O escritor-cowboy

Thomas McGuane continua a aventurar-se na última fronteira, a ficção literária

“Irascível, hipercrítico, obsessivamente arrumado, claustrofóbico, impaciente, antissocial, agorafóbico, cheio de um temor sem propósito, pessimista e sempre a encontrar defeitos”, assim se auto define Irving Berlin Pickett, o narrador de “Por um Fio”, obra do americano Thomas McGuane, conhecido principalmente como escritor de guiões para o cinema e de romances, onde o carácter burlesco das personagens se mistura com a tragédia, numa América em que a vastidão da natureza ainda selvagem contrasta violentamente com o ambiente das pequenas cidades do interior, pelas quais a industrialização passou como um sopro maléfico, deixando um rasto de desemprego, pobreza e indiferença.

Pickett, mais conhecido por Berl, é uma espécie de Portnoy gentio e rural, o anti-herói perfeito que nunca se adapta às circunstâncias. A História passa-lhe ao lado - na manhã do 11 de Setembro não se apercebe do que aconteceu porque está a pescar num lugar recôndito, nas montanhas - e a sua evolução como ser humano é lenta e difícil, passando de um estado infantil confuso e solitário para o de um adolescente com problemas de relacionamento e, mais tarde, para uma idade adulta conturbada e repleta de dificuldades quando se trata de lidar com mulheres, confrontar o passado ou integrar-se na comunidade, excepção feita ao seu envolvimento com cães, falcões, peixes e cavalos. Em pequeno, Berl acompanhava os pais em viagens de carro peripatéticas, devido ao negócio de limpeza a vapor de tapetes ao domicílio dos progenitores, e estudava em casa. A mãe, membro de sucessivas igrejas pentecostais e feroz defensora da palavra de Deus, protegia-o demasiado, enquanto o pai preferia a companhia dos antigos companheiros veteranos da Segunda Guerra Mundial. Este ambiente disfuncional contribuiu pouco para facilitar a sociabilização do rapaz, que foi crescendo entre a loucura religiosa (benigna) da mãe e a vergonha mal disfarçada do pai, desertor do campo de batalha. McGuane é extremamente hábil nas descrições da Natureza, dos amplos espaços e da promessa (frustrada) de transcendência, conseguindo um equilíbrio precário, mas eficaz, entre a extrema comicidade e uma certa crueldade dramática, entre um território cheio de possibilidades e a frustração de personagens sem horizontes na América profunda. No entanto, Berl acaba por se licenciar em Medicina graças ao excêntrico Dr. Olson, que passa a ocupar o lugar paterno, tomando-o sob sua protecção e encaminhando-o para um futuro mais promissor.

Sensivelmente a meio do livro, o tom da narrativa muda para um registo fragmentado e repetitivo, reflexo possível da confusão do protagonista a braços com um processo de negligência profissional. Desdenhado pela comunidade - não é fácil exercer medicina numa terra onde todos se conhecem e perdura a recordação de um jovem imaturo e “atrasado” - e encurralado pelos colegas, Berl desenvolve a sua mania da perseguição e tem tendência para uma cada vez maior excentricidade, enquanto as recordações de infância e adolescência são constantemente revisitadas. Entretanto, apaixona-se por Jocelyn, a piloto de um avião que cai ao lançar químicos sobre as colheitas, é afastado da Clínica onde trabalha enquanto decorre o processo legal, resolve voltar a pintar casas, como na juventude, com resultados desastrosos, o seu advogado e amigo morre, o velho e adorado Oldsmobile 88 - substituto do cavalo - é declarado “bom para a sucata” e as tentativas de relacionamentos amorosos, de amizade ou de simples entendimento levam a becos sem saída. Vale-lhe Jinx, a amiga que ouve pacientemente as suas confissões e perplexidades e com quem o desajeitado Berl bebe copos melancólicos, enquanto tenta encontrar um “sentido para existência”.

O percurso pessoal e literário de McGuane tem sido bastante acidentado e se é verdade que leva a vida de um rancheiro em Livingston, Montana, é difícil esquecer a sua agitada existência nos anos 1970 - não faltou um aparatoso desastre com um Porsche numa estrada gelada do Texas - em Hollywood e Key West, quando o álcool, as drogas e os sucessivos divórcios de actrizes conhecidas lhe deram a fama de um William Burroughs, versão “cowboy”, ou de um Hemingway das Montanhas Rochosas. Posteriormente, e ao longo dos anos, a propriedade em Montana tornou-se local de encontro de personalidades ligadas ao cinema e às letras. Peter Fonda, o guionista William Hjorstberg e o já falecido escritor Richard Brautigan têm feito parte dessa vida idílica onde, à mistura com sessões literárias, se criam cavalos e gado para rodeos, se fazem expedições de pesca e caça, enquanto McGuane disserta sobre armas de fogo, filosofia, barcos, montanhismo e outras actividades que requerem muita energia e uma invejável boa forma.

Na nota prévia de “Por um Fio”, McGuane compara a obra de ficção à “última fronteira”, aquela que, afinal, continua à espera de ser desbravada. Para o homem que diz convictamente que a escrita é a grande recompensa de quem, como ele, envelhece sem dar por isso - continua a levantar-se às cinco da manhã e passa metade do dia a cavalo -, o território das letras está ainda aberto a muitas aventuras.

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