Como um anjo que vinga e que perdoa

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Anjo, 1998 ­- No centro de uma sequência narrativa atravessada pela representação de múltiplos estados emocionais, onde a paixão (nas suas várias vertentes, familiares e pessoais, sociais ou políticas) está presente. A figura de uma mulher poderosa, identificável como um "Anjo", vingador e piedoso, que segura nas mãos a espada e a esponja, símbolos da Paixão de Cristo ou da sua força castigadora, materializa e sintetiza a iconografia do tema. Helena de Freitas CARLOS POMBO

A vida é complicada, cheia de camadas, entrelinhas e ilusões, mas com promessas de fuga e redenção nas janelas rasgadas no meio das sombras, nas mulheres que desafiam, apesar de tudo. Não somos perfeitos, é certo, mas quem gostaria de nós se fôssemos? Paula Rego tem agora a sua primeira exposição de pintura em França. Na nova sede da Gulbenkian, em Paris, até 1 de Abril. Lucinda Canelas

Sempre que pinta, Victor Willing está por perto. É ela que o diz. É raro o pintor ficar de fora das suas conversas. Conheceram-se em meados dos anos 50 e viveram juntos até à morte do artista britânico, em 1988. Paula Rego diz que ele lhe faz falta todos os dias. Se o tema é a paixão - de homens e de deuses - então Willing está em toda a parte, mesmo quando não se vê.

"Paula Rego", a exposição que acaba de abrir em Paris, na nova sede da Fundação Gulbenkian, reúne 30 obras desta artista que nasceu em Portugal há 77 anos e vive em Londres há quase 40. Gravura, desenho e sobretudo pintura num conjunto de obras das últimas décadas que tiveram projecção internacional e que revelam um desejo de reinvenção permanente, um domínio das técnicas que críticos e curadores como Marco Livingstone dizem ser apenas comparável ao dos grande mestres, e uma humanidade comovente, cheia de contradições.

"A Paula Rego está sempre insatisfeita, quer sempre fazer mais e melhor, nunca se acomoda. E isso vê-se na sua obra", explica Helena de Freitas, directora da Casa das Histórias, o museu de Paula Rego em Cascais, e comissária da exposição. "Ela começa a trabalhar nos anos 50 e, se olharmos para o que fez, podemos identificar várias fases, datá-las. Estão unidas pelo mesmo modo de pensar e de abordar os temas, têm uma identidade muito forte, mas os modos de fazer estão sempre a mudar."

Os temas saem de uma paleta imensa, dominada pelas memórias, sobretudo as da infância, pelos contos tradicionais, a cultura popular portuguesa, as referências dos livros e do cinema, e a experiência quotidiana, "a vida como ela acontece", disse numa entrevista no final dos anos 90. É por isso que não devemos estranhar que Helena de Freitas tenha escolhido "A Família" (1988) para abrir a exposição. Nesta pintura, duas raparigas manipulam um homem, como se tentassem devolver a vida a um corpo inerte que há muito deixou de obedecer ao seu dono, perante o olhar de uma terceira, que parece rezar de costas para a janela, junto a um oratório que associa às figuras de Maria Madalena e de S. Jorge uma fábula de Esopo. "A menina à janela é a menina dos milagres, mas não consegue fazer milagre nenhum", explica Paula Rego no catálogo da exposição. O homem é Vic Willing e a pintura é feita num período particularmente duro da vida da pintora, quando o marido estava já numa fase terminal. Sofria de esclerose múltipla há 20 anos quando morreu, em Junho de 1988. Há muito tempo que dependia destas mulheres - da própria Paula Rego, das filhas do casal, e de Lila Nunes, que haveria de cuidar dele até ao fim, transformando-se nesse processo na assistente e modelo da pintora.

"Do ponto vista plástico "A Família" marca uma ruptura importante, mas é uma obra fundamental também por causa dos afectos, é importante para compreender a Paula Rego. Ela fez esta pintura quando o marido estava a morrer - há aqui um certo imobilismo, uma coisa muito tensa, mas depois vemos uma janela aberta, um oratório, uma esperança. É muito dramática, complexa e extraordinariamente cenográfica. É como estar perante uma peça de teatro", diz a comissária.

Essa construção teatral, por vezes até coreográfica, é uma constante na composição em Paula Rego. Uma composição que começa geralmente pelo desenho a partir do natural, a partir do que vê. "Primeiro ela constrói o desenho e depois ela estrutura, compõe e organiza a pintura, transformando o atelier numa espécie de palco onde dispõe o que quer pintar", acrescenta Helena de Freitas. A pintura é, então, contaminada por muitas outras disciplinas, da literatura (como a série inspirada no romance de Eça de Queirós, "O Crime do Padre Amaro") ao cinema (as avestruzes saídas do filme "Fantasia", da Disney), passando pelo teatro (o tríptico "O Homem-Almofada", a partir de Martin McDonagh, e "As Criadas", devedoras da peça homónima de Jean Genet). "Há um lado de performance no seu trabalho e isso é também muito contemporâneo e subversivo." Philippe Dagen, crítico de arte do "Le Monde" e autor de um dos textos do catálogo, gosta de sublinhar esta contaminação e chega mesmo a defender que "Paula Rego poderia ter dado, sem dúvida, uma extraordinária realizadora".

Falso naturalismo

Influenciada pelas suas memórias e pelos acontecimentos do dia-a-dia, domésticos ou não, a artista apresenta uma singularidade de composição que para Dagen é essencial. Com a sua formação e a sua "técnica pictórica complexa e informada", seria errado dizer que Paula Rego pinta de um ponto de vista infantil, mas é justo afirmar que "às vezes se põe à altura das crianças para poder olhar os adultos como "pessoas grandes", muito maiores do que ela e muito mais cómicas e inquietantes, como só uma criança sabe fazer", explica ao Ípsilon o crítico do diário francês, que gostaria de ver a obra da artista exposta ao lado da de Louise Bourgeois e da de Annette Messager, que também usam as memórias de infância como referente mas que o fazem através de outros meios, como a escultura e a instalação.

Este recurso da composição alia-se a outros que levam Helena de Freitas a falar de "um falso naturalismo" quando se refere à pintura de Paula Rego. Falso porquê? "É falso porque há muita coisa por trás da pintura que nós não vemos. É pintado do natural, é verdade, mas é um natural que não tem nada a ver com o real, que parte de uma construção narrativa muito pessoal. Mesmo a própria alteração de escalas - nada daquilo é natural. Por exemplo, n" "O Descanso na Fuga para o Egipto" [1998], há uma desproporção gigante entre as figuras e isso não é real, é inventado. É feito com a intenção de provocar uma reacção. É uma distorção que perturba, que incomoda, que nos faz parar e pensar que aquela pintura quer dizer mais do que parece."

Se há matéria em que a pintora é particularmente subversiva é na construção da narrativa, mesmo quando ela parte de obras de referência conhecidas, como o já referido "O Crime do Padre Amaro" - na exposição estão cinco obras inspiradas no romance de Eça: "Entre Mulheres", "Olhando para Fora", "Mãe", "A Cela" e "Anjo" - e "Branca de Neve" dos irmãos Grimm ("Branca de Neve e a Madrasta" e "Branca de Neve Engole a Maçã Envenenada", ambas de 1995).

"É a partir da sua própria experiência que ela transforma as histórias", diz Helena de Freitas. E é esse aspecto confessional que Marco Livingstone elogia quando escreve sobre a sua timidez, quando convida alguém a visitar o seu estúdio para ver uma obra em que está a trabalhar: "Ela sabe que se sente envergonhada porque está a revelar muito de si mesma, mas compreende que esse é o preço a pagar para nos convencer de que o que está a dizer é verdade."

Sempre ambivalente

É através da série d""O Crime do Padre Amaro" que o tema da paixão e das emoções humanas - fio condutor escolhido pela comissária - conhece mais uma das suas vertentes. "Anjo" faz uma referência directa à Paixão de Cristo. Lila Nunes serviu de modelo a este anjo que é todo matéria, com a espada numa mão (na Paixão o instrumento usado é uma lança) e a esponja na outra. Esta pintura é também paradigmática no que toca à ambivalência na sua obra. Não se trata de uma tentativa de auto-retrato, garante a comissária, mas diz muito sobre a pintora. "Na realidade não é um anjo, é absolutamente carnal, uma mulher daquelas verdadeiras, que faz muita sombra. Há nela qualquer coisa que vinga e qualquer coisa que perdoa. Mostra que, com a Paula não há uma verdade absoluta, como na vida também não há. As pessoas, os comportamentos, os desejos, nada disto é linear. É toda esta complexidade que passa para os seus trabalhos e é por isso que, quando os vemos, muitas vezes nos confrontamos connosco, com as nossas próprias imperfeições, com o que queremos, com o que deixámos para trás."

Os comportamentos contraditórios, diz Philippe Dagen, estão lá porque fazem parte do que somos: "A mãe pode transformar-se em prostituta, a santa em diaba, o carrasco em vítima, e vice-versa. [...] É impossível saber o que fazem as figuras que Paula Rego inventa, o que são - é impossível porque a verdade dos seres é demasiado mutável para ser compreendida."

A sua pintura é ambivalente porque é profundamente humanizada, defendem Livingstone e Dagen. Helena de Freitas concorda e demonstra-o, evocando a série que Paula Rego fez em 1998 quando em Portugal se discutia a despenalização do aborto, com obras expostas em Paris: "Ela coloca o sagrado, o quotidiano e o místico em planos perfeitamente indiferenciados. Nas pinturas do aborto a mulher está numa posição de grande fragilidade física, mas de grande superioridade moral. A cabeça sempre erguida, a postura do corpo, o olhar... Esta é uma mulher que afronta, que desafia, que está longe de se comportar como uma vítima."

A intervenção em temas sociais e políticos é algo que interessa cada vez mais à pintora. "Guerra", uma obra de 2003, é também um território de intervenção, desta vez contra a invasão do Iraque. Tal como a maioria das obras presentes na exposição que termina a 1 de Abril, é feita a pastel, uma técnica em que Paula Rego demonstra toda a sua mestria, segundo Livingstone. "Nas mãos de Paula Rego o pastel é aplicado em golpes corajosos, fortes, nítidos e dinâmicos, que se misturam mais quando os olhamos à distância do que sob os seus dedos", escreve, enquanto elogia o seu domínio da cor, das linhas e da composição, "que de nada serviria se estes quadros não conseguissem levar-nos além da arte e não nos fizessem reflectir sobre a própria vida". Uma vida inquieta e apaixonada, no caso dela.

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