Lampreia do Minho pode, afinal, "terr um ligeirro sotaque"

Foto
CARLA CARVALHO TOMÁS/ARQUIVO

Pescadores da região e biólogos confirmam que, quando o ciclóstomo não abunda nos rios portugueses, recorre-se à importação. Sem prejuízo para ninguém, pelos vistos

Quem se desloca propositadamente à zona do rio Minho para comer a afamada lampreia local corre o risco de acabar por comer um bicho com mais sotaque francês do que nortenho ou que tenha saído de um dos viveiros projectados para a zona.

Isto pode ser chocante, sobretudo para aqueles apreciadores do ciclóstomo que acreditam que a lampreia do Minho é melhor do que as outras (ver Fugas de ontem). A realidade é que nada garante a proveniência da lampreia que se come no Minho ou em qualquer outro ponto do país. A invasão do mercado por lampreia francesa também explica - dizem pescadores ouvidos pelo PÚBLICO - a desvalorização acentuada da lampreia do rio Minho, que, este ano, em Janeiro, início de época, foi vendida a preços de Abril, fim de época. Nos primeiros dias do ano, começou a ser vendida a 15 e 20 euros, quando em anos anteriores chegava aos 30 e 40 euros.

Luís Afonso, o maior revendedor da região, responsável por abastecer a grande maioria dos restaurantes do distrito de Viana do Castelo, mas também os de Lisboa, de outros pontos do país e até da capital espanhola, admite introduzir lampreia francesa no mercado, mas só "quando não há em Portugal que chegue para as encomendas". O pescador Fernando Ferreira garante que muita da lampreia importada "é vendida como portuguesa". "Este ano, como temos lampreia em grande quantidade, não acontecerá tanto, mas no ano passado a lampreia francesa era o prato do dia", revela.

A informação é confirmada pela bióloga Carla Maia, uma das cientistas que participaram na elaboração do Plano de Recuperação da Comunidade de Peixes Migradores na Bacia do Rio Douro, estudo que permitiu, entre outras coisas, fazer a caracterização genética da lampreia-marinha. A cientista justifica que a lampreia que chega aos rios portugueses não é suficiente para dar resposta à crescente procura no mercado interno. "Senão não se importava tanta quantidade de França". A especialista, que ressalva não haver dados precisos sobre o número de lampreias importadas para consumo em Portugal, diz estar em contacto constante com fiscais e pescadores que "falam sempre em milhares". Carlos Antunes, também ele biólogo, mas no Aquamuseu do rio Minho - instituição que desenvolve um projecto para a valorização de sete espécies daquele rio, entre elas a lampreia -, admite que, "quando há grande procura no mercado e há pouca oferta, recorre-se a outras fontes: lampreia francesa; lampreia do Guadiana".

Isso terá acontecido, sobretudo, no ano passado. Os números oficiais da Capitania do Porto de Caminha, com jurisdição no troço internacional do rio Minho, apontam para uma quebra na apanha de lampreia no rio Minho nos últimos dois anos. Em 2007, foram apanhadas (declaradas) 38.650 lampreias no rio Minho; em 2008, 41 mil; em 2009, 55.930; em 2010 37.142; e, no ano passado, apenas 24.354. Este ano foram emitidas 215 licenças para a pesca da lampreia no troço internacional do rio.

Luís Afonso, o comerciante que admitiu ao PÚBLICO importar lampreia francesa, não revela quantas vende por ano - "Não lhe digo!" -, mas esclarece que a importação, além de legal, é sempre registada na factura, onde é obrigatório mencionar a origem do pescado. "Eu só vendo lampreia francesa quando não há cá em Portugal. Quando há nos rios portugueses, seja no Lima, seja no Douro, seja no Mondego, vendo lampreia nacional", reitera.

A importação tenta dar resposta à procura por este ser vivo do tempo dos dinossauros. A procura tem crescido de ano para ano na região do Alto Minho, muito por culpa das autarquias locais, que viram no ciclóstomo um "filão de ouro". Descobrindo nele um importante factor de atracção turística, nos últimos anos têm apostado na rentabilização da marca "lampreia do rio Minho". Desde o passado fim-de-semana e até ao final de Março, 96 restaurantes espalhados por seis concelhos (Caminha, Vila Nova de Cerveira, Valença, Paredes de Coura, Monção e Melgaço) vão ter diariamente um prato de lampreia na lista.

Para dar resposta à procura crescente de lampreia sem terem de recorrer à importação, a Associação de Pescadores para a Preservação do rio Minho (APPRM) e a Câmara de Caminha querem construir dois viveiros, que serviriam não para criar, mas para manter as lampreias apanhadas durante a época própria e gerir o stock de acordo com as conveniências de mercado. Os dois viveiros preconizados, a construir em Seixas e na foz do Minho, teriam 120 metros quadrados e 12 tanques. O projecto já foi apresentado ao Governo, mas não tem ainda autorização nem financiamento para avançar.

Mário Patrício, vereador da Câmara de Caminha, defende que os viveiros representariam "um passo em frente" no processo de valorização da lampreia do rio Minho: "Através de um sistema que irá ser estudado, os pescadores, ao entregarem as lampreias nos viveiros, podem garantir que são capturadas no rio Minho".

Ciência não vê diferenças

A lampreia francesa tem fraca qualidade, alegam os pescadores do rio Minho e as autarquias da região. "Não sabem o que dizem", responde-lhes o revendedor Luís Afonso. E o o cozinheiro João Guterres, conhecido por defender a gastronomia típica do Alto Minho e por ser um dos impulsionadores da Confraria da Lampreia do Rio Minho (ver caixa) é ainda mais polémico. "Eu prefiro uma lampreia francesa a uma lampreia de Caminha!" Contraditório? "A certificação da lampreia do rio Minho é uma questão de bairrismo, de promoção", assume. Nada mais. Até porque, diz quem se dedica há 46 anos à gastronomia e consegue fazer lampreia de 19 diferentes maneiras, "não há diferença nenhuma" entre as lampreias do Minho, do Lima ou até de França. Para João Guterres, a preferência vai para a lampreia que tenha mais tempo de água, que "tenha sido mais batida", para ficar com menos gordura. "Onde noto diferença é na lampreia apanhada ali na barra, que nos dá um mau produto, se a cozinharmos acabada de pescar. A lampreia que vem de França já vem com muitos dias de água". "Quem é que me garante que as lampreias são do rio Minho? Ninguém. Nem o próprio pescador, porque há os que as compram quando há falta de lampreia", acrescenta.

Manuel Rodrigues está no sector da restauração há 32 anos e tem um dos restaurantes do vale do Minho que aderiram à iniciativa de promoção da lampreia que foi lançada pelas autarquias locais e pela Adriminho, Associação de Desenvolvimento Rural Integrado do Vale do Minho. Afirma que ainda hoje procura alguém "capaz" de lhe mostrar a diferença entre uma lampreia francesa e uma lampreia do rio Minho.

"Não há nenhuma característica que distinga a lampreia de um rio do outro, são todas iguais", confirma a bióloga Carla Maia, que, durante o trabalho que desenvolveu no Douro, fez a caracterização genética da lampreia-marinha. "Recolhemos amostras de lampreias de várias bacias portuguesas e de vários exemplares vindos de França e chegámos à conclusão que geneticamente, aparentemente, é tudo do mesmo stock". Esta conclusão prende-se com o facto de, como adianta o também biólogo Carlos Antunes, não existir nenhuma evidência científica de que a lampreia seja fiel ao rio onde nasceu. "Temos lampreias a entrar no Douro que provavelmente nasceram no Minho", exemplifica Carla Maia, corroborando a tese.

"Que me tragam uma lampreia francesa e uma lampreia do rio Minho, eu preparo as duas e que me digam qual é uma e qual é outra", desafia o cozinheiro João Guterres.

Sugerir correcção