José Afonso é de todos e não pertence a ninguém

Sempre foi difícil vê-lo por inteiro, com a carga de símbolo da resistência a sobrepôr-se ao músico. 25 anos após a sua morte, continuamos a ver mais o homem político ou já vemos melhor o génio musical?

As iniciativas sucedem-se e continuarão a suceder-se. A data redonda potencia a homenagem. 25 anos. Um quarto de século sem José Afonso. Desde o início da semana decorre em Coimbra o ciclo Zeca Afonso - O rosto da utopia, que encerra hoje, no Café Santa Cruz, com uma tertúlia. Em Lisboa, a Associação José Afonso promove um espectáculo em que participarão Francisco Fanhais, Zeca Medeiros ou os Couple Coffee, na Academia de Santo Amaro, em Alcântara. E em Abril, a reactivada editora Orfeu iniciará a reedição da sua obra e em Braga, no Theatro Circo, o Canto D"Aqui celebra hoje e amanhã o legado de José Afonso e Adriano Correia de Oliveira, sobre cuja morte passam este ano três décadas.

Os espectáculos no Theatro Circo são obra de uma nova associação, chamada Amigos Maiores Que O Pensamento. A primeira frase do seu manifesto, exclamativa, é a seguinte: "Tempos de borrasca invadem-nos a alma!" E, em tempos de borrasca, continua o texto, precisamos do exemplo de Zeca e Adriano: "Há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não."

É um José Afonso militante, símbolo da revolução do 25 de Abril, que ali sobressai: órfãos dele, precisamos de resgatar o seu exemplo. Mas precisará José Afonso e a sua obra desse resgate? 25 anos após a morte, o que resiste? O que fica da sua música, o que fica da sua humanidade vida fora? Falamos com Vitorino, que com ele conviveu e dele tanto bebeu na sua formação, e ouvindo músicos de uma geração posterior, com Tiago Sousa, autor de música instrumental, na tangente entre o erudito e o improviso jazz, que, à primeira vista, poucos pontos de contacto terá com José Afonso, e com Pedro Silva Martins, compositor nos Deolinda, que descende directamente da sua tradição. Sobressai a complexidade de alguém que não pode ser compartimentado.

Simplificar José Afonso é diminuí-lo. Para o ver realmente temos que o abraçar na sua totalidade. Citamo-lo: "Às vezes apetece-me acordar a chamar-me, por exemplo, António Silva Fragata Qualquer-Coisa Smith, a viver numa situação diferente, noutra terra, e não me habituar à minha personalidade, pública ou privada. Mas isso é cada vez menos possível: a gente agarra-se a uma carcaça, à biografia que nos atribuem, e ficamos indissoluvelmente ligados a isso."

O que podia ter sido não é para aqui chamado. Não sabemos o que podia ter sido porque isso seria darmo-nos importância demasiada. Seria julgar que poderíamos continuar uma narrativa predefinida quando o homem independente que a construiu já não está entre nós.

O génio modesto

José Afonso morreu às três da madrugada de 23 de Fevereiro de 1987, em Setúbal, onde morava. O seu corpo cedeu por fim à esclerose lateral amiotrófica que o consumiu. Desaparecia aquele que será, porventura, o músico português mais importante do século XX. Desaparecia o génio modesto que foi cantor por, dizia ele, ter sido proibido de dar aulas durante o Estado Novo. Erguia a voz em denúncia das injustiças, desigualdades e atrocidades da ditadura (e das injustiças, desigualdades e atrocidades que se mantiveram em democracia) porque, muito simplesmente, um cidadão, seja ele cantor ou sapateiro, não pode fechar os olhos à realidade que o rodeia.

O que podia ter sido esse homem que contaria hoje 82 anos neste país e nesta Europa a viver uma profunda crise de tudo não é para aqui chamado. Não temos esse desplante. Para mais, quando há uma vida e a obra que a vida foi deixando com tamanha riqueza. Para mais, quando essa vida, biografada e recuperada a cada novo número redondo passado sobre a sua morte, continua a ser algo que não conseguimos abarcar totalmente.

José Afonso, nascido em Aveiro, descoberto cantor na Coimbra universitária, andarilho pelo Alentejo, pelo Algarve, pelo Douro ou pela Beira moçambicana, não é dado a simplificações. Não pode ser simplesmente o homem de cravo erguido cantando Grândola Vila Morena, não pode ser simplesmente o grande cantor que entoa Menino d"Oiro, oferecendo a canção à memória popular que não regista autoria. Perante a dificuldade em encarar o complexo, é fácil encontrar socorro no cliché. Mergulhando nos textos que se foram escrevendo até uma década após a sua morte, duas ideias surgem de forma recorrente. Que seria necessário passarem algumas gerações até conseguirmos olhá-lo de forma distanciada. Conseguiremos agora? Que era imprescindível recuperá-lo para as novas gerações, que já não o ouviam, que o desconheciam. Ouvirão agora?

Por inteiro

Vitorino, Tiago Sousa e Pedro Silva Martins são unânimes num ponto. José Afonso foi um marco absoluto na música portuguesa e deixou um legado inigualável. Vitorino começa por recordar a "ruptura" que fez em início de carreira num fado de Coimbra "que nunca mais evoluiu". Aponta como foi, depois, responsável pelo início do "internacionalismo ao nível da música", introduzindo "a música africana nas músicas ocidentais e dando pontapé de saída ao que se chama hoje world music". Pedro Silva Martins não tem dúvidas: José Afonso "inventou a música popular portuguesa". Teve a visão, "inédita até então", de, "experimentando e inovando, olhar para aquilo que é Portugal e que é a música portuguesa". E alcançar mais longe. Ou seja, pensar "o que poderia ser".

Numa carreira que se estendeu desde o final da década de 1950 até 1985, data da edição do seu último álbum Galinhas do Mato, José Afonso foi músico em evolução e ruptura constante. A voz, de um timbre impressionante, aliou-se a uma força poética que irrompeu desde cedo. A música, a partir do momento em que colabora com José Mário Branco, em Cantigas do Maio (1971), ganha uma inventividade inaudita, com a abertura a novos instrumentos, com a riqueza do surrealismo de raiz popular a transbordar das letras para a música. E, depois disso, há as experiências rítmicas que levam jazz a padrões rítmicos minhotos, há África, que o marcou profundamente, a tornar-se indiscutivelmente sua.

Neste músico que não era propriamente um instrumentista de excepção - "tocava guitarra ainda pior do que eu", sorri Vitorino -, tudo era vertido em música. "Era um homem extremamente culto nas Humanidades e tinha a fantasia delirante dos ibéricos, com paralelismo no realismo fantástico sul-americano", aponta o cantor alentejano.

Aquela erupção de criatividade foi fundamental para a eclosão de uma das mais criativas gerações que a música portuguesa conheceu, a de José Mário Branco, Sérgio Godinho ou Fausto. E, nessa erupção de criatividade, estava inscrito o homem empenhado politicamente. O opositor do regime salazarista que, por isso, deu com as costas na prisão por mais de uma vez e que, naturalmente, viu a sua música censurada. O símbolo da resistência ao fascismo e, mais tarde, a voz do sonho revolucionário saído do 25 de Abril.

Durante muito tempo, essa dimensão sobrepôs-se à do músico - era sempre do político que se falava quando se falava de ou com José Afonso. "Essas coisas tendem ser sobrevalorizadas", suspirava ele. Essas "coisas", diz hoje Pedro Silva Martins, começam a ser desmistificadas. "A questão política foi, para o bem e para o mal, uma cruz que o seu legado carregou durante não sei quantos anos. Na nossa geração, talvez porque não vivemos e estejamos mais afastados daquela euforia política, conseguimos olhar para a sua música no seu todo e com uma visão descomprometida".

Pedro Silva Martins não renega a relevância do comprometimento social no percurso de José Afonso, mas acentua que só podemos olhá-lo tendo em conta que "a personalidade artística pode ser independente da personalidade política". Acolhendo-o na totalidade, há todo um mundo para aproveitar. A abrangência da sua influência é prova disso mesmo.

Um deus

As reedições que a Orfeu iniciará em Abril com Cantares do Andarilho (1968) e Contos Velhos, Rumos Novos (1969), que prosseguirá em Maio com Traz Outro Amigo Também (1970) e Cantigas do Maio (1971) e que se estenderá até Fura Fura (1979) - há a possibilidade de Fados de Coimbra e Outras Canções (1981) ser também abrangido -, serão acompanhadas de textos escritos por músicos cujas carreiras se iniciaram após a morte de José Afonso. Reúnem nomes tão diversos quanto a fadista Cristina Branco, o nosso interlocutor Pedro Silva Martins ou o rapper Valete.

Recuando uns anos, recuperamos uma entrevista ao Ípsilon em que B Fachada, nome incontornável da canção portuguesa da actualidade, exclama algo que muito desagradaria a um homem nada dado a pedestais: "Zeca é um deus". Ao que acrescentou: "Mas é mais do que um deus interventivo, que isso não me traz grande efeito. A minha relação com ele é mesmo formal. Tem aquela coisa como letrista que praticamente não voltou a acontecer". Ouçamos então, de seguida, Tiago Sousa. O pianista, autor dos celebrados Insomnia ou Walden"s Pond Monk e que assinou uma versão de A formiga no carreiro em (Re)Intervenção, álbum de homenagem editado pela Orfeu em 2010, vê na obra de José Afonso uma intemporalidade temática que reflecte na perfeição a actualidade. "Liga-me a ele a preocupação de fazer da música não só um aparelho espectacular de entretenimento" mas uma força "que tenta transformar a realidade em que vivem as pessoas". Mantendo a independência do gesto: "Na minha opinião, o PCP absorveu-o para a sua narrativa, mas ceder a ela revela ignorância da obra. Como ele dizia "eu sou o meu próprio comité central"".

Vitorino recorda que com a morte de José Afonso se perdeu alguém que era um "aglutinador de amigos", com quem se aprendia através do quotidiano, "naquele humor entre o Coimbrão e o surreal" que se manifestou até ao fim. "Tinha a capacidade de marchar ao lado do enterro." E discorda com veemência dos que afirmam que a política em José Afonso obscurece o seu génio musical: "Sabe o que é que apaga o génio musical? É quererem pô-lo no cantinho do cantor. As ideias de esquerda são muito atacadas em Portugal porque o país é conservador, com uma direita sempre muito corrosiva e com poder nas unhas. Há um sentido redutor da sua obra por ele ser um homem da esquerda humanista que nunca se deixou embrulhar em partidos. Era, como todos nós, um homem com o coração à esquerda. Vermelho."

Onde está então José Afonso? Em tudo o que se escreveu acima. Na absoluta singularidade do seu génio, na força das suas convicções, na sua humanidade desarmante. Tudo isso está na música. Como nos diz Tiago Sousa "ouvimos Zeca e reconhecemos Zeca, mas se utilizarmos soa demasiado a imitação. Há repercussões, seja em Sérgio Godinho e restantes contemporâneos, seja num B Fachada que vive do património que o Zeca usava, mas tentar melhorar aquilo que já foi feito é um acto inglório".

Como resume Pedro Silva Martins, para criar algo de bom a partir de uma canção de José Afonso, "tem que se fazer próximo, e sendo próximo não será melhor". Esse é o seu legado. Este: "Ouvindo a discografia toda, e ouvindo-a cronologicamente, compreende-se a evolução e o bichinho do génio a crescer com o tempo, com as viagens que fez, com a música que foi descobrindo, com o país que ouvimos desenvolver-se paralelamente [na música]".

Numa entrevista a José Amaro Dionísio, publicada no semanário Expresso em 1985, José Afonso dizia: "Não me arrependo de nada do que fiz. Mais: eu sou o que fiz." Na sua totalidade, foi imenso. E já conseguimos vê-lo como deve ser visto. Inteiro.

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