Zadar e o Órgão do Mar

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O pôr do sol visto em Zadar é certamente um dos mais bonitos do mundoDebaixo dos degraus. 35 tubos e uma caixa de ressonância conjugam-se para produzir um Órgão do MarIgreja de Santa Maria Centro de Zadar visto da Porta do MarCampanário de Santa Anastácia: o melhor miradouro sobre a cidadeA Porta Terrestre, de factura veneziana, é uma das duas entradas da cidade

O Órgão do Mar é uma escadaria monumental que emprega o mar e o vento para criar espantosas melodias ondulantes. Uma mais-valia excepcional para Zadar, cidade-península já abençoada com uma localização idílica e um notável sortido de jóias patrimoniais. Luís Maio(texto e fotos) foi saborear a mística da antiga capital do Norte da Dalmácia

Começa pela localização geográfica, que é verdadeiramente espectacular. Zadar, ou melhor, o seu centro histórico, cresceu sobre uma península, emoldurada pelo Adriático, na ponta norte da Dalmácia. É uma língua de terra de um quilómetro de comprimento por quatrocentos metros de largura, uma antiga ilha no centro de uma constelação de trezentas ilhas e ilhotas, ainda hoje na maior parte desertas.

A própria Zadar foi ciclicamente construída e destruída ao longo de perto de três mil anos de história. Daí uma paisagem urbana caprichosa e multifacetada, na qual se destacam várias jóias patrimoniais. Poderia rivalizar com as vizinhas Split ou Dubrovnick no capítulo dos museus a céu aberto, não fossem as bombas da Segunda Grande Guerra e os estragos mais recentes, causados pela Guerra Croata da Independência.

Ontem como hoje, no entanto, os danos acabaram por funcionar como oportunidades de renascimento. Desse ímpeto resulta certamente o Órgão do Mar, obra de meados da década passada já consagrada entre as mais brilhantes peças de requalificação urbana do nosso tempo. Integrada na frente marítima de Zadar, esta instalação sonora tem vindo a ser tão aplaudida pelos arquitectos como usufruída pelos locais e pelos turistas. Até porque consegue esse milagre de inovar e entreter sem descaracterizar um dos recantos mais poéticos do Mediterrâneo.

Grande sortido da História

Os primeiros colonos de que há notícia chamavam-se Liburnianos e devem ter assentado arraiais há 2700 anos. Depois chegaram os romanos, os bizantinos, os croatas, os venezianos, os cruzados, os húngaros, os napolitanos, os otomanos, os franceses, os austríacos e os italianos. Estes todos e mais uns quantos pelo meio tiveram a sua época de glória e deixaram a sua marca em Zadar, até 65% da área construída da cidade vir abaixo na Segunda Grande Guerra. Algumas das edificações mais antigas foram restauradas, mas a maior parte foi substituída por blocos de prédios num estilo internacional aligeirado ou de veraneio, concordante com o novo estatuto de estância turística da ex-Federação Jugoslava.

A grelha ortogonal que disciplina o perímetro urbano data do tempo dos romanos, a praça principal é também um antigo fórum romano. Antes como agora, esta praça é a sala de estar da cidade, onde todas as ruas se cruzam e meio mundo vem dar dois dedos de conversa, abancando junto dos enormes fragmentos do antigo pórtico, expostos a céu aberto. A Idade Média viu nascer um colar de igrejas em volta do fórum, que frequentemente empregaram a pedra romana como material de construção. O caso mais flagrante é o da Igreja de São Donato, que veio mesmo a integrar duas colunas inteiras do dito pórtico, quando foi erguida nos inícios do século IX. A igreja com a forma de rotunda perfeita, actualmente usada como palco de concertos, é uma das peças mais bem preservadas de toda a arquitectura pré-românica.

Testemunho do esplendor da antiga capital da Dalmácia bizantina, São Donato é hoje o principal ícone da cidade. Mas o centro antigo de Zadar conta com nada menos de 34 igrejas, incluindo a de São Lourenço, uma construção romanesca do século XI, a que se acede através do Cafe Lovre, por sinal um dos mais antigos cafés da Europa. Igreja e café ocupam a face setentrional da Praça do Povo, de resto emoldurada por faustosos palácios e edifícios públicos renascentistas. Dignas de menção especial são também as duas entradas da cidade, a Porta Marítima e a Terrestre, ambas de factura veneziana, bem como as muralhas erguidas no século XVI para defesa contra as frequentes ofensivas otomanas. Não chegaram a ter uso militar, mas em compensação foram convertidas pelos austríacos numa aprazível promenaderomântica, que oferece vistas panorâmicas sobre o miolo histórico da cidade com o Adriático a brilhar em contraluz, por entre as silhuetas dos edifícios. µ

± O melhor miradouro sobre a cidade é, no entanto, o alto do majestoso campanário da catedral gótica da Santa Anastácia, colado à supracitada Igreja de São Donato. Daí se desfrutam as melhores vistas a 360 graus sobre a península, as ilhas e o continente, enquanto se espreitam os transeuntes que circulam cá em baixo, no fórum e ruas adjacentes. Montra de mais de dois mil anos de história, Zadar não é, porém, uma cidade fossilizada só-para-turista-ver, contando com uma forte demografia juvenil, boa parte da qual universitária. Uma das instituições académicas mais antigas da Europa, a universidade está sediada num edifício neoclássico mesmo à beira-mar, que constitui outro belíssimo postal da cidade.

Jovens e turistas justificam a profusão de lojinhas de roupa e bugigangas sediadas em edifícios plurisseculares, mas também de esplanadas e locais de diversão nocturna, sobretudo concentrados nas imediações do cais. Mais do que visitar este ou aquele monumento, no entanto, o que vale a pena fazer na cidade-península é vaguear ao acaso nas suas estreitas ruas pedonais, pavimentadas com grandes lajes de pedra calcária. Essa pedra, também empregada na construção dos edifícios mais nobres, é reluzente, emprestando uma luz insólita a essa combinação singular de obras-primas do passado, mamarrachos modernos, ruínas e vazios urbanos, que constitui o centro histórico de Zadar.

Instalações mágicas

Na pressa da reconstrução decorrente da Segunda Guerra Mundial, a maior parte do litoral ocidental da península foi coberto por um murete de betão, pouco fotogénico e nada propício à fruição do Adriático. No início do novo milénio, a edilidade lançou-se num projecto de requalificação que levou à substituição do infeliz murete por um passeio marginal, coroado na ponta norte por uma escadaria em mármore de 70 metros de comprimentos, cujos degraus dão acesso directo ao mar.

Parece uma versão estilizada de um desses sonhos da Arcádia que deleitava a fina- flor da aristocracia grand tour do século XVIII. Com a grande diferença, claro, dos figurantes dessa paisagem idílica não serem os campónios de outrora, mas os actuais veraneantes e turistas de fato de banho. Agora Zadar é também esse luxo: um destino por excelência para o turismo cultural, onde se pode ir a banhos no mar nas margens do centro histórico. A escadaria convida ao mesmo tempo que protege do mar, mas é muito do mais do que isso, quando por baixo dos seus degraus se encontram 35 tubos em poliestireno e uma caixa de ressonância que se conjugam para produzir um Órgão do Mar.

Accionado pelo movimento das águas do mar e pelo vento, o engenho debita a toda a hora combinações sónicas aleatórias. De uma forma ou de outra, no entanto, acabam por soar harmoniosas ou musicais, em virtude da combinação matemática de tubos de comprimentos diferentes. É extraordinário mergulhar ou nadar nas águas tépidas do Adriático ao som desta prodigiosa música dos elementos, mas mais ainda é tomar assento nos degraus de mármore para assistir ao pôr do sol - certamente um dos mais bonitos do mundo - , tomando-a por banda sonora.

O Órgão do Mar é uma obra da autoria do arquitecto croata Nikola Basic, o mesmo que assina a vizinha instalação de luzes sob o título Saudações ao Sol. É um círculo constituído por trezentas placas de vidro, representando os planetas e o nosso sistema solar, que ao longo do dia vai absorvendo luz solar para ao início da noite passar a devolvê-la sob a forma de coreografias multicolores. As crianças, e não só, aproveitam para correr atrás dos padrões luminosos e ensaiar uns passos de dança ao som do Órgão de Mar, forma de entretenimento que oscila entre a beatitude e a feira popular. A ideia de produzir arte e entretenimento envolvendo os elementos naturais, ao mesmo tempo que se requalifica a frente de mar da cidade é, em qualquer dos casos, um achado, que encanta como um truque de magia.

O Órgão do Mar é exemplar único, mas não será 100% original, no sentido em que se registam intervenções semelhantes em pelo menos dois outros locais. Na ponta ocidental da área recreativa de Golden Gate, em São Francisco, nasceu em 1986 (ou seja, quase vinte anos antes do engenho de Zadar) o Órgão das Ondas, um "ambiente artístico" formado por um colar de tubos de comprimentos diferentes que produzem um caleidoscópio de sonoridades alienígenas quando tocados pelas águas. Mais recentemente, em 2002, a estância balnear inglesa de Blackpool viu a sua frente de mar requalificada, nomeadamente com a construção de um Órgão de Marés, escultura de 15 metros de altura e 18 tubos, accionados por outros oito tubos em contacto com o mar. Soa como um carrilhão estratosférico, muito diferente dos ecos do mar dentro das conchas em São Francisco e das doces melodias ondulantes de Zadar.

A Fugas viajou a convite do Turismo da Croácia

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