A imagem, o seu cadáver e o destino deste

A monumental herança do século XX, as “ruínas” da fotografia e do filme analógicos

Um dos aspectos carismáticos da arte brasileira é a sua relação com a sua própria cultura, bem como com a realidade contemporânea do quotidiano no Brasil. Diferentemente de outras identidades artísticas nacionais, como a portuguesa ou mesmo a espanhola, a contemporaneidade da arte brasileira, a sua pertinência nunca se construiram na abstração da sua história e cultura. Exemplos conhecidos são Hélio Oitocica, Cildo Meireles, Miguel Rio Branco, entre outros. As cores, os materiais, o imaginário mítico, a história política do Brasil são constantemente convocados nas suas obras. Com Rosangela Rennó voltamos a encontrar, por trás de um conjunto de temáticas muito presentes nos dias de hoje (o arquivo morto, a mediação do mundo pelas imagens, a memória individual e colectiva, os mecanismos de percepção e cognição das imagens), a marca da cultura brasileira, sem que, por isso, o seu trabalho sofra algum desvio “regionalista” ou menos universal: o Corcovado, a variedade paisagística do Brasil, a memória colonial, a violência urbana das grandes cidades insinuam-se, na reapropriação que faz das imagens, por entre um diálogo mais abrangente.

A grande maioria dos trabalhos de Rénnó parte de imagens já existentes, oriundas de diversas proveniências: jornais, álbuns de fotografias comprados nos mais distintos lugares, imagens tiradas por outros, retiradas de arquivos prisionais, fotografias em jornais de pessoas segurando fotografias, fotos de identidade. O aspecto mais interessante dessa relação, e que está na origem da sua recusa em pegar numa máquina e fotografar, pôr na parede, tentar criar “imagens artísticas”, é a necessidade que se sente de questionar o mundo através das suas mediações, de compreender de que forma podemos receber, criticar, apropriar e repensar as imagens que vemos e, a partir delas, criar um novo discurso, uma recontextualização. Esse é o caso paradigmático de dois dos trabalhos expostos: “Biblioteca” (2002) e “Atentado do Poder”(1992). O primeiro resulta de uma compulsão já antiga para adquirir material antigo, e foi impulsionado pela necessidade de organizar o arquivo de fotografia amadora do pai (também nessa altura, nos anos 80, Rennó lera um artigo de Andreas Muller-Pole intitulado “Para uma ecologia da informação” que segundo a artista, fortemente a influenciou). É uma biblioteca de álbuns, recolhidos onde calhou, mas que sofreram um complexo processo de arrumação e apropriação, por vezes labiríntico, e cuja relação entre os diferentes níveis o visitante demorará a descodificar. Cada conjunto de albums está arrumado por origem continental, tem uma cor que pode ser localizada num mapa e um arquivo “universal” contém a memoria de todo o processo do álbum (recolha, organização, distribuição, pois algumas das mesas de apresentação dos albums estão já em colecções espalhadas pelo mundo). Neste trabalho, a artista reflecte a urgência contemporânea pela questão da memória e da sua transitoriedade, associada ao facto de, à materialidade objectual da fotografia analógica, prestável para álbums e arquivos de vária ordem, se veio hoje substituir uma outra materialidade, a electrónica, que patenteia uma ameaça de morte permanente. O cadáver dos álbuns expostos (de viagens, de família, de toda a ordem) é um cadáver com ossos, acessível ao tacto (embora as vitrines nos defendam disso) e à visão apesar de esquecido ou “morto”; a ameaça de morte definitiva, pelo contrário, cerca a potencial volatibilidade do arquivo digital. O centro do trabalho parece apontar para o facto de que este conjunto de imagens “morreu num certo lugar e renasceu noutro”, passou de mão e, nesse sentido, não importa muito o referente real dessas imagens (os álbums estão fechados dentro das mesas coloridas).

Em “Atentado ao Poder”, Rosangela reflecte sobre uma outra questão. Durante a cimeira da Terra no Brasil, que decorreu emtra 1 e 14 de Julho de 1992, os jornais cultos brasileiros fizeram cobertura do acontecimento; no entanto, os jornais populares continuaram a fazer capas com os crimes urbanos nas grandes cidades brasileiras. Rennó recolheu algumas dessas capas com corpos assassinados no meio da rua e reproduziu-as, convocando a diversidade de mundos através de diferentes consumos da imagem. A obsessão da artista com os usos sociais da imagem foi também o mote para a série “Corpo da Alma”; concebida entre 2003 e 2009, reedita em suporte de alumínio imagens, publicadas em jornais e revistas, nas quais alguém segura uma fotografia de uma pessoa desaparecida. O título remete para essa ontologia espectral da fotografia, de “transportar” os ausentes, desaparecidos ou mortos, para a presença dos vivos. Mas o Brasil é convocado também na série “a última foto”, para a qual Rennó convidou 42 fotógrafos a quem deu 42 máquinas analógicas apra fotografarem o Cristo do Corcovado. Por sua vez, “Cartologia” e “Vera Cruz” convocam a memoria da colonização.

“Frutos Estranhos”, série de 2007, é o projecto que dá o nome à retrospectiva. Constituído por imagens animadas de corpos em posições fora do comum (no ar, a cair), reflecte sobre condicionamentos da nossa percepção, já que o espectador, por mais atento que seja, terá dificuldade em percepcionar o movimento das imagens dada a sua baixíssima velocidade. Estranhos são também os “frutos” que Rennó colhe à sua volta e com os quais pretende questionar dispositivos de crença e evidência consagrados na fotografia e no seu automatismo.

No limiar desta interrogação está a percepção da monumental herança do século XX, as “ruínas” da fotografia e do filme analógicos, que o digital permitiu delimitar e que constituem um constante desafio à reflexão no contexto da arte contemporânea.

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