Dermatologia e resistência silenciosa
Debate Acordo ortográfico
Depois, a escrita não reproduz fielmente a fala, como sugere a metáfora tantas vezes repetida de que "ela é a roupagem da língua oral". Ela tem as suas leis próprias e tem um caminho próprio.
Joaquim Mattoso Camara Jr., Estrutura da Língua Portuguesa, Petrópolis, Vozes, 2009 [1970], p. 20.
Como seria a nossa vida se tivéssemos de raciocinar letra a letra para descodificar as palavras?
Nuno Crato, O "Eduquês" em Discurso Directo, Lisboa, Gradiva, 2011 [2006], p. 103.
1. Todos os dias, ao final da tarde, ocorre um fenómeno a oeste, ao qual, sem sombra de estupefacção, continuamos a atribuir o nome de pôr do Sol. O nome dado ao fenómeno, consequência da nossa percepção em contemplação pura do horizonte, não é corroborado pela actual acepção do movimento dos corpos celestes. Desde que Galileu, em resistência murmurada, mas não silenciosa, terá pronunciado eppur si muove, conceptualmente, o pôr do Sol lá foi deixando de existir. Alguns séculos mais tarde, mais propriamente em Junho do ano passado, saiu do prelo o manual Saber Usar a Nova Ortografia, de Edite Estrela, Maria José Leitão e Maria Almira Soares, cujos segmentos de recapitulação histórica (pp. 18-27) e de carácter substantivo (pp. 29-226) me merecem comentários, mas, por evidentes limitações de espaço para apreciação justa e recta, não serão hoje objecto de análise.
Interessa-me, por ora, rebater exclusivamente a vertente conceptual do livro de Estrela, Leitão & Soares, traçada no lapidar "a ortografia não é mais do que a aparência da língua, a sua pele" (p. 14), uma reiteração de ideia já enunciada pela primeira Autora, na página 18 do livro A Questão Ortográfica, de 1993, encontrando-se agora a frase despojada do remate original "e por isso de importância secundária".
Qualquer redução do conceito ortografia ao papel de actriz secundária é inexacta e desprovida de sentido em sociedades em que a escrita influencia e domina aspectos essenciais do quotidiano. Desde o final dos anos 70 do século passado, têm-se realizado estudos que consideram aspectos que não são devidamente considerados pelas Autoras: a influência da ortografia no conhecimento da língua e o primeiro contacto com determinadas palavras estabelecido através da escrita e não da oralidade. Sem entrar em pormenores (a bibliografia é extensa, pormenorizada e posso facultá-la), pensemos na diferença em termos de relação com a língua entre quem sabe ler e escrever e quem não sabe e na discriminação associada a esta dicotomia.
Na página 14 da obra em apreço, as Autoras sugerem que "as alterações do novo acordo ortográfico" vão no sentido de "reduzir ao mínimo o desacordo entre a palavra e a linguagem escrita" (in Maria Leonor Carvalhão Buescu, Gramáticos Portugueses do Século XVI, 1978, p. 29). Contudo, ao contrário do postulado das Autoras, o Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) não reduz, antes amplia, "o desacordo entre a palavra e a linguagem escrita". A base IX suprime acentos desambiguadores e a base IV elimina consoantes com valor de acento. Em português europeu, além de outros aspectos, também o grau de correspondência existente entre os planos escrito e oral é gravemente afectado pelo AO90.
Quanto ao "a ortogr