Sopas de cavalo cansado

As agruras da sobrevivência. “Easy Riders, Raging Bulls: How the Sex, Drugs and Rock ''N'' Roll Generation Saved Hollywood”, era o título de Peter Biskind sobre a geração de 70, os “movie brats”. Ribombante, e saboreando o horizonte de queda ao contar a história de um galope que chegava exausto ao fim. Como estão eles hoje?


Francis Coppola vai exibindo uma atitude de “negação”, como se quisesse esquecer - como se quisesse que esquecêssemos - os “apocalipses” do passado, que segundo ele foram partidas do destino; agora o que lhe interessa é isto: “Uma Segunda Juventude”, “Tetro” e “Twixt”, que é o próximo.

Martin Scorsese passou parte dos anos 2000 a ansiar pela oficialização, realizando facsímiles dos seus originais e dos originais da Hollywood clássica. A felicidade nervosa que soltou com o seu “Could you double-check the envelope?”, em 2007, quando os companheiros Coppola, Lucas e Spielberg lhe entregaram o Óscar de melhor realizador por “The Departed”, é um dos momentos mais trágicos da história da Academia: aquilo que Hollywood e Scorsese deixaram escapar e perderam por a entronização não ter chegado no período mais criativo da obra do cineasta. A máquina de fabricar maravilhas em “A Invenção de Hugo” já é pré-fabricada: uma “améliepoulainização” do maravilhoso (é mais Jean-Pierre Jeunet do que Tim Burton), com Scorsese a reservar-se o papel paternalista de protector da memória cinematográfica - visão graciosa e generosa do “mestre”, é certo, mas infantil.

Spielberg sempre foi o menos consensual, aquele sobre quem se abateu, para além das suspeitas de “infantilismo”, a culpa de ter congeminado a invenção do “blockbuster” (“Tubarão”, 1974) que apressou o fim da “Nova Hollywood”. Aparentemente o menos angustiado e o menos contraditório - a sua estratégia de eficácia e felicidade nas bilheteiras mascararam a necessidade de reconhecimento artístico dos seus pares -, atacou os anos 2000 (“A.I.”, “Relatório minoritário”, “Apanha-me Se Puderes”) de forma mais agressiva, autónoma e descomprometida. Mas “Cavalo de Guerra”, filme baseado no romance juvenil de Michael Morpurgo (1982) e na sua versão cénica (estreia em 2007), partilha com “A Invenção de Hugo” essa normalização do “maravilhoso”, transformado em mínimo denominador comum, coisa programada - várias vezes no filme a música anuncia o movimento de câmara ou então é a movimentação da grua que desencadeia o movimento que começamos a perceber qual vai ser - e, logo, o que devemos sentir.

Esta é a história de um cavalo, Joey, e do seu périplo pelas linhas da frente e países da I Guerra. A versão do West End e da Broadway pegaram no livro com as formas de distanciação épica: a figuração dos cavalos como marionetas, por exemplo, faziam deles ecrãs “em branco” onde se projectavam a imaginação do espectador, a História e o conhecimento dela, servindo para uma meditação sobre a barbárie, o sacrifício e a transcendência do humano. Spielberg escolheu a forma mais linear, como se não pudesse fazer outra coisa, sem capacidade para lidar em cinema com a abstracção: uma história de amizade entre um rapaz e o cavalo, história de fuga e reencontro, em que a música anuncia o “épico” mas em que o resultado é “filme de família” de domingo à tarde. Ou seja, “Lassie come home”, a versão equestre.

Não seria por aí que viria o mal a “Cavalo de Guerra” não se desse o caso de todas as cenas não ultrapassarem a enunciação da convenção. E depois? (quase) Nada. A ligação a uma memória do cinema clássico é ilustrativa, uma promessa que não se cumpre em profundidade. Como superficiais são as “personagens”, figuras recortadas com fundo (o final à “E Tudo o Vento Levou”) - se os métodos de distanciação não serviram a Spielberg, a relação com elas deveria ter sido menos larvar. O cavalo serve apenas de ponto de ligação entre histórias e ambientes que respigam anteriores filmes do realizador, em versão menor (“O resgate do soldado Ryan”, por exemplo). E não deve haver outro momento do cinema de Spielberg em que a incapacidade de chegar a um resultado é tão flagrante, e o resultado tão dolorosamente deslocado, como o “episódio” do avô e da neta franceses. O sotaque quebrado poderia ser um “gag” do humor “Allô Allô”. Tarantino já mostrou, no início de “Inglourious Basterds”, como a convenção pode servir, a um cineasta mãos-de-tesoura, para esculpir todo um monumento. Aqui é só “Joey come home”.

Sugerir correcção
Comentar