As idiossincrasias e os méritos de Mourinho

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José Mourinho é o “special one” e, para muitos, o melhor treinador da actualidade. Mas nem por isso deixou, anteontem à noite, de aprender uma valente lição: o Barcelona não deve ser desafiado com uma estratégia poltrona e com um “onze” hipotenso, a exemplo do que o técnico do Real Madrid havia optado na generalidade dos anteriores nove confrontos. A forma mais eficaz de combater a melhor equipa de todos os tempos é – ficou irremediavelmente provado – olhá-la de frente e sem cismas. O pior para Mourinho é que, desta vez, nem os méritos dessa mudança de ardil lhe vão ser maioritariamente tributados pela crítica espanhola que verdadeiramente interessa.

O bom jogo que o Real Madrid foi capaz de realizar na Catalunha (na primeira meia hora chegou a ser demolidor) foi principalmente relacionado com três circunstâncias: uma atitude positiva; uma defesa alta (muitos metros à frente do que é hábito neste tipo de confrontos); e uma equipa em que couberam unidades desequilibrantes como são Ozil e Kaká, ainda por cima em simultâneo. Para além de uma posse de bola de 41% para o Real Madrid (algo de raro na história recente dos jogos entre os dois clubes), a transfiguração do Real provocou um conjunto de dificuldades com que o Barcelona não se confrontava há muito tempo. De tal forma que foi unânime a opinião de que a equipa de José Mourinho caiu com grandeza na única prova que o técnico português já conquistou em Espanha.

Mas houve também quem deixasse implícito que Mourinho só conseguiu inverter a tendência traumatizante em que se estavam a transformar os combates directos com o Barça porque, desta vez, “escutou o madridismo”, que é como quem diz os adeptos do clube que se negavam a aceitar que um clube com a história do Real aceitasse permanentemente o papel de actor secundário quando defrontava o eterno rival. Foi isso que defendeu no El País José Sámano, responsável pela área de desporto do prestigiado diário. Mas aquele articulista admite uma dúvida: José Mourinho corrigiu o tiro porque teve “uma mudança repentina de convicção” ou porque “cedeu à gestão do balneário”?

Ambas as hipóteses têm razões de ser. Em relação às convicções de Mourinho, deve ser tido em conta que o técnico ficou para sempre marcado pela goleada (5-0) que sofreu no Camp Nou, a 29 de Novembro de 2010, no primeiro dos dez encontros que teve até hoje com o Barça enquanto técnico da equipa de Madrid. O Real defendeu-se com um duplo pivot (Xabi Alonso e Khedira), mas arriscou de início em mais unidades ofensivas do que seria vontade do próprio Mourinho. A história foi então contada pelo El País, segundo o qual Mourinho chegou a ensaiar uma equipa com mais unidades defensivas, mas que depois terá cedido à pressão da imprensa e dos que o alertavam para a cultura de um clube que não está habituado a aceitar papéis menores.

A prova de que Mourinho não ficou convencido surgiu logo no duelo seguinte, a 16 de Abril de 2011, na capital espanhola. Mourinho apostou num “trivote”, acrescentando Pepe a um meio campo que já tinha Khedira e Xabi Alonso, ficando o português incumbido de policiar Messi. O jogo terminou empatado (1-1), mas poucos compreenderam a falta de audácia de uma equipa que já estava a oito pontos do Barcelona.

A verdade é que, quatro dias depois e utilizando uma estratégia idêntica, o Real Madrid foi capaz de bater os catalães na final da Taça do Rei, num jogo em que aceitou o domínio do tike-taka, mas soube resistir-lhe e marcar-lhe um golo, por Cristiano Ronaldo. Foi a primeira e a única vitória até agora.

A 27 de Abril, as duas equipas voltaram a defrontar-se, agora nas meias-finais da Liga dos Campeões. Mesmo jogando em Madrid, Mourinho repetiu a fórmula (Lass substituiu o castigado Khedira), mas os resultados foram bem diferentes. Pepe e Mourinho foram expulsos e o Barça venceu por 0-2, confirmando a passagem na eliminatória no jogo na Catalunha, em que Mourinho apostou em Kaká e apenas em dois médios defensivos, mas em que não conseguiu melhor do que um empate a um golo.

O El País revelou recentemente que Mourinho, antes da segunda mão, terá dado uma palestra à equipa que fez “com que os jogadores duvidassem de si próprios”, ao dar-lhes “a entender” que a reviravolta era uma missão impossível. Acrescenta ainda o mesmo jornal que, já no autocarro, teve de ser Casillas a ir tentar mentalizar vários dos seus colegas que era possível lutar pela vitória. E o El País sublinha ainda que, em Setembro, terá sido o próprio guarda-redes a “advertir Mourinho de que nunca mais secundaria uma estratégia como a que ele vira em Camp Nou”.

O Real perdeu depois a Supertaça para o Barcelona, mas no primeiro jogo, em Madrid, conseguiu 48% de posse de bola, a menor diferença até hoje. Empatou esse jogo (2-2), mas foi derrotado (3-2) na Catalunha. Neste último jogo, Mourinho voltou a arriscar mais do que se esperava, mas foi traído por um “furacão” chamado Messi.

Seguiu-se, em Dezembro, um embate que voltou a deixar pesadas sequelas psicológicas no madridismo. O Real perdeu não só a hipótese de alargar para nove pontos a diferença na liderança como acabou triturado (1-3) por um Barcelona que arriscou jogar com apenas três defesas. Findo o jogo, contou também o El País, Mourinho terá entrado furioso no balneário, gritando a quem o queria ouvir: “Não quereis jogar ao ataque? Pois aí está o resultado...”.

Por isso, poucos estranharam que, a 18 de Janeiro, na primeira mão dos quartos-de-final da Taça do Rei, Mourinho tivesse feito regressar Pepe ao miolo, para assumir novamente o “trivote”. Mais: deu a titularidade a Ricardo Carvalho, que não jogava há quatro meses, e deixou de fora Marcelo, muito querido pelo presidente e pelos adeptos, para dar a titularidade a Fábio Coentrão. Mas a maior surpresa foi a titularidade de Altintop. O Barça voltou a dominar (71% de posse de bola...) e a ganhar, com Pepe a ficar ainda com o papel de demónio depois de ter sido apanhado pelas câmaras de tv a pisar a mão de Messi.

Mourinho foi então atacado de todos os lados. A começar pelos que sempre lhe torceram o nariz, como é o caso do director adjunto da Marca, Santiago Segurola. “A Mourinho, a quem não se lhe conhece uma ‘ruleta’ ou uma ‘bicicleta’, deu-lhe para se comparar a Ronaldo, Zidane e Cristiano. A comparação tem uma vertente freudiana que explica o seu descomunal ego”.Bem pior para Mourinho acabou por ser uma notícia publicada no diário Marca (normalmente muito próximo da presidência do Real Madrid), em que é revelada uma conversa entre Mourinho e o sub-capitão Sérgio Ramos, acusado pelo treinador de não ter respeitado as ordens para marcar Puyol. O central defende-se e acaba por questionar a falta de trajectória futebolística de Mourinho. A revelação deste incidente serviu como um comprovativo para a relação complicada que se diz existir entre o treinador e vários jogadores espanhóis, a começar por Casillas, acusado de ser quem passa as informações para o exterior.

“Há jogadores que lhe estão a começar a perder o respeito profissional. Para ganhar ao Barça, faz falta mais do que apostar no contra-ataque”, pode ler-se no El País. Outras notícias falam ainda no suposto favorecimento do grupo de jogadores representado pelo empresário português Jorge Mendes. Foi ainda acusado de não saber utilizar equipas de qualidade e de acabar por eleger sempre os jogadores mais lutadores em vez dos mais tecnicistas. Questionou-se até a sua capacidade de estimular os jogadores, algo em que foi considerado um semi-Deus noutras paragens. O treinador-manager mais poderoso na história do Real Madrid via-se assim contestado por todos os lados e sem o respaldo dos adeptos que, pela primeira vez, o assobiaram num jogo.

Apesar de parecer continuar a ter o apoio incondicional de Florentino Pérez, Mourinho optou por fazer o que foi visto como uma concessão à sensibilidade do balneário e, claro, dos adeptos: juntou Kaká e Ozil na mesma equipa e montou uma estratégia coerente, equilibrada, mas ao mesmo tempo ambiciosa. Com isso, mostrou que, afinal, também escuta o madridismo. Mas, ao mesmo tempo, mostrou que não se deixa intimidar totalmente, ao manter a titularidade de Pepe, perante o que parecia ser a vontade de boa parte dos dirigentes...

Mourinho é um treinador de desgaste rápido. Percebeu-se isso no FC Porto, como já se tinha percebido no Chelsea ou no Inter, onde esteve zangado e para sair a meio da época em que foi campeão europeu. Não é fácil conviver com as suas idiossincrasias, que ficaram mais visíveis perante a incapacidade de contrariar o domínio e o futebol champanhe de Guardiola. Mas em Madrid há também muita gente que sabe que vale a pena aturá-lo para conseguir recuperar o título...

bprata@publico.pt
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