O problema da habitação

A mortalidade, uma marca de água heideggeriana sempre reconhecível na poesia de Manuel António Pina, domina o mais recente livro do autor

O mais recente livro de poesia de Manuel António Pina parece pedir um envio para o primeiro verso do primeiro poema da sua obra, do longínquo ano de 1974: “Os tempos não vão bons para nós, os mortos”. O envio colide porém com o facto de o poema, como em boa parte o primeiro e segundo livros do autor - “Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde” e “Aquele que quer morrer”, de 1978 -, serem as vítimas mais notórias da poda a que a sua obra poética foi submetida na “antologia pessoal” editada também em 2011, “Poesia, saudade da prosa”. Trata-se de uma “revisão”, em sentido forte. Percebemos, agora, que quem falava naquele poema não eram os mortos, mas antes o “ser para a morte”, essa marca de água heideggeriana sempre reconhecível na poesia de Pina. A revisão opera sobre poemas do livro inicial como “As pessoas” - “As pessoas têm a sua casa e a sua doença / Mas a casa das pessoas é a sua doença” - ou “Palavras não”: «“orque te perderei para sempre como / o viajante perde o caminho de casa”.

“Como se desenha uma casa” organiza-se em duas partes - “Ruínas” e “Amigos e outras moradas” -, antecedidas pelo poema que dá título à obra e que funciona como preâmbulo. O poema começa por “traduzir” uma tela de Joana Rêgo, dando a ver a impresença do mundo e a omnipresença da morte, na figura originária da mãe: “Primeiro abre-se a porta / por dentro sobre a tela imatura onde previamente / se escreveram palavras antigas: o cão, o jardim impresente, / a mãe para sempre morta”. A última quadra do poema apresenta a casa como espectralidade e remorso, sugerindo um pouco convincente caderno de encargos para a sua redenção: “Uma casa é as ruínas de uma casa, / uma coisa ameaçadora à espera de uma palavra; / desenha-a como quem embala um remorso, / com algum grau de abstracção e sem um plano rigoroso”.

“Ruínas” abre com um poema, “O regresso”, em que a casa parece ser um outro nome para Ítaca: “Como quem, vindo de países distantes fora de / si, chega finalmente aonde sempre esteve / e encontra tudo no seu lugar”. A condição dessa coincidência feliz do ser com o lugar é a “tardia idade” do viajante, que só então, nessa idade “em que se confundem ele e o caminho”, consegue comer “um pão primeiro / sem o sabor de palavras estrangeiras na boca”. O pão na boca, ou seja, a presença não mediada da coisa, dispensaria enfim a palavra, por definição “estrangeira”: a coisa seria a linguagem muda e primeira do mundo e a boca dispensaria pois essas coisas segundas, as palavras. Desde os seus inícios, a poesia de Pina, demasiado sábia da condição verbal do Ser, coloca a hipótese que de novo percorre este livro até ao último poema, “Passagem”, no qual a possibilidade de “estar assim tão perto do fogo” é relançada com o fervor céptico de sempre: “Onde, porém? Em que lugares reais, / tão perto que as palavras são de mais?”. Não surpreende que a pergunta encerre a segunda parte, dedicada ao tópico místico da “morada”, aqui outro nome para os amigos, ou melhor, para esse lugar, a amizade, em que as palavras são dispensáveis. Ao invés, no início do livro, em “Relatório”, a palavra dá a ouvir o morto como aquele, e aquilo, que não cessa de chamar por nós: “Então, com as luzes apagadas, / ouço vozes chamando, / palavras mortas nunca pronunciadas / e a agonia interminável das coisas acabadas”.

No ensaio de 1951 “Construir, habitar, pensar”, Heidegger afirma: “Ser homem quer dizer: existir sobre a terra como mortal, isto é: habitar”. O homem habita a mortalidade, pois, nas palavras do filósofo, “Só o homem morre, morre continuamente, ao longo de todo o tempo em que mora na terra”. Num dos poemas grandes deste livro, “O retrato”, dedicado ao “menino que caiu da moldura do retrato”, tornando-se uma lembrança numa “sepultura do passado”, aprendemos que o nome do menino é, em rigor, “temporalidade”, o mesmo é dizer, “doença”: “O seu nome é agora menos um nome que uma doença rara / que te desfigurou a cara, uma doença sem nome e sem cura; / cabereis os dois na mesma sepultura?”. O sentimento agudo da impresença do mundo, muito reconhecível em Pina, é reforçado neste poema pelo sentimento da dissolução da memória, essa floresta insone em que o sujeito se perde nas suas múltiplas reencarnações: “De todos os meus sonhos o mais insone é este, / o de alguém perguntando por um estranho / algures, onde o Lexotan se tornou literatura. / Caberemos todos na mesma sepultura?”.

Não surpreende que outro dos memoráveis poemas deste livro se intitule “As coisas”, um título que tanto deve a Heidegger como ao Jorge Luis Borges poeta, autor de um outro famoso poema com esse título. O poema de Borges, porém, termina com dois versos que tomam “o partido das coisas”, já que elas durarão para lá da nossa morte, sem saberem nunca que nos fomos. Em Pina, a coisa é inscrição de uma perda - “Há em todas as coisas uma mais-que-coisa / fitando-nos como se dissesse: ''Sou eu'', / algo que já lá não está ou se perdeu / antes da coisa, e essa perda é que é a coisa” -, numa quase simetria da coisa que é a nossa ausência, quando o mundo enfim nos acolhe: “Em certas tardes altas, absolutas, / quando o mundo por fim nos recebe / como se também nós fôssemos mundo, / a nossa própria ausência é uma coisa”. Coisas e casas colocam pois o mesmo problema: o problema da habitação. Como se diz em “Talvez de noite”, trata-se de “uma casa dentro de uma casa, / uma coisa viva e palpável como a morada de um cego”. Uma imagem dentro de uma imagem, uma ilusão dentro de uma outra. E, no fim, o triunfo de um ponto de vista: o da cegueira. Essa com que habitamos a casa que supostamente nos protegeria do triunfo inevitável das coisas.

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