Mundial 2014 será um "mundo de elefantes brancos"

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"Veremos a construção de um mundo de elefantes brancos" no Brasil, diz Juca Kfouri, sobre o Mundial 2014 Foto: Miguel Manso

O Campeonato do Mundo volta a casa em 2014. O país do futebol vai entrar em festa, que se prolonga até 2016 com os Jogos Olímpicos. Todo o brasileiro satisfeito. Todo, menos Juca Kfouri.

Durante dois anos, o Brasil vai receber as duas provas desportivas mais importantes do planeta. O país do futebol vai entrar em festa com o Campeonato do Mundo em 2014 e continua até 2016 com os Jogos Olímpicos. É todo um samba feito desporto e deixa todo o mundo satisfeito. Todo o mundo não, Juca Kfouri, o jornalista mais polémico do Brasil é contra e aponta o dedo à corrupção.

Fala em entregar a soberania de um país à FIFA, o organismo que controla o futebol mundial. A isenção de impostos, os convidados VIP, publicidade enganosa, as bebidas alcoólicas de volta aos estádios. "Tudo isso já está no caderno de encargos", conta Juca. Quem?

Juca Kfouri (lê-se "quifuri") é um homem contra o sistema, uma voz isolada que grita no meio do silêncio, palavras que são balas disparadas aos "cartolas", os engravatados. Fá-lo na sua coluna no jornal Folha, de São Paulo; no seu programa na rádio CBN ou na TV (ESPN). São diárias as suas declarações contra a política da FIFA e a Ricardo Teixeira, presidente da Confederação Brasileira de Futebol.

Ele é o rosto dessa "oposição" silenciada, um dos mais mediáticos do país, mas praticamente um desconhecido em Portugal, pelo menos pelos portugueses já que os brasileiros, durante a semana de férias que o jornalista passou em Lisboa no início do ano, faziam questão de lhe falar quando se cruzavam com ele na rua. Como diz o seu biógrafo (sim, já tem uma biografia publicada) Kfouri é um "militante da notícia".

À semelhança do senhor K. do livro de Kafka, Kfouri desafia o poder instalado no Brasil. Ataca-o. Mas ao contrário do Processo, onde Josef K. desiste e acaba por morrer, Juca K. parece crescer, cada vez mais mediático e omnipresente.

Não consegue estar calado

Não é fácil a Kfouri passar despercebido. É alto, gosta de falar num tom raramente baixo e gesticula muito, uma espécie de elefante numa loja de louça. O oposto, conta, do amigo Luís Fernando Veríssimo, o "jornalista das letras do Brasil" que era capaz de passar uma noite calado a observar e depois fazer um livro de contos dessas horas passadas.

Não, Juca Kfouri, 61 anos, nunca passa na sombra e não sabe fazer jornalismo sem denunciar. Não consegue estar calado. Por isso, os seus detractores não hesitam em chamá-lo de "maníaco por fracasso", "mal-humorado" ou antipatriota".

Formado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo, foi director das revistas Placar (de 1979 a 1995) e da Playboy (1991 a 1994). É comentarista desportivo desde 1984, entrou na Rede Globo em 1988 e saiu em 1994).

Actualmente está ESPN-Brasil, foi colunista da Folha entre 1995 e 1999, quando foi para o diário Lance!, onde ficou até voltar, em 2005, para a Folha. O seu trabalho deu-lhe notoriedade na sociedade civil, mas também fê-lo um coleccionador de processos.

Kfouri já enfrentou perto de uma centena de acções por calúnia, injúria e difamação, desde 1981. É réu em processos movidos pelo treinador de futebol (e antigo seleccionador do Brasil) Vanderlei Luxemburgo, pelo ex-presidente da Federação Paulista de Futebol, Eduardo José Farah, pelo presidente da Confederação Brasileira de Futebol, Ricardo Teixeira, pelo líder máximo da FIFA, Joseph Blatter, entre outros, alguns colegas de profissão. "São pessoas que não aceitam críticas e recorrem à Justiça na tentativa de intimidar a imprensa", conta Kfouri, referindo-se aos dirigentes desportivos e aos "cartolas", o seu alvo preferencial.

O jornalista lembra também que, grande parte dos processos que ainda tem, são do tempo de uma série de acusações feitas pela revista Placar, na década de 80, sobre a "Máfia da Loteria Esportiva", quando era editor da publicação.

E prepara-se para aumentar o currículo de queixas. O tom das suas críticas aumentou quando a FIFA decidiu entregar ao Brasil a organização do Campeonato do Mundo, em 2014, e o Comité Olímpico Internacional também escolheu o país como sede dos Jogos de 2016. Há muito dinheiro em jogo, mas distribuído por poucas mãos. O último dos seus cinco livros publicados chama-se Por que não desisto - Futebol, Poder e Política (2009).

"Temos os dois maiores eventos desportivos da humanidade e vamos fazer ao nosso modo, isso é preocupante", destaca. "A França [em 1998] teve como símbolo Platini, a Alemanha [2006] teve Beckenbauer. Aqui na carência vamos ter o mesmo presidente [da Confederação Brasileira de Futebol (CBF)] de há 21 anos, Ricardo Teixeira...", ironiza. O Brasil é o país de Pelé, Zico, Ronaldo, Ronaldinho, Neymar...

Tinha de acontecer. O Campeonato do Mundo (no Brasil chamam-lhe Copa do Mundo) volta à casa do futebol (sabendo que foi a Inglaterra que inventou este desporto). É a primeira vez depois da grande decepção de 1950, quando o Brasil perdeu a final do Mundial no Maracanã, frente ao Uruguai. Dois anos depois, o país do futebol vai receber os Jogos Olímpicos. É aqui que entra, mais uma vez, Juca Kfouri.

"Se fosse para fazer a Copa do Brasil no Brasil, aí sim, valeria a pena... Se fosse para renovar as cidades, melhorar a vida dos brasileiros, aí sim, estaria correcto", conta. "Não uma Copa do Mundo da Alemanha no Brasil. Claro que o Brasil pode fazer uma Copa, mas tem de fazer dentro das nossas possibilidades". O receio - e dá o exemplo do que aconteceu em Portugal com o Euro 2004 -, é o que irá acontecer depois do evento acabar.

"O que vai acontecer é que veremos a construção de um mundo de elefantes brancos", diz, referindo-se aos estádios. Sem esquecer o principal responsável, Ricardo Teixeira, presidente da CBF, "hoje um dos cinco homens mais poderosos do país". "Hoje poucas pessoas mandam tanto quanto ele por aqui...". (<_ahref3d_22_http3a_ _static.publico.pt2f_docs2f_desporto2f_brasilemmudanca22_="">Fotogaleria do Brasil em mudança)

E o receio é que se repitam os "disparates" de provas anteriores. "Na Cidade do Cabo [Mundial 2010] fizeram um estádio maravilhoso, uma das coisas mais lindas que já vi. Mas desalojaram quatro mil famílias. Agora falam em demolir porque nunca mais ocuparam o estádio", lembra Kfouri. "Vamos repetir isso no Recife, apesar de o Náutico ter dito que poderá usar o novo estádio. Mas e em Brasília, Cuiabá, Natal? Nem futebol profissional há por lá".

O que assusta o jornalista é um custo tão grande para tão pouco tempo. E cita o Soccernomics, a versão futebolística de Freakonomics. "Nenhum país ficou mais rico por fazer uma Copa do Mundo, mas todos ficaram mais felizes durante um mês", diz. Vale a pena pagar isso para ver um país feliz durante esse tempo?, pergunta e dá a resposta. Esta é negativa e, por isso, tem andado a espalhar a sua preocupação por onde passa.

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