Os paradoxos, a revolta e a visão do futuro de Miguel Real

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pedro cunha

A Nova Teoria do Mal surge como um grito de desespero, em nome das pessoas comuns, e um libelode acusação a uma elite europeia e portuguesa que conduz à decadência

É um livro surpreendente. É um livro sobre filosofia, mas é um livro sobre política. A Nova Teoria do Mal, de Miguel Real, romancista e filósofo, é um livro que surge como um grito na crise e no unanimismo cultural que parece assolar Portugal. É uma espécie de soco no estômago das consciências críticas adormecidas da intelectualidade portuguesa. É uma genealogia da moral e do mal, mas é também "um libelo de acusação aos políticos que governaram Portugal nos últimos 30 anos", segundo o próprio autor explica ao P2.

A Nova Teoria do Mal, editado pela D. Quixote/Leya, é também surpreendentemente um livro de paradoxos. Por um lado, prospectiva o futuro e analisa e sistematiza o passado da Europa de um ponto de vista filosófico, histórico, científico, racional, estudado, reflectido, amadurecido, feito como uma renda de bilros ou como um mecanismo de um relógio. Por outro lado, é um grito de desespero, uma rejeição visceral do statu quo, um vómito de recusa de uma forma de gerir a sociedade, uma opção angustiada de corte com o mundo, de recusa de país, de redução assumida a cidadão de Sintra.

"Foi um coração revoltado que escreveu o prefácio", confessa Miguel Real ao P2, garantindo que mantém a revolta com o que se está a passar em Portugal e na Europa. "Estamos a matar o homem europeu, que construiu a civilização mais racional, mais humanista, mais liberal que existiu na terra, que misturou raças, criou a democracia, a vontade popular democrática, criou a Carta dos Direitos Humanos, a Carta dos Direitos da Criança, defendeu os Direitos Ambientais. Uma Europa de que a última tentativa de ser resgatada foi o projecto de comunidade europeia. E os valores portugueses e europeus estão a ser mortos por uma geração de economistas, que substitui o homem pelo número. Podem dizer que isto é demagógico, mas é a verdade." E prossegue, contundente: "E a Igreja Católica está calada. Os bispos europeus deviam estar à frente, na defesa dos valores europeus. E os padres deviam estar na rua ao lado dos pobres." Concluindo: "Hegel disse que a China estava a dormir há três mil anos, agora é a Europa que ficará a dormir, três mil anos ou mais. Como homem europeu, sinto revolta."

É esta revolta que transparece do prefácio da Nova Teoria do Mal, onde o autor, assumindo a primeira pessoa e de forma emocional, afirma: "Não podia encarar grande parte da classe política que nos governa desde meados da década de 1980 sem encontrar nos seus olhos, na sobranceria das suas atitudes, na prepotência das suas leis (extorquindo dinheiro à população, favorecendo os que mais têm), no ar enfastiado e enfatuado com que no estrangeiro se referem ao povo português, culpando-o de um atraso cuja responsabilidade só às elites pertence, sem detectar neste conjunto de atitudes uma visível tendência para o mal, um genuíno prazer no mal que ia cometendo lei a lei, carregando-a de impostos governamentais, taxas camarárias, contínuos aumentos de preços de bens essenciais, extorquindo direitos adquiridos, apropriando-se do espaço público, forçando cada cidadão a pagar cada pedaço minúsculo do património de todos." (p. 12)

E acusa: "Não são políticos os nossos governantes de hoje, mas economistas (os falsos profetas do século XXI) técnicos, robots substituíveis uns pelos outros, possuindo o mesmo vocabulário, aplicando invariavelmente o argumento da eficiência de custos e proveitos, totalmente desacompanhados de uma dimensão cultural e espiritual para a sociedade." (p. 18/19)

"Agora não há esperança"

Miguel Real explica que andava a escrever sobre o mal, mas nunca pensou ligá-lo à realidade actual. Mas insiste em explicar que no seu "espírito há uma certa revolta com o estado desequilibrado do país e a decadência da Europa". O autor precisa que "Portugal sempre foi desequilibrado, mas agora não há esperança, encara-se malignamente o futuro".

No diagnóstico que faz sobre o país, diz que "os antigos valores que firmavam a cultura portuguesa desapareceram, a fraternidade foi substituída por uma concorrência selvagem. Como professor, constata "nas aulas que os alunos estão cada vez mais egoístas, mais individualistas." Uma mudança que diz que "é alimentada por uma elite".

E faz questão de explicar que quando fala de "elite no poder, não é uma pessoa ou outra, mas a elite política, económica, social, religiosa, cultural, que tem vergonha do povo". Ora, para Miguel Real, "esta elite procura de forma ruptural, à força, introduzir novos costumes, abafando os velhos costumes, os veios nervosos de Portugal". Ou seja, "reduzem o país a mapas contabilísticos, estes são precisos mas não se pode reduzir a história de 20 ou 30 anos a mapas contabilísticos. Isso vai destruir valores cristãos e depois laicizados a partir do século XVIII, como a fraternidade, a solidariedade, a partilha da insuficiência, até a capacidade de aventureirismo, são todos substituídos pela economia."

O livro de Miguel Real surge assim como um livro raro em Portugal em que o autor procura analisar a evolução da sociedade europeia ao longo da história do ponto de vista do pensamento filosófico e ideológico. E é desse ponto de vista que o autor considera que "o cristianismo é um violento retrocesso material e espiritual face à civilização greco-romana." (p. 55) Para dizer, em relação ao presente, que "o reinado da época de ouro da democracia e do liberalismo económico pós-Segunda Guerra Mundial, de que o consumismo ilimitado é hoje expressão na Europa, esgotar-se-á com o predomínio do esgotamento dos recursos naturais e do aumento demográfico mundial vertiginoso". (p. 137)

Já sobre o futuro, prevê que, "falhada a ética cristã, violentadora da natureza, desvastadora da Terra, barbaramente ungida em sangue e carne do deus morto, nascerá uma ética natural, valorizadora de todos os seres sencientes. Terá morrido o antropocentrismo cristão, nascerá (vai nascendo) o biocentrismo." (p. 79)

Nesse futuro, idealizado por Miguel Real, "a fundamentação divina da moralidade extinguir-se-á, submergida pela força genuína dos interesses sociais. Nascerá uma moral do possível equilíbrio entre os homens e a natureza, fundada no princípio da igualdade na consideração do interesse de todas as partes, tento em vista não fazer o bem, mas evitar ou minimizar o mal". (p. 86) E admite mesmo que "é possível que, para sociedades futuras, o menor dos males signifique exactamente o contrário ou, em sociedades de escassos recursos, a total igualdade entre todos com a ausência de liberdade." (p. 127)

Ao P2, Miguel Real conclui que considera que, "no futuro, haverá um sistema de biopolítica, que respeitará a natureza e que beneficiará da tecnologia, um igualitarismo superior, que recuperará através do respeito da natureza a dimensão do sagrado, mas não do sagrado cristão."

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