Primeiro o homem, só depois o escritor

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Ser jornalista na época era diferente. Não havia cursos de comunicação social. O jornalismo era o local óbvio de quem tinha amor pela escrita e pela leitura

A 1 de Fevereiro Fernando Assis Pacheco teria feito 75 anos. Foi jornalista, poeta e romancista. Como os amigos Cardoso Pires, Diniz Machado ou Mário Zambujal tinha um ouvido clínico para a oralidade. Quem o conheceu diz que a guerra o deixou desesperado pelo lado bom da vida. Produto, talvez, da sua época, não pôs a obra acima do resto. Talvez por isso tenha escrito tão pouco. João Bonifácio

Nos últimos dias tem-se assistido a uma profusão de notícias, crónicas e, como se diz agora, apontamentos televisivos sobre Fernando Assis Pacheco, que, se estivesse vivo, teria feito 75 anos no dia 1 de Fevereiro. Mas há mais uma razão para que o seu nome regresse em força: uma biografia, "Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco", de Nuno Costa Santos, que também escreveu um documentário dedicado à figura, "Saudade Burra de Fernando Assis Pacheco".

Assis Pacheco foi jornalista, cronista, poeta, novelista e romancista, para além de crítico literário e tradutor. A sua obra é parca ou, se preferirem, concisa e é um mistério que um homem tão devoto dos livros tenha escrito tão pouco fora dos jornais. De certo modo produto do seu tempo, foi antes de mais um "escritor de jornais" numa época em que, como diz o amigo Mário Zambujal, "os jornais eram feitos por escritores". Mas, dizem vários amigos, Assis nunca pôs a obra literário em primeiro lugar.

Em vida foram editados três livros de poesia: "Cuidar dos Vivos" (1963), "Katalabanza, Kilolo e Volta" (1972), "Memórias do Contencioso e Outros Poemas" (1980), uma antologia, "A Musa Irregular" (1991), e uma edição póstuma, "Respiração Assistida" (2003). Também deixou uma novela, "Walt" (1978), e um romance, "Trabalhos e Paixões de Benito Prada" (1993). Postumamente foram editados uma colectânea de entrevistas, "Retratos Falados (2001), e "Memórias de um Craque" (2005), conjunto de crónicas sobre memórias de futebol na sua Coimbra Natal.

A guerra e a vida

"Trabalhos e Paixões de Assis Pacheco" não é uma biografia de pendor académico, como "Puta Que os Pariu!", de João Pedro George, sobre Luiz Pacheco. Será mais uma homenagem generosa ao biografado, falando de forma leve de coisas pesadas.

Generosos têm também sido os muitos textos escritos recentemente. A título de curiosidade refira-se que uma larga percentagem destes coloca maior ênfase no jornalista que no poeta, ou no novelista ou no romancista. Contudo, a obra poética de Assis Pacheco não só pode ser considerada maior como desde o início criou impacto.

João Rodrigues, hoje editor na Sextante e o editor original de "Trabalhos e Paixões de Benito Prada", estudava em Coimbra na altura em que foi editado "Cuidar dos Vivos", o primeiro livro de Assis Pacheco - obra em que a minúcia poética e a recusa de lirismos já então se notavam. Segundo Rodrigues, com o livro "Assis tornou-se uma personagem mítica", muito à conta "dos poemas obre a guerra", que "não eram norma" à época.

A guerra foi um dos elementos mais marcantes da vida de Assis Pacheco. Rodrigues diz hoje que foi ela que o "transformou em alguém ansioso por vida, desesperado pelas coisas boas da vida". Contudo, e como o editor faz notar, "a obra está cheia de morte". Está, também, repleta de sentimentos bem mais negativos que a famosa bonomia que é tão gabada em Assis Pacheco.

Quando Pacheco começou a editar, o país era bastante diferente. A televisão era quase inexistente e a censura exercia o seu poder sobre os meios de comunicação. Se Mário Zambujal, que começou a trabalhar nos jornais com Assis em 1969, lhe chama "leitor voraz", já Rogério Rodrigues, que Assis trouxe para Lisboa em 1974, qualifica-o como "leitor bulímico". Onde Assis encontraria os livros num país onde eles não se encontravam só ele saberá.

O que importa é que essas leituras, filtradas pela personalidade de Assis e trespassadas pela experiência da guerra, resultaram em "Cuidar dos Vivos", cuja dimensão à época não é de diminuir: "No plano das saídas literárias o Assis e o [Manuel] Alegre eram as pessoas das gerações anteriores que nos interessavam", continua Rodrigues. "Eram acontecimentos".

Para isto terá tido importância o facto de o livro ter sido editado pela Vértice, de Joaquim Namorado, que era também uma revista com "uma difusão grande, um corpo de assinantes muito forte". Para se ter uma ideia da época, Rodrigues assinala que "o panorama do pensamento democrático português era marcado pela "Vértice" e pela "Seara Nova" - só mais tarde é que chegou "O Tempo e o Modo"".

Só depois da guerra é que Assis se tornou jornalista. Ser jornalista na época era diferente. Não havia cursos de comunicação social. O jornalismo era o local óbvio de quem tinha amor pela escrita e pela leitura.

O mundo dos jornais

Rogério Rodrigues é um bom exemplo disso. Em 1974 era professor em Moncorvo, numa escola cujo director era o escritor e poeta A. M. Pires Cabral, pai do grande poeta Rui Pires Cabral. Rodrigues tinha publicado um livro de poemas e "o Assis, que queria fazer uma série de reportagens sobre Moncorvo, queria conhecer-me". Como resultado, Assis convenceu Rodrigues "a vir para Lisboa trabalhar para o "República"".

Na altura a capital da imprensa, conta Mário Zambujal, "era o Bairro Alto". "A própria Comissão de Censura instalou-se na rua da Misericórdia, antiga rua do Mundo". A grande divisão no mundo dos jornais "não era geográfica", diz, "era antes entre matutinos e vespertinos (como o "Diário de Lisboa" ou "A Capital")". "Fechava-se o jornal às 13h30", recorda Rogério Rodrigues, "ia-se almoçar à tarde e ficava-se com o tempo todo do mundo".

Esse tempo - ou o seu equivalente à noite, quando se trabalhava num matutino - era passado na conversa, o desporto preferido de Assis Pacheco. Diz João Rodrigues: "Era gente habituada à vida nocturna depois do fecho dos jornais. Saíam e iam para as cervejarias". Dessas tertúlias faziam parte pessoas como José Cardoso Pires e Diniz Machado, ambos amigos de Assis, bem como outros escritores, como Urbano Tavares Rodrigues, Luís de Sttau-Monteiro.

Esse gosto pela conversa, pela boémia, marca não só Assis Pacheco como Cardoso Pires, Machado ou Zambujal, todos, segundo João Rodrigues, escritores com "um grande conhecimento da literatura americana, do diálogo" e "uma grande paixão pela vida, pela liberdade da rua, pela cultura popular". "No dia a dia tinham sempre resposta pronta, e resposta lisboeta, de rua".

Nessa altura, diz o editor, "os autores iam todos aos lançamentos uns dos outros", o que "desapareceu nos anos 1980". Mas o que não faziam era falar entre si de literatura. Rogério Rodrigues lembra que "os escritores nunca falavam de literatura. Falavam de pessoas e da vida. De vinho, desta ou daquela tipa. De futebol, das coristas do Parque Mayer. Não havia nada de reverente pela literatura".

No caso de Assis, diz Mário Zambujal, "as conversas podiam ser diversificadas.

Descrevia qualidades de vinhos e de petiscos, porque tinha uma memória perfeita de cada paladar. Contava as viagens que fazia. Também podia falar de livros que tinham saído ou tinham encontrado - e chamava-nos a atenção para eles. Ou então falava de bola, de que gostava imenso".

Segundo João Rodrigues, uma das razões para a escassa obra de Assis foi a sua vida "intensíssima". "Saía de manhã, ia para o trabalho, vinha almoçar, ia ao jornal, ia para casa. Depois havia viagens, comida com os amigos, bebida. Não praticou uma vida virada para a sua obra, mas sim para a vida".

Tal como os outros amigos, Rodrigues acredita que a profissão de Assis "impedia-o de fazer coisas". Além disso, "o que ele conhecia do mundo vinha de ser jornalista. Adorava falar com pessoas, ouvir. Gostava de ser intermediário". É preciso ver que, como refere Mário Zambujal, "o jornalista antigo era pau para toda a obra. Tanto fazia a reportagem de um incêndio nas barracas como de uma recepção numa embaixada". E isso permitia "ver muito mundo", que era algo por que Assis tinha muito apreço.

Tudo isso "é muito difícil de conciliar com viver fechado em si próprio - que é algo a que ser romancista obriga", conclui João Rodrigues. A isso acresce o facto de, segundo Rogério Rodrigues, na época não haver "pressão mediática para se escrever". Os escritores não tinham uma imagem tremendamente séria de si mesmos - João Rodrigues recorda que certa vez Assis apresentou um dos policiais de Diniz Machado "vestido de detective".

Podemos achar que Assis, que segundo Mário Zambujal tinha uma rara capacidade de perfeição na rapidez, podia ter deixado mais. Mas, diz o autor de "Crónica dos Bons Malandros", "para isso teria de ter deixado a vida, os filhos, a comida, as viagens. Para os leitores teria sido melhor, mas para quem tem o trabalho se calhar não".

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