Em busca de um novo paradigma

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luís ramos/arquivo
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Morreu há oito anos. O seu pensamento continua muito desconhecido dos portugueses. Maria de Lourdes Pintasilgo regressa, através de uma antologia que mostra a actualidade das suas ideias

"Visible and empowered, women will have in their hands the fundamental tools to shape the much needed civilizational change. [Visíveis e com poder, as mulheres terão nas suas mãos as ferramentas para moldar as tão necessárias mudanças civilizacionais]." (p. 84) Com esta frase, Maria de Lourdes Pintasilgo, feminista assumida, abordava um dos seus temas de eleição na IV Conferência Mundial das Nações Unidas sobre as Mulheres, que decorreu em Pequim entre 4 e 15 de Setembro de 1995. Desde então passou uma década e meia e a força e a actualidade da frase permanece, assim como permanecem a força e a actualidade do pensamento político, sociológico, filosófico de Maria de Lourdes Pintasilgo, a única mulher a ocupar o cargo de primeira-ministra em Portugal (1979/80) e falecida aos 74 anos, em 10 de Julho de 2004.

Muito do que é o pensamento de Maria de Lourdes Pintasilgo está sistematizado no livro Para Um Novo Paradigma: Um Mundo Assente no Cuidado (ed. Afrontamento)que hoje, às 18h, é lançado em Lisboa. A antologia inclui textos a partir de 1990, na sua maioria apresentados em reuniões e conferências internacionais. "O livro só agora é lançado, porque, depois de Maria de Lourdes Pintasilgo falecer, em 2004, durante a minha gestão [da Fundação Cuidar o Futuro] lancei este projecto, mas só foi possível levá-lo à prática após o arquivo estar tratado e digitalizado, isto é, em 2008. Foram dois anos a trabalhar no projecto", explica ao P2 uma das organizadoras, Maria de Fátima Grácio, a ex-presidente da Fundação Cuidar o Futuro. Esta fundação foi criada por Pintasilgo, que, além de ter sido a primeira mulher primeira-ministra (foi obrigada pelo protocolo português a assinar sempre "primeiro-ministro"), foi a primeira mulher a ser eleita eurodeputada em Portugal (como independente pelo PS) e foi a primeira mulher a ser candidata a Presidente da República. Isto depois do 25 de Abril. Antes, foi a primeira mulher a sentar-se na Câmara Corporativa e, também em pleno marcelismo, foi a fundadora do grupo de trabalho sobre a situação das mulheres que antecedeu o que viria a ser a actual Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género.

A vontade de Pintasilgo

Maria de Fátima Grácio explica ainda que "a obra surgiu para responder ao desejo formulado por Maria de Lourdes Pintasilgo em vida de que os seus textos fossem publicados". E obedeceu a uma organização temática "de acordo com os textos e de acordo com o que era o seu pensamento". Assim, em primeiro lugar surgem textos sobre Mulheres/igualdade/democracia paritária. Seguem-se os sobre Democracia, cidadania, direitos humanos. Depois surgem os sobre Desenvolvimento, população e qualidade de vida. A terminar, os assuntos são Educação e cultura, valores, religião, ética.

São profundamente actuais o pensamento e as preocupações de Maria de Lourdes Pintasilgo. Em 1998, escrevia: "A mobilidade económica e social das mulheres constitui um dos acontecimentos mais importantes do século XX, tendo dado origem a um verdadeiro terramoto cultural no contrato social." Para advertir: "[Partindo desse] terramoto que abalou o contrato social, uma das primeiras questões sobre que temos de nos debruçar é a da redefinição do trabalho." E alertava: "Trata-se de uma redefinição que passa pelo próprio conteúdo do trabalho: é necessário fugir às equações binárias dos primórdios da industrialização, principalmente aquela que esteve na origem da Guerra Fria - capital/trabalho. Não foi deste lado que o Muro de Berlim caiu."

Assim defendia: "Hoje em dia, a produção aparece envolvida pela informação e pela tecnologia, pela terciarização de todos os processos, pelo marketing e por uma publicidade sufocante. Num tal contexto, torna-se absurdo - além de cientificamente errado e eticamente inaceitável - que, de cada vez que uma empresa se defronta com dificuldades económicas, o elemento trabalho seja o único a ser penalizado." (p. 106)

Refira-se que a nível internacional Maria de Lourdes Pintasilgo integrou o Conselho da Ciência e Tecnologia ao Serviço do Desenvolvimento da ONU (1989-1991), foi membro da Universidade da ONU, pertenceu ao Comité de Sábios da Europa, presidiu à Comissão Independente para a População e a Qualidade de Vida (1992-1999) e foi co-presidente da Comissão Mundial da Globalização.

Crítica ao neoliberalismo

A 20 de Setembro de 2001, na Conferência do Rio de Janeiro sobre Homens, mulheres e governabilidade, Maria de Lourdes Pintasilgo assumia as suas convicções de esquerda numa crítica precursora, em termos de pensamento político em Portugal, ao neoliberalismo então em ascensão. "O primeiro mito é o da auto-regulação do mercado", defendeu. E prosseguiu: "Jacques Delors afirma com frequência que o mercado é míope, ou seja, os mercados têm um carácter espontaneamente instável e caótico. A intervenção pública é necessária para assegurar a regulação."

O segundo mito "afirma que a concorrência tem a possibilidade de gerar a riqueza para todos". Para questionar: "E os limites da competitividade?" Respondendo: "Por exemplo, há no mundo 1 bilião e 300 milhões de produtores que praticam a agricultura manual, enquanto apenas 28 milhões usam a agricultura mecanizada. O que significa a competitividade aqui?"

"[O terceiro mito] quer iludir-nos dizendo que o preço mundial é um critério pertinente para a orientação das produções." Afirma Pintasilgo: "Isto não é verdade. O preço é determinado pelo preço do país exportador mais competitivo, adquirindo muitas vezes esse estatuto à custa da ajuda do Estado aos produtores."

E, por fim, o quarto mito, que diz ser aquele que garante que "o mercado constitui o motor do desenvolvimento económico". Explica com casos concretos o que considera ser a falsidade deste princípio: "Mas como explicar então que a exportação maciça de cacau, arroz, bananas, carne, café para o Norte não tenha melhorado a vida dos produtores do Sul?" E conclui: "Um aspecto fundamental é a criação de condições para a modificação dos padrões de consumo e dos esquemas de produção. Não é um problema moral mas técnico. Mas para levar a cabo esta verdadeira revolução económica e financeira é indispensável uma governabilidade decidida e globalizada." (p. 146)

O que é a ética

Dona de um pensamento político, sociológico e filosófico forte e estruturado, Maria de Lourdes Pintasilgo era assumidamente católica e fundou a secção portuguesa do Graal, com Teresa Santa Clara Gomes. Dando uma importância primordial à ética na governação e na gestão pública, em 1998, no Colóquio Valores e Educação Numa Sociedade em Mudança, na Gulbenkian, em Lisboa, Maria de Lourdes Pintasilgo falava mesmo da importância e da necessidade de uma "ética global" que tratou de caracterizar pela negativa. "A ética não é um conjunto de histórias de "sucesso" num mundo em que ainda não encontrámos solução para os problemas."

E dava como exemplo o facto de "os especialistas de população face ao crescimento demográfico" relatarem "várias histórias de sucesso: a Tailândia tem uma taxa de fertilidade que tem vindo a baixar, estando já ao nível da simples regeneração das gerações; a Indonésia é outra história de sucesso, com prémio da ONU!" Para concluir: "Nessas histórias de sucesso fica completamente entre parênteses a realidade de um mundo em que as necessidades e as violações dos direitos humanos nesses mesmos países são gigantescas."

E prosseguia a sua definição, afirmando que "a ética não é a pacificação das consciências à custa da utilização dos valores médios como medida do real", assim como "a ética não é a aceitação do sofrimento num panorama em que a racionalidade que o descreve e explica aumentou". Ou ainda: "A ética não é um espaço-tempo linear e vertical em que uma certa ideia de "progresso" atribui sentido à sucessão dos acontecimentos."

Afirma, por último, que "a ética não é a construção da história pelos vitoriosos e a interpretação da derrota não pelos crimes cometidos mas pela fraqueza dos instrumentos". E sustenta: "Assim, a derrota no Vietname, sendo insustentável para o eu americano, levou necessariamente a um aperfeiçoamento espectacular no domínio da ciência e da tecnologia que gerou, a prazo, a guerra do Golfo." (p. 417)

A radicalidade da palavra

É assim um importante testamento político de Maria de Lourdes Pintasilgo que hoje é lançado pela presidente do PS, Maria de Belém Roseira, no Centro de Informação Urbana de Lisboa, no Picoas Plaza. O livro inclui um conjunto de textos organizados pelas investigadoras Antónia Coutinho, Fátima Grácio, Noémia Jorge, Paula Borges Santos e Regina Tavares da Silva. Tem um prefácio do ex-presidente do PSD Marcelo Rebelo de Sousa e um posfácio de Maria João Seixas, directora da Cinemateca Portuguesa e que trabalhou com Pintasilgo.

O valor desta obra é destacado por Marcelo Rebelo de Sousa no prefácio, onde começa por assumir a amizade pessoal com Pintasilgo, bem como as divergências de pensamento que os opunham, para salientar a importância do seu pensamento.

"E, depois, a palavra. Mais do que Francisco Lucas Pires, ela é o triunfo da palavra feita arma da sua missão, do seu combate, das suas cruzadas. A palavra escrita - cheia de citações, imagens, metáforas, sugestões mobilizadoras - e, em especial, a palavra dita. A força colocada na dicção, a convicção total presente na torrente de reflexões sempre viradas para o apelo, para a intervenção", sublinha Rebelo de Sousa. Acrescenta, com ironia: "Num tempo em que os políticos ainda sabem escrever e falar, e falam para quem os leia e para quem os oiça com delonga e atenção - isto é, antes dos bites televisivos -, a palavra de Maria de Lourdes impressiona pela força da convicção e pela obsessão da persuasão exaustiva." (p. 13). E conclui: "É esta radicalidade, associada à procura incessante da utopia e à denúncia sem respeitos humanos e temores reverenciais, que dá uma ressonância profética à palavra como arma em Maria de Lourdes Pintasilgo." (p. 20)

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