A senhora de Cracóvia que fazia perguntas inocentes

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Praticamente desconhecida no Ocidente antes de ganhar o Nobel da Literatura em 1996, a autora polaca foi uma das vozes mais singulares da poesia europeia do século XX

Com a morte, aos 88 anos, da poetisa Wislawa Szymborska (no dia 1, em Cracóvia), desaparece o último grande nome de uma geração que renovou profundamente a poesia polaca do século XX. Depois de Zbigniew Herbert (1924-1998) e de Czeslaw Milosz (1911-2004), a morte levou desta vez uma sua velha conhecida, que com ela vinha há muito conversando em verso, às vezes em tom quase afectuoso, outras vezes censurando-lhe o desleixo: "Preocupada em matar,/ faz o seu trabalho à toa,/ sem sistema e sem perícia,/ como se cada um de nós fosse o primeiro que mata", escreveu no poema Acerca da morte, sem exageros.

Prémio Nobel da Literatura em 1996 - Milosz recebera-o em 1980 -, Szymborska nasceu em Prowent, hoje parte de cidade polaca de Kórnik, mas morou a vida toda em Cracóvia, para onde a família se mudou quando tinha oito anos. Foi nesta cidade que viveu a invasão da Polónia pelo nazis, em 1939. Durante a guerra, trabalhou como escriturária nos caminhos-de-ferro, evitando ser deportada para a Alemanha, enquanto estudava numa universidade clandestina.

Terminado o conflito, inscreveu-se na Universidade de Cracóvia, em Língua e Literatura Polaca, que depois trocou por Sociologia. Envolvida nos meios literários, onde Milosz era já uma figura destacada, publica o seu primeiro poema em 1945, num jornal diário. Mas escrevia versos desde os quatro anos, a acreditar no que afirmou aos jornalistas quando foi a Estocolmo receber o Prémio Nobel. "Eram poemas desastrados e ridículos, claro, mas quando algum saía direito, o meu pai dava-me dinheiro para comprar chocolates, de modo que posso dizer que comecei a viver da minha poesia aos quatro anos".

Como muitos dos intelectuais de Leste que viveram a Segunda Guerra, Szymborska iria tornar-se uma estalinista convicta. E, como outros tantos, acabaria por se desiludir com o comunismo. Mas a fidelidade inicial ao novo regime não se terá reflectido de imediato nos seus poemas, ou assim o pensaram os censores do partido, que a proibiram de publicar, em 1949, aquele que teria sido o seu livro de estreia. A própria poetisa também nunca o quis ressuscitar, tendo igualmente rejeitado os livros que publicou na primeira metade dos anos 50, influenciados pelos ditames do realismo socialista.

"Queria mesmo salvar a humanidade, mas escolhi o pior caminho possível", dirá a autora após ter recebido o Nobel da Literatura. "Depois percebi que não se deve amar a humanidade, mas sim gostar de pessoas".

Sofisticada simplicidade

Szymborska casara-se em 1948 com o poeta Adam Vlodek, de quem viria a divorciar-se em 1954, e nessa primeira década do pós-guerra trabalhou como secretária de uma revista de educação, ilustradora de livros e crítica literária. Em 1953, juntou-se à equipa da revista Vida Literária, onde permaneceria até aos anos 80, assinando, a partir de 1968, uma coluna de crítica de livros ironicamente intitulada Leituras Não-Obrigatórias, na qual tanto comentava livros de poesia como de cozinha ou jardinagem.

Nesse mesmo ano de 1953, assina, com meia centena de outros membros da União dos Escritores Polacos, umadeclaração de apoio a um tribunal estalinista que condenara à morte (sentença que nunca seria executada) três padres católicos acusados de espionagem a favor dos EUA. Entre os signatários do documento contava-se Vlodek, mas também o segundo marido de Szymborska, o escritor Kornel Filipowicz, autor de argumentos para vários filmes de Stanislaw Rózewicz (irmão de outro grande poeta, Tadeusz Rózewicz).

Szymborska filiara-se em 1952 no Partido Operário Unificado Polaco, como então se designava o partido comunista no poder. Só o abandonará oficialmente em 1966, mas o seu processo de afastamento do estalinismo começara muito antes. Já em 1957, publicara o poema Apelo ao Yeti, no qual não é difícil de adivinhar que, por interposto abominável homem das neves, se dirige a Estaline: "Yeti, nem só crimes/ são possíveis entre nós./ Yeti, nem todas as palavras/ são sentenças de morte".

Desde o final dos anos 50 que mantinha contactos com intelectuais polacos no exílo, e por vezes assumiu publicamente posições contra o regime. Em 1975, assinou um protesto contra a decisão do Governo de consagrar na Constituição a "eterna aliança" da Polónia com a URSS. Mas só assumiria uma oposição activa nos anos 80, quando as lutas do sindicato Solidariedade desafiavam a lei marcial imposta em 1981.

Em meados da década de 70, Szymborksa já publicara mais cinco livros de poemas depois de Apelo ao Yeti e tornara-se uma autora popular no seu país. A sua linguagem simples, quer na escolha vocabular, quer no uso da sintaxe, bem como a sua frequente opção por construir os poemas a partir de tópicos e situações quotidianas, contribuíram para que o círculo de leitores desta sofisticadíssima poesia rapidamente extravasasse o público mais especializado.

Humor, ironia, cepticismo, sabedoria ou compaixão são alguns dos termos usados para caracterizar a obra de Szymborska, que gosta de lançar perguntas desconcertantes e aparentemente inocentes -"Porquê este eu específico, não num ninho, mas numa casa? Rematado não a escamas, mas a pele?" - para, passo a passo, numa estratégia algo socrática, ir destruindo ideias feitas.

Mas a sua marca mais singular é talvez a capacidade de nos mostrar como uma variação de perspectiva pode alterar radicalmente o modo como olhamos para o mundo, das pequenas coisas domésticas às questões estruturantes da condição humana, incluindo o amor e a morte. É possível que o seu próprio percurso, e a alteração radical que sofreu o seu quadro de referências filosóficas, ideológicas e políticas, não seja alheio a esta espécie de relativismo que enforma os seus poemas, mas Szymborska aplica o processo a um campo muito mais vasto do que a esfera restrita das crenças e convicções.

A elegia que transcrevemos nesta edição do P2, numa tradução inédita do poeta Manuel António Pina (ver pág.9), serve de exemplo. Publicada em 1993, é, segundo alguns críticos, uma lamentação pela morte de um amigo; outros crêem que o ausente é o próprio marido de Szymborska, Kornel Filipowicz, que falecera em 1990. Pouco importa. O que é extraordinário é que a autora, para falar dessa perda pessoal, opta pela perspectiva do gato, e de um gato que se refere a si próprio como se fora um sujeito indefinido, usando a conjugação impessoal. "Caminhar-se-á", ameaça, e não "caminharei".

A alegria da escrita

A rápida consagração de Szymborksa na Polónia só muito lentamente foi tendo algum eco internacional. Até ao final da década de 70, praticamente só era conhecida em alguns países de Leste, com excepção da antiga República Federal Alemã, onde já em 1973 fora publicada uma antologia dos seus poemas. As primeiras traduções inglesas chegaram nos anos 80 e a sua obra foi então lentamente conquistando um círculo restrito de admiradores internacionais.

Para Szymborska, esses foram tempos difíceis. Com a lei marcial em vigor, colaborava, com o pseudónimoStanczykówna, em revistas polacas publicadas fora do país e em publicações clandestinas.

Quando ganhou o Prémio Nobel, em 1996, era pouco mais do que uma ilustre desconhecida para a maior parte dos leitores da Europa ocidental, apesar de ter recebido, já em 1991, o prémio Goethe. Mesmo na Polónia, abandonara um pouco o centro do palco, atropelada por uma nova geração de poetas ligados à revista brulion (rascunho), que vinha congregando, desde meados dos anos 80, as novas vozes poéticas da oposição ao regime. Influenciado por poetas americanos como Frank O"Hara ou John Ashberry, o grupo reunido em torno de brulion iria dominar a cena poética polaca após a queda do Muro de Berlim.

Tudo muda com a atribuição do Nobel da Literatura, em 1996. Da noite para o dia, Szymborska é uma estrela do firmamento literário internacional. As traduções sucedem-se. Em Portugal, a Relógio d"Água publica, em 1998, Paisagem Com Grão de Areia e, mais recentemente, Instante. Na Cavalo de Ferro sai, em 2004, Alguns Gostam de Poesia, o livro que publicou com Czeslaw Milosz e que reúne uma selecção dos poemas de ambos.

Avessa a falar dos seus poemas e habituada a uma vida discreta em Cracóvia, Szymborska confessará que foi com dificuldade que lidou com a súbita fama que o Nobel lhe trouxe. O seu discurso de agradecimento do Nobel é um dos mais curtos da história, e um notável exercício de auto-ironia, no qual a autora lamenta, por exemplo, os cineastas que se atrevem a fazer biopics de poetas. "O trabalho dos poetas não podia ser menos fotogénico. Há alguém que se senta a uma mesa ou se deita num sofá e, imóvel, olha para a parede ou para o tecto. De vez em quando essa pessoa escreve umas linhas, apenas para riscar uma delas, 15 minutos depois, e lá se passa mais uma hora sem que nada aconteça... Quem suportaria assistir a uma coisa destas?". Mas o cinema até se tem interessado pela sua poesia: o realizador polaco Krzysztof Kieslowski inspirou-se no poema Amor à Primeira Vista para realizar a sua célebre trilogia Azul, Branco e Vermelho.

Ao longo de 60 anos de produção literária, Szymborska publicou apenas algumas poucas centenas de poemas, reunidos numa vintena de livros breves. Uma escassez que a autora atribui ao seu método de trabalho: "Escrevo os poemas à noite, mas releio-os à luz do dia, e nem todos sobrevivem".

Sofrendo há muito de um cancro do pulmão - era uma grande fumadora -, Wislawa Szymborska morreu durante o sono, deixando inédito um livro inacabado. Acreditou que a poesia poderia eternizar alguns momentos e alguns sentimentos, resguardando-os da morte: "A alegria da escrita./ O poder de preservar./ Vingança de uma mão mortal."

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