A guerra foi apagada dos manuais escolares afegãos

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Uma escola improvisada no Sul do Afeganistão Finbarr O"Reilly/Reuters

Num país onde o passado recente se tem desenrolado como uma guerra épica, as autoridades nacionais crêem ter encontrado uma maneira de ensinar a História afegã sem agravar as fracturas entre os grupos políticos e étnicos que há muito são beligerantes: serão apagadas as últimas quatro décadas.

Uma série de manuais escolares distribuídos pelo Governo, com financiamento dos Estados Unidos e de várias organizações estrangeiras de auxílio, fazem uma pausa na História em 1973. Não há referência à guerra soviética, aos mujahedin [combatentes], aos taliban ou à presença militar dos Estados Unidos. No seu esforço para promover uma identidade nacional única, os líderes afegãos concluíram que a sua própria história é demasiado controversa.

"A nossa história recente divide-nos", diz Farooq Wardak, ministro da Educação do Afeganistão. "Criámos um currículo baseado numa história mais antiga que nos une, com personalidades reconhecidas universalmente como grandiosas. Serão os primeiros livros desde há décadas que não têm ênfase política e confessional."

Os estudantes dos liceus em todo o país deverão começar a receber estes manuais a tempo de o ano escolar começar na Primavera. Os livros são os únicos aprovados para uso nas escolas públicas, no âmbito de um novo "currículo despolitizado". As escolas primárias e secundárias, já começaram a receber nos últimos anos livros com lições de História até à década de 1970.

À medida que os líderes ocidentais planeiam abrandar a sua participação na guerra, a incapacidade de os afegãos chegarem a acordo sobre um registo histórico básico põe em dúvida um exercício muito mais complexo, que é crítico para o futuro do país: a criação de um governo que una os grupos díspares do Afeganistão.

Mas os responsáveis afegãos insistem em que os novos manuais escolares sejam um dos principais instrumentos do Governo para a construção do Estado, oferecendo uma perspectiva fresca a uma geração criada no meio da guerra e marcada pela hostilidade das últimas quatro décadas. Durante a maior parte desse tempo, os grupos políticos e étnicos em contenda encheram os materiais escolares com as suas próprias ideologias e temperaram-nas com os seus próprios heróis e vilões.

"Foi assim que nos inculcaram ideias extremistas", lamentou Attaullah Wahidyar, director para a publicação e informação do Ministério da Educação. "Agora, aprendemos a lição."

As potências estrangeiras só agravaram as divisões aos distribuírem livros para promoverem as suas próprias agendas políticas e aplicarem nas salas de aula afegãs o "Novo Grande Jogo" na Ásia Central.

Um país, várias histórias

Nos anos 1970, a União Soviética imprimiu livros que exaltavam as virtudes do comunismo e a importância da teoria marxista. No decurso dos últimos anos da Guerra Fria, os Estados Unidos gastaram milhões em manuais escolares afegãos carregados de imagens violentas e textos sobre a jihad [guerra santa], parte de um esforço encoberto para incitar à resistência contra a ocupação soviética. Durante o reinado dos taliban, nos anos 1990, os textos islâmicos conservadores eram importados do Paquistão. No Ocidente do Afeganistão, os manuais escolares iranianos que elogiavam abertamente grupos militantes apoiados por Teerão, como o Hezbollah libanês e o Hamas palestiniano, foram durante anos distribuídos nas escolas públicas.

Quando educadores, académicos e políticos se reuniram para delinear o novo currículo, no início de 2002, estavam determinados a desfazer a política da historiografia afegã. Mas não conseguiam chegar a acordo sobre como abordar as razões por que o país mergulhou numa guerra civil nem sobre como descrever os vários grupos de insurrectos. Até a menção de figuras-chave, como Ahmad Shah Massoud, comandante da Aliança do Norte, ou o mullah Mohammad Omar, líder dos taliban, provocava uma feroz lealdade ou hostilidade, o que paralisava qualquer lição de História, segundo disseram responsáveis.

Os educadores sugeriram que a única solução fosse omitir o período posterior ao rei Mohammed Zahir Shah, cuja destituição, em 1973, desencadeou uma era de instabilidade política crónica. Entre os encarregados de redigir o novo currículo havia um acordo quase universal.

Mas apesar de um amplo consenso, alguns académicos e educadores afegãos protestaram, alegando que, com os novos manuais escolares, o ministério abdicou da sua responsabilidade. "Esta será a maior traição contra o povo do Afeganistão. Será um revés para todas as nossas conquistas materiais e espirituais das últimas quatro décadas", observou Mir Ahmad Kamawal, professor de História em Cabul. "Todos estes jovens serão privados do conhecimento do que aconteceu durante este período."

"O currículo é nacional, baseado em princípios islâmicos - não se dirige apenas aos pashtun, aos tajiques ou aos hazares [principais grupos étnicos afegãos]", disse o ministro da Educação, num discurso perante uma sala apinhada na província de Nangahar. "O currículo vai reconciliar-nos. Vai encorajar a fraternidade e a união."

Responsáveis do Ministério afegão da Educação têm viajado por todo o país, tentando persuadir 8,2 milhões de estudantes e as suas famílias de que Cabul apresentará um currículo justo. Num edifício público, fotos de líderes afegãos dos últimos 200 anos decoravam as paredes. O ministro Wardark apontou para a imagem de Mohammed Daoud Khan, que assumiu o poder em 1973."Foi aqui que a divisão começou", frisou. "E é aqui que os nossos livros de História acabam."

Com Sayed Salahuddin

Exclusivo PÚBLICO/ The Washington Post
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