O verdadeiro carnaval

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1. Há uma teoria no Rio de Janeiro sobre o verdadeiro carnaval. De acordo com essa teoria, o verdadeiro carnaval é o dos blocos de rua, por oposição ao sambódromo. Porque sambódromo é para turista, para televisão, para a Jennifer Lopez. Porque sambódromo tem camarotes comprados por cervejeiras, painéis comprados por champôs, ecrãs comprados por operadores de telemóvel. Porque até os enredos agora podem ser comprados. Por exemplo, enredo sobre iogurte.

Verdade?

2. Verdade. O sambódromo está cheio de turistas: estão nas arquibancadas, a comer hambúrgueres, suando apopléticos por baixo da fantasia. O sambódromo brilha na televisão, exclusivo da TV Globo, e as estrelas saem directamente dos carros alegóricos para o estúdio ao vivo. O sambódromo recebeu Jennifer Lopez por duas horas e isso foi notícia em todo o mundo, incluindo destaque no site deste jornal. E por todas estas razões, porque tantos milhões estão a ver, todo o espaço no sambódromo é digno de patrocínio, até o enredo.

3. Mentira. Os turistas estão no sambódromo, como estão nos blocos, como estão na praia. É o Rio de Janeiro que está cada vez mais cheio de turistas e de dinheiro, para quem o ganha. E Jennifer Lopez só ganha a Paulinho da Viola na cobertura dos media porque os media destacam do sambódromo aquilo que acham que as pessoas mais querem, e portanto as pessoas vão querer mais Jennifer Lopez. Quanto aos enredos de iogurte, o sambódromo não é parvo. Viu-se onde foram parar: ao fundo da tabela.

4. Este foi o segundo carnaval que andei pelo sambódromo, fora e dentro, na pista e nas bancadas. Vi louras todas-silicone a posarem com estrelas quase calvas e para mim desconhecidas. Vi navios de sashimi passarem para os camarotes dos ricos, e bandejas de salgadinho, e chopinho. Vi os musculados, as gostosonas e aquele género de atiradiça a que os brasileiros chamam piriguete.

Mas tudo isso foi de passagem, a caminho da pista. Porque o que vi na pista foi aquele velho mulato de metro e meio dançar loucamente no meio da Bateria da Portela. E em frente dele, um rapaz que podia ser seu neto suava, suava, e não parava de cantar. E em volta, pretos e mulatos sacudiam chocalhos, batiam tamborins como se fosse o próprio coração, cantando até se acabarem e nunca se acabavam. E então veio aquela águia dourada trazendo Marisa Monte e Paulinho da Viola vestidos de branco. Não sei como era lá em cima, com eles, que abriam os braços e cantavam, cantavam, mas cá em baixo a gente chorava.

Velhas como múmias rodando com saias de baiana, eu vi. Pedras costuradas em cetim, seda vagabunda, imitação de veludo, papel crepe, papelão, eu vi. Fontes que jorravam água, dragões, tigres, cavalos, girafas. E igrejas de pelourinho, bonecos de barro, reis coroados.

Eu vi milhares de pessoas por escola dançando o momento de uma vida, pela primeira vez, pela última vez, mais uma vez. Isso era tão verdadeiro como verdadeiro pode ser. Isso era o carnaval para quem o carnaval é isso: entrega, tristeza dobrada em alegria.

Em suma, o sambódromo é Jennifer Lopez e é a costureira do Salgueiro, o carpinteiro da Unidos da Tijuca, o sambista da Império, o cantor da Mangueira. Cada um faz o seu sambódromo.

5. Cada um também faz o seu bloco. Este ano são mais de 400 registados, dia e noite, Zona Sul e Zona Norte, Centro, Tijuca, Barra, por todo o Rio de Janeiro ruas e avenidas cortadas com centenas, milhares, milhões, e tudo pode acontecer num bloco, ao som de tudo.

Uma amiga chegou exasperada porque simplesmente era gente de mais. Um amigo chegou exasperado porque simplesmente toda a gente estava bêbada, ou queria agarrar à bruta alguém para beijar, ou atirar latas de cerveja à polícia, ou montar na moto alheia, ou impedir o trânsito. Um bloco pode ser tudo isso, gente bêbada, atrás das árvores, homens e mulheres. A meio da semana a polícia já tinha detido 887 mijões. Quando estamos de sandálias e é Verão e faz tanto calor, não tem graça, é só sujo, cheira mal.

No aterro do Flamengo, vi gente a mijar, demasiado bêbada para ver mais alguma coisa, e, juro, vi fantasia de casa de banho de mulher: um rapaz de autoclismo nas costas e retrete na frente. E antes ainda de tudo isso vi a fantástica despedida da Orquestra Voadora. O bom e o mau no mesmo plano-sequência, como Paulinho da Viola e Jennifer Lopez.

E lá adiante, no murinho por trás do Museu de Arte Moderna, estava lindo o poente, água violeta, Pão de Açúcar ao fundo, mesmo real, dois rapazes de barba rija aos beijos na relva. Raro, nesta cidade em que tantos se acham, e até acham que não, imagina, não são machistas.

6. Então carnaval verdadeiro não tem. O que tem é carnaval quando tem, como naqueles menus: há quando houver. Ou como quando alguém nos beija: é bom, se for bom. Flores e parasitas sempre se misturam. Cada um olha para onde quer.

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