"É verdade que perdi um pouco a cabeça mas não o deixei a morrer na lama"

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Despres: "Não é verdade que não tenha agradecido ao Paulo" Foto: Mariana Bazo/Reuters

As imagens do episódio correram mundo. Na oitava etapa do Dakar 2012, Cyril Despres estava atolado e não conseguia sair da lama. Pouco depois, apareceu o português Paulo Gonçalves, que ajudou o motarda sair do "atascanso", mas que, depois, não mereceu a mesma solidariedade do francês, acabando por ficar preso no mesmo obstáculo. O piloto francês da KTM virou costas e arrancou, enquanto o português ficou a esbracejar, pedindo ajuda. Isto foi o que as imagens mostraram, mas, segundo os seus protagonistas, não contam a história toda.

O francês reconhece que perdeu "um pouco a cabeça porque estava a perder o Dakar", mas revela que disse a Gonçalves que Rúben Faria, o seu companheiro de equipa, estava a chegar e que este o poderia ajudar. Gonçalves é que não ouviu, porque estava com tampões nos ouvidos. Aquele troço acabaria por ser cancelado, sem penalizações para os pilotos, e Despres acabaria por conquistar o Dakar pela quarta vez - já o tinha feito em 2005, 2007 e 2010 -, após uma luta intensa com o espanhol Marc Coma, em que cada segundo foi importante.

De passagem rápida por Portugal, para agradecer a ajuda de Rúben Faria, Despres, de 37 anos, conversou com o PÚBLICO e disse que gostava de ter corrido no Dakar nos tempos em que a prova tinha mais aventura e menos tecnologia.

Quarta vitória no Dakar. Não se cansa de ganhar?

Enquanto não me custar a preparação física, não me canso de ganhar. A sensação de lutar e a sensação de ganhar é algo que me agrada.

Gostava de ter participado num Dakar há 20 anos, com menos apoio tecnológico e mais aventura?

Sim. Sempre gostei das motos dos anos 80. Fui mecânico e acompanhei as corridas dessa altura. É como dizes, havia menos tecnologia. Quando vejo uma Ténéré ou uma Africa Twin destes anos... Não sou o piloto mais rápido do mundo, o que acontece é que conheço bem a mecânica e tenho o road booke estou sempre à procura das pistas boas. Gostava de ter experimentado, mas agora já não posso.

Gosta de motos desde pequeno...

Não pude começar muito cedo. Só comecei há 14 anos, o que também não é ser velho... Tudo começou com uma moto pequena que tinha com o meu irmão, que era três anos mais velho. Eu tinha nove anos. Depois, até aos 14 anos, joguei futebol como muitos e, quando fiz a primeira comunhão, disse à minha família que a única prenda que queria era dinheiro e comprei a minha primeira moto, sem que o meu pai soubesse.

Este triunfo no Dakar foi o mais difícil? Teve uma luta muito cerrada com o Marc Coma, com diferenças de poucos segundos...

Já estou acostumado. Costumo dizer que fazemos maratonas com motos, mas nas maratonas não se luta em cem metros. Como tudo se decide em minutos ou segundos, temos uma pressão enorme para não ir contra nenhuma pedra, para não cair numa duna. Nos primeiros dias íamos no máximo e como estávamos muito próximos tínhamos de prestar atenção a todas as curvas. Todas as decisões de navegação tinham de ser boas e rápidas.

Foi por essa pressão que aconteceu aquele episódio com o Paulo Gonçalves...

Estava como louco. Nesses momentos apenas sabes que tens de sair dali, que os minutos estão a passar. Passaste seis dias a lutar por segundos e agora estás ali a perder minutos e pode ser que vás perder a corrida. A mim aconteceu-me em 2001, quando fui ajudar o Jordi Arcarons na areia, e depois foi a minha moto que ficou presa e perdi uma hora e meia. Foi uma situação que nunca me tinha acontecido, de ficar preso na lama. Ao ver as imagens, as pessoas pensaram coisas que nem eu, nem o Paulo, nem o Rúben pensámos. A ajuda que me deu é uma prova de respeito entre o Paulo e eu. Não é verdade que não tenha agradecido ao Paulo. Estávamos a lutar contra o tempo e algumas imagens mostram que eu não falei com ele, o que não é verdade. Não tenho nenhum problema, e a verdade é que o Rúben estava a chegar e eles são amigos. Naquele momento, estava a lutar pela vitória. É verdade que perdi um pouco a cabeça, pois sabia que estava a perder o Dakar. Não o deixei a morrer na lama, ele estava de pé e bem. Os que me estavam a ajudar também foram ajudar o Paulo e 110 quilómetros depois apertei-lhe a mão e agradeci-lhe. Nós não nascemos para fazer 800 quilometros por dia numa moto, lutar por segundos com um enorme esforço físico e mental.

Como foi possível que vocês tenham caído naquele obstáculo?

Foi um sítio onde não se via nada e a lama não estava lá quando o "carro zero" abriu a pista dois dias e meio antes. Nós chegámos a esse lugar e algo mudou na natureza. Tínhamos o road book, mas aquilo surpreendeu-nos a todos.

Qual foi a importância do Rúben Faria na sua vitória?

O troféu pesa dez quilos e cada um fica com um quilo. Um quilo para o Rúben, um para o mecânico, um para o manager, um para o fisioterapeuta, um para preparador físico em casa, um quilo para mim, talvez dois. E um para a Red Bull e outro para a KTM. É complicado o trabalho que ele faz. No papel, o resultado dele não é bom, mas trabalhámos para ganhar e fizemos esse trabalho na perfeição.

Hélder Rodrigues tem condições para lutar pela vitória no futuro?

É verdade que ele ficou surpreendido com a nossa velocidade, mas, sim, ele tem a velocidade e possibilidades. A verdade é que não o conheço tão bem como ao Rúben.

E o Rúben?

Ele está a aprender bastante e vou ajudá-lo.

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