Costa negociou protocolo com a Estamo sem nada dizer à câmara

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St. António dos Capuchos está entre os hospitais a serem encerrados NUNO FERREIRA SANTOS

Mais de 30 hectares de terrenos públicos poderão ser urbanizados. Câmara garantiu quatro imóveis para o município. Oposição nada sabe

O presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, assinou em Maio do ano passado um protocolo com a Estamo, imobiliária de capitais exclusivamente públicos, que abre as portas, ainda que indirectamente, à aprovação de dez grandes projectos imobiliários, parte dos quais aquela empresa não conseguiu viabilizar no passado. Ao mesmo tempo, o município assegurou a cedência pela Estamo de quatro dos seus imóveis para escolas e equipamentos públicos.

O protocolo, cuja existência era até agora desconhecida de todos os vereadores da oposição, não consagra, nem a lei o permite, o compromisso camarário de aprovação dos projectos da Estamo em troca dos imóveis pretendidos pelo município. O que o documento prevê é que à medida que a câmara for licenciando as urbanizações da empresa, esta lhe transmita aqueles imóveis, a título de "pagamento em espécies das compensações legalmente devidas", nomeadamente taxas relativas às infra- -estruturas dos empreendimentos.

Imóveis reservados

Caso a autarquia pretenda entrar na posse de alguns desses espaços antes da aprovação dos projectos da Estamo, a sua cedência ficará dependente da celebração prévia de um contrato entre as partes. É isso que deverá acontecer, em data ainda desconhecida, com o antigo Convento do Desagravo, junto à Feira da Ladra, onde a autarquia quer começar a construir várias escolas ainda este ano. Em termos de compromissos concretos, apenas a Estamo assume a obrigação de "não dispor" dos quatro imóveis destinados à câmara até Maio de 2014 - "ou até que o município decida se pretende adquirir a sua propriedade por via do pagamento em espécie" das compensações devidas pela aprovação municipal dos empreendimentos da empresa.

A viabilização destes projectos, diz o texto do acordo, "depende da aprovação de planos municipais" e de outros instrumentos de ordenamento, entre os quais avulta o Plano Director Municipal (PDM). Na altura em que o protocolo foi assinado, 27 de Maio de 2011, o processo de revisão do actual PDM - que impede a aprovação da maior parte dos projectos da Estamo - estava praticamente concluído, tendo a sua discussão pública sido concluída uma semana antes.

A versão saída dessa revisão, em que algumas das pretensões da Estamo não foram contempladas, aguarda ainda aprovação na Assembleia Municipal, mas permite a concretização de todos os dez projectos previstos no protocolo. Para efeitos de acerto de contas entre as partes, os imóveis que passarão para a propriedade do município, em troca das taxas que lhe forem devidas pela Estamo, serão contabilizados pelo valor que possuem nas contas da Estamo, "atento o fim público a que se destinam".

O Convento do Desagravo possui assim um valor de oito milhões de euros. As outras parcelas a ceder à autarquia são o Quartel do Cabeço da Bola (8,2 milhões), onde ainda está instalada a GNR e a câmara quer fazer escolas, em frente ao Hospital da Estefânia; os edifícios da Av. 24 de Julho (sete milhões) onde funcionou até há cerca de um ano a Direcção- -Geral da Administração Pública e que a autarquia pretende demolir para criar um largo integrado no conjunto do projectado Centro Cultural África.cont.; e o Complexo Desportivo da Lapa, na Rua Almeida Brandão (10,2 milhões). Neste último espaço, a Estamo ainda tentou que o novo PDM permitisse a construção de edifícios, mas, segundo o presidente da empresa, Francisco Cal, a câmara recusou- -se a retirar-lhe o uso desportivo.

O complexo pertencia ao Instituto do Desporto de Portugal antes de ser adquirido pela Estamo com o mesmo objectivo com que adquiriu todos os imóveis de que é proprietária: revendê-los a privados por um valor muito superior, gerando assim receitas para o Estado, seu único accionista. Logo que o Instituto do Desporto se retire do local, a Estamo deverá contratualizar a sua gestão com a câmara, independentemente da sua futura integração no património municipal.

Os dez projectos da Estamo

Nos termos do protocolo, o município reconhece a "relevância para o desenvolvimento da cidade" dos projectos que a empresa tem em preparação e compromete-se a "cooperar para a sua concretização". Para lá da urbanização de dois terrenos com um total de mais de 10,3 hectares, junto ao Lar Maria Droste (Segunda Circular) e na Av. Alfredo Bensaúde, o documento refere os projectos a construir na Av. de Berna (onde está a Universidade Nova) e nos terrenos da Penitenciária. No caso da Segunda Circular, a Estamo poderá vir a reforçar a capacidade construtiva que o PDM atribui aos seus terrenos, adicionando-lhe os direitos de construção de uma parcela camarária contígua, que poderão servir para pagamento do Convento do Desagravo.

Além destes projectos, o novo PDM permite a construção nos cinco hospitais e no Convento de Santa Joana (Rua de Santa Marta), de que a empresa é proprietária no centro de Lisboa. Dois deles já estão desactivados (Miguel Bombarda e Desterro) e os outros três (São José, Santa Marta e Capuchos) deverão ser encerrados quando for construída a nova unidade hospitalar prevista para Chelas. A urbanização destes recintos terá, porém, de se submeter às condicionantes ditadas pela existência de imóveis classificados no seu interior. A solução para todos eles está a ser estudada pela câmara e pela Estamo numa perspectiva de conjunto, que deverá dar origem ao projecto designado por Colina de Santana, que o município ainda não tornou público.

Câmara recusou protocolo

A existência do protocolo entre a câmara e a empresa nunca foi objecto de nenhuma informação por parte do executivo camarário e era desconhecida até quarta-feira passada. Na reunião da vereação desse dia, em resposta a uma pergunta do PCP, o vice-presidente da câmara, Manuel Salgado, fez-lhe uma referência superficial, causando a surpresa da oposição. Um eleito do PSD, Victor Gonçalves, pediu então que o documento fosse distribuído aos vereadores, mas não obteve resposta. Ao PÚBLICO, o social-democrata disse achar "inadmissível" que o presidente da câmara assuma compromissos desta importância "sem eles serem discutidos ou ratificados" pela vereação. No mesmo sentido se pronunciou Rúben Carvalho, do PCP, que também desconhecia o texto e que considerou "inquestionável" que ele devia ter sido discutido na câmara. Tanto mais, frisou, que "as relações entre a Estamo e o município em matéria imobiliária são das coisas que mais discussão têm dado na câmara ao longo dos anos". António Carlos Monteiro (CDS) afirmou, por seu lado, que "estranhava" a existência de um acordo deste género. "Temos as maiores reservas quanto a protocolos assinados sem irem a reunião de câmara, mesmo que sejam com o Estado", sublinhou.

O PÚBLICO pediu ao gabinete de António Costa que lhe fosse fornecida uma cópia do acordo e fez várias perguntas sobre o assunto. A resposta dada através do Departamento de Comunicação foi a seguinte: "A câmara declinou entregar o documento e responder às perguntas colocadas."

Ocasionalmente, todavia, o PÚBLICO descobriu o documento, perdido entre dezenas de contratos e protocolos subscritos pelo município nos últimos anos e arquivado no site da autarquia.

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