RTP, episódios de uma eterna servidão

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Depois de um programa vergonhoso, Reencontro , eis que chegou o despedimento de quem teve a coragem de o criticar

N ão esperava ter razão tão depressa. Melhor: não esperava que o diagnóstico realizado pelo grupo de trabalho para o serviço público de comunicação social se revelasse tão certeiro tão depressa: é que foi há apenas dois meses que dissemos temer o "modelo de informação que o Governo aparenta defender, por considerarmos que permitirá perpetuar a influência, quando não a interferência, do poder político" na televisão e na rádio públicas. Ora aí está: por mais justificações pífias que se procurem, não restam muitas dúvidas sobre a relação directa entre um lamentável programa emitido pela RTP a partir de Angola e o fim das crónicas de Pedro Rosa Mendes nas manhãs da Antena 1.

A primeira vergonha começou com a emissão, a partir de Luanda, de um Prós e Contras rebaptizado como Reencontro . Quando conheci o objectivo da produção luandense coreografada por Fátima Campos Ferreira temi o pior - quando assisti à emissão, o pior foi ainda pior. Não fiquei apenas pessoalmente incomodado, senti que a democracia portuguesa saía dali enxovalhada.

Pedro Rosa Mendes, um profundo conhecedor de Angola, foi magistral na sua crítica àquela vergonha. "O serviço público de televisão tem estômago para muito, alguns dirão que tem estômago para tudo, mas o "reencontro" a que assistimos foi um dos mais nauseantes e grosseiros exercícios de propaganda e mistificação a que alguma vez assisti", disse na sua crónica semanal. "A nossa televisão foi a Luanda socializar com os apparatchiks do regime", prosseguiu, antes de retratar impiedosamente o regime de Eduardo dos Santos e de criticar a "subserviência" da emissão da RTP. É uma crónica que merece ser ouvida. É um texto que nos reconcilia com o jornalismo quando exercido de espinha direita.

Sucede que, na RTP, apesar do tal "estômago para muito", nunca houve estômago para críticas tão directas e francas. Por isso não duvido de que Pedro Rosa Mendes não falta à verdade quando revela que lhe foi dito que "a administração da casa não tinha gostado da última crónica sobre a RTP e Angola". Com uma ressalva: talvez não tenha sido a administração, talvez tenha sido quem a representa, o que vai dar ao mesmo. Na RTP, sempre houve muitas ordens que não precisaram de ser dadas para serem assumidas pela hierarquia.

T enho por hábito ser frontal e inconveniente, pelo que não posso fingir que não vejo. E quem, na RTP, deu a cara pelo fim da série de crónicas Este Tempo, que incluía a contribuição de Pedro Rosa Mendes, não foi a administração, pois esta sacudiu rapidamente a água do capote. A direcção de informação da Antena 1 também não se ouviu. Quem apareceu foi um velho conhecido: Luís Marinho, antigo director de informação da RDP, depois director de informação da RTP, depois administrador, agora "director-geral de conteúdos".

Coloco propositadamente as aspas: como recordou esta semana no Jornal de Negócios Manuel Falcão, "o cargo de director-geral da RTP não está previsto no quadro legal da empresa", e isso não sucede por acaso: na última revisão da lei, optou-se por não criar esse cargo "para evitar um conflito de interesses entre as áreas da informação e da programação e para manter a autonomia dos respectivos directores". Mesmo assim, a administração criou o cargo e, estranhamente, ou talvez não, a ERC aprovou a nomeação e o Parlamento ignorou a ilegalidade. Nesse mesmo texto de sexta-feira passada, Falcão duvidava "que o director-geral fosse apenas controlar orçamentos, meios de produção e emissão". Está visto que não foi. Não só assumiu agora o fim da rubrica Este Tempo , como esteve na famosa viagem a Angola, onde participou nas assinaturas de protocolos promovidos pelo ministro Miguel Relvas e seguiu, in loco e em pose de atenta supervisão, o tal Reencontro emitido de Luanda.

Agora, que Marinho voltou a reencarnar num lugar executivo na RTP, recomendo a leitura do seu depoimento na ERC aquando do inquérito às pressões que teria havido por altura da divulgação, pelo PÚBLICO, das condições em que José Sócrates tirou a sua licenciatura. Na altura, era director de informação da RTP e assumiu que não recebera qualquer telefonema do gabinete do então primeiro-ministro (ao contrário do que sucedera com responsáveis de outros órgãos de informação), antes que fora por sua "decisão editorial" que a RTP não noticiara o caso mesmo quando este já se tinha tornado incontornável. Como já referi, há coisas que, naquela casa, são assim porque... são assim.

O que se passou por estes dias comprova - como se tal ainda fosse necessário - que o nosso serviço público de rádio e televisão continua fiel às lógicas de submissão aos poderes do momento, um comportamento que sempre teve, com excepção de raríssimos períodos. Quando saiu o relatório do grupo de trabalho, muitos vieram dizer que este era ofensivo para os trabalhadores e jornalistas da RTP apenas por lembrar a longa história de interferências, ilegítimas e ilegais, de todos os governos. Não tinham razão, e só estranho agora o silêncio de tantos desses "ofendidos" face ao servicinho de Luanda. Foi preciso ser um colaborador externo - para mais com um vínculo precário, como se viu - a fazê-lo. É isto que mostra como não basta ter boas intenções e boas leis para garantir a independência dos operadores públicos, é preciso ter também uma cultura de espinha que não dobra, algo infelizmente mais raro do que se pensa.

Na sua crónica de despedida, Pedro Rosa Mendes toca neste ponto ao referir que "as escolhas-limite se fazem todos os dias" e "que quem vive de espinha dobrada em tempo de paz" dificilmente será capaz de "endireitar a espinha em tempos difíceis". Não sei a quem ele se refere, nem isso é importante. Não espero - não posso esperar - que todos sejam heróis e sei bem que as democracias também são os melhores regimes possíveis precisamente porque os homens são imperfeitos. Daí que não acredite na redenção sempre prometida e sempre iludida do nosso "serviço público", preferindo antes uma paisagem povoada pelo máximo de operadores, uma paisagem plural mesmo que feita de muitas imperfeições.

Isso é tanto mais verdade quanto os tempos são de crise e, no país, como disse Rosa Mendes, se instalou "uma noção puramente alimentar da dignidade individual". Ora se isso se traduz em "está caladinho para guardares o trabalhinho", se no país os governos já têm poder a mais, então que não tenham também tanto poder numa área tão sensível como a rádio e a televisão. Os privados podem ter, e têm, muitos defeitos, mas são eles que, há muito, asseguram que há realmente pluralismo e "inconveniências". Uns podem ceder a pressões, mas nunca cedem todos. É por isso que acredito num pluralismo de operadores imperfeitos e não acredito no milagre impossível de um serviço público sem pecado. Isso não existe. Jornalista (jmf1957@gmail.com)

PS: Tenho por hábito declarar sempre os meus interesses. Esclareço assim que quando Pedro Rosa Mendes foi processado por José Eduardo dos Santos em 1999 eu também fui: por dirigir o PÚBLICO e por um editorial que então escrevi. Luís Marinho também me processou, como director do jornal, por causa de uma crítica de televisão de Eduardo Cintra Torres de 2006. Em todos esses processos fui absolvido.

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