No fio da navalha

Rubem Fonseca vem ao Correntes d'Escritas, e isso, por si só, é um acontecimento. A reedição de "A grande arte" vem mesmo a propósito

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AlexDantas/Flickr
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Rubem Fonseca é hoje, aos 86 anos, o escritor mais importante do Brasil, mas já em 1983, com a publicação de "A grande arte" (o seu segundo romance), tinha uma aclamada obra como contista. Entretanto publicou mais de uma dezena de romances e de uma dúzia de livros de contos, que lhe valeram reconhecimentos como o Prémio Camões, em 2003, ou o Prémio Jabuti, o mais importante do Brasil, que recebeu por cinco vezes.

A vinda do maior escritor brasileiro à Póvoa de Varzim, no âmbito do 13º Correntes d'Escritas, seria sempre motivo de nota, mas tratando-se de Rubem Fonseca a atenção é ainda maior, uma vez que se trata de um escritor que gosta de se manter incógnito e que recusa frequentemente dar entrevistas ou fazer aparições públicas (principalmente no seu próprio país).

Esta quinta-feira, dia 23, o público pátrio terá assim uma oportunidade única de assistir ao vivo a uma conversa que se prevê preciosa. Nesta primeira de oito "mesas redondas" (uma será em Lisboa), estarão também outros autores como Hélia Correia ou Eduardo Lourenço, o mais recente galardoado com o Prémio Pessoa, que com o seu verso "A Escrita é um risco total" dá o mote para a conversa.

Além destas "mesas", que são o principal atractivo deste encontro literário no qual participam mais de cinquenta escritores de expressão ibérica, ocorrem também inúmeros outros eventos, como lançamentos de livros, divulgação dos vencedores de prémios literários, performances, sessões nas escolas, entre outros.

A recente reedição de "A grande arte", considerado por muitos a "magnum opus" de Rubem Fonseca, pela Sextante Editora (que pretende continuar a publicar os títulos que se encontravam espalhados por diversas casas editoriais), vem mesmo a propósito.

Porque deves ler este livro?

"A grande arte" é um intrincado policial em que o mais importante não é o mistério, mas sim a violência, o caos urbano, o registo da desumanidade latente na sociedade, nomeadamente no submundo do crime. Isto é, aliás, uma constante na obra de Rubem Fonseca (que foi deveras polícia), onde encontramos frequentemente um ambiente "noir", com constantes introspecções do narrador (o protagonista), num mundo duro e profundamente violento onde não há remorso nem redenção, onde a luxúria anda no fio da navalha, tal como nele caminham tanto os "bons" como os "maus", negando sucessivamente o simplismo destas definições.

Nesta história quem investiga é Mandrake, um advogado do Rio de Janeiro (em vez do usual detective), sedutor, cínico, e fumador compulsivo de charutos. No meio das investigações que começam com o assassinato de duas prostitutas (marcadas com um misterioso "P" desenhado "à faca" na face), Mandrake é atacado e esfaqueado. Jura depois vingança, começando assim a aprender e a descobrir "a grande arte" do "percor" (perfurar e cortar) - o manuseio de armas brancas.

Como refere Mário Vargas Llosa no posfácio desta edição, "A grande arte" pode ser apreciado a vários níveis. Não só é um policial apelativo para qualquer pessoa, como também veicula subtilmente níveis mais profundos de sentido, nomeadamente a crítica social, as referências cultas, ou o sarcasmo e a ironia que acompanham sempre a história, fazendo do romance uma espécie de paródia ao próprio género policial, que requer (mas não obriga) a inteligência do leitor.

A narrativa é por vezes descomedida, mas é servida com mestria e uma verosimilhança que se insinua pelas intermitências entre a realidade mais horrível e a bizarria mais demente. Ademais, os diálogos são construídos de forma exemplar e as soluções da escrita sobejam em originalidade e criatividade, conseguindo um ambiente único que Tomás Eloy Martínez define como a instalação do medo ou do "mal no próprio interior da linguagem".

O Secretário de Estado da Cultura - e escritor de policiais - Francisco José Viegas, que também vai estar no Correntes d'Escritas, escreve no prefácio desta edição que "é necessário que 'A grande arte' seja lido e relido, aberto em qualquer página a meio da noite, fechado com irritação ou anotado nas margens, como um código". Pelo menos nisto estamos francamente de acordo.

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