertos de razão.

Os Wraygunn estão de volta. Um novo começo. Recomeço. 13 anos depois e mais um passo em frente. Sempre como antes. Mas não exactamente.

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