Um assassínio doce, por Todd Solondz

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"É o meu filme doce", reconheceu Solondz DR

Sem pedofilia, sem masturbação, sem violação. Mas em tudo o resto um filme de Todd Solondz. Destruindo, com doçura, a comédia americana que celebra o "macho criança"

Dark Horse: é o cavalo que corre de fora, o outsider que pode vencer. E que provavelmente não vencerá. 

Abe (Jordan Gelber) é um dark horse, isso os pais (Mia Farrow e Christopher Walken) já o sabem, mesmo se na banda sonora da sua vida os refrões incentivam: "Reach out for more". Homem feito, continua agarrado ao cubo mágico e às colecções de infância. Sinal de que foi a infância que o coleccionou. 

Miranda (Selma Blair) esta agarrada aos antidepressivos. Chegará o dia em que vai decidir desistir da esperança e do amor-próprio (e da carreira literária) e aceitar a proposta de Abe: casamento e filhos. Olhemos para a máscara de apatia de Miranda e para o incompreensível optimismo de Abe: podiam ser mais Todd Solondz? Não. 

O cinema do realizador de Welcome to the Dolhouse (1995) anda há anos a fazer reduções e ampliações à volta do mesmo. Criando entorses na perspectiva, criando com isso pequenos "monstros" - Storytelling, de 2001, ou Palindromes, de 2004 - ou respeitando o molde e experimentando acelerar ou desacelerar - Life During Wartime, em 2006, prémio do argumento na 66.ª edição de Veneza, e filme catatónico. Esta última experiência produtiva tera sido difícil, apesar de o filme ter sido bem recebido pela crítica, e corre que o realizador de Newark terá pensado desistir. Dark Horse(concurso), por isso, teria que ser diferente. Sendo, claro, igual. Como ele disse: o desafio era fazer um filme sem violação, sem pedofilia e sem masturbação. É uma possibilidade que Solondz se dá a si próprio de dar novas possibilidades às personagens. Na tensão entre empatia e ironia que existe neste cinema, nunca se sabendo onde é que se está, Dark Horse encontrou um (outro) ponto justo. Abrindo-se, por exemplo, ao universo interior das personagens - a intromissão do onirismo é assinalável, é através dele que a perspectiva sobre as personagens se complexifica e se torna mais melancólica, e é através dele que o filme dá a entender que o cineasta Solondz está em movimento. "É o meu filme doce", reconheceu, naquela forma dolorosa de verbalizar o pensamento. Ted Hope, o produtor, que verbaliza com mais prontidão (por isso é produtor), perspectivou assim Dark Horse: se o cinema independente é uma forma de oposição ao mainstream de Hollywood, o filme de Solondz é um genre-killer, e o género que acaba de ser assassinado - com doçura - é a comédia americana que celebra o "macho-criança".

Sobre a dignidade de olhar para as pessoas comuns, Ann Hui, de 64 anos, uma das figuras da "Nova Vaga de Hong Kong" dos anos 80, terá coisas a ensinar. O seu olhar é tão discreto, sempre a pedir licença, como a sua carreira, entre a TV e o cinema. A Simple Life (competição) é mais uma crónica da vida das pessoas normais em Hong Kong, no caso uma velha senhora que durante 60 anos serviu uma familia... Depois, AVC, lar... Sim, está entre o "caso da vida" e a crónica do quotidiano, o que reduz o fôlego (o filme está em transição para o telefilme). Mas sempre o olhar à altura das pessoas - e o manter a fasquia elevada dentro do registo menor é uma prova de generosidade.

O que não é a mesma coisa que o filme "bem intencionado". Esse será o caso deTerraferma, de Emanuele Crialese (concurso), que pega no tema da imigraçao clandestina ("esta espécie de Holocausto que acontece no mar", disse o realizador) com as luvas das boas intenções. Uma ilha siciliana confronta-se com o aparecimento de clandestinos africanos, o que gera tensões entre o "velho" e o "novo". A retórica de Crialese - que diz que o público ideal para o filme é o espectador de oito anos - é de facto infantil. Cinematograficamente, aliás, este realizador faz versões pequenas - o seuNuovomundo, Leão de Prata na 63.ª edição de Veneza, era um Era Uma vez na América para pequeninos (cineastas). 

Uma versão adulta do tema, e algo mais próximo de um questionamento, apareceu emThe Invader, longa-metragem do "artista visual" Nicolas Provost (Horizontes). O "invasor" é o imigrante africano, que dá à costa europeia. Provost filma o actor Issaka Sawadogo como presença erótica que perturba quem com ele se cruza (e, portanto, também o espectador), mostrando o filme o tráfico de uma série de expectativas e preconceitos. O desejo como denominador - desde a (excessivamente) celebrada sequência inicial, em que a câmara enquadra a vulva de uma naturista na praia (citando a pintura L"Origine du Monde, de Courbet) que se levanta em direcção aos corpos que começam a dar à costa. 

The Invader começa por invadir o território de realismo e personagens acossadas dos belgas Dardenne, fazendo-o, aliás, com artificialismo, redundância e clichés figurativos. Mas Issaka Sawadogo progressivamente toma conta do filme. E quando esse corpo ocupa todo o espaço - a nudez masculina final no lugar da nudez feminia inicial - The Invader conquista também qualquer coisa para si. Ja Tinkert, Tailor, Soldier, Spy(concurso), adaptação da obra de John le Carré, que teve a bênção (e elogios) do autor, por Thomas Alfredson, com Gary Oldman a fazer o espião George Smiley, nos pareceu um filme tão exausto como a Guerra Fria. Acompanhe Vasco Câmara em Veneza em

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