Hawaii folk

Alexander Payne é dos poucos que pensam num espectador adulto. Merece respeito por isso. Mas é isso razão para fazer eco dos gritos de êxtase que nos chegam de além-Atlântico? Disso duvidamos

Dentro do principal eixo do cinema americano actual - o eixo que se expõe a Globos, Óscares e outros brindes do género - Alexander Payne é dos poucos que pensam num espectador adulto. Em parte, e porque a escolha é cada vez mais reduzida, isso explica o sucesso que o filme tem tido nos mecanismos tradicionais de consagração hollywoodiana, e por certo continuará a ter (e de resto, poder-se-ia dizer o mesmo de “Moneyball”, filme que sob determinada perspectiva é bastante parecido com “Os Descendentes”). Não tem truques, não acelera porque sim, não tem luzinhas a piscar para encandear plateias de adolescentes (de B.I. ou de mentalidade). Corresponde, portanto, a uma espécie em adiantado processo de extinção. Merece respeito por isso. Mas é isso razão para embandeirar em arco e fazer eco dos gritos de êxtase que nos chegam de além-Atlântico? Disso duvidamos.


De Payne, aliás, gostamos muito mais do filme precedente, “Sideways”, que corria outros riscos e trabalhava numa ferocidade (inclusive no olhar sobre as personagens principais) ambígua e perturbante. Ao pé dele, “Os Descendentes” é um filme mais composto - como se diria, por exemplo, de uma pessoa bem vestida - e muito menos rugoso. Enquanto a mulher está suspensa num coma profundo, George Clooney, “pater famílias” pouco convicto, reúne as filhas, visita os familiares e os amigos, compenetra-se no seu papel de pai e de marido - ele próprio é um “descendente”, tem que lidar com um património familiar que, de há décadas, vem passando de geração em geração. Payne é um cineasta da escrita, quer dizer, do argumento, e se o que cortava “Sideways” era esse lado pré-decidido de “filme de pauta”, em “Os Descendentes” praticamente só há “pauta”. Um filme “muito bem escrito”, por certo, dos diálogos à organização narrativa, uma fluidez e uma elegância que dão tanto prazer como têm tendência a frustrar (há aquela velha máxima pasoliniana que diz que um filme deve “destruir o argumento”: em “Os Descendentes” não há sequer um plano que se “revolte” contra ele).

Há dois, três momentos em que o filme vive para além da escrita, quer dizer, onde se passa alguma coisa que é da ordem do físico. Eles são, por ordem: a corrida de Clooney (“tempo real” mas também uma sensação de “espaço real”) depois de saber da infidelidade da mulher (que está em coma); o mergulho da filha mais velha depois de saber que a mãe vai morrer; e o plano final, sobre o qual começa a correr o genérico de fecho, o pai e as filhas em frente à televisão, plano frontal em que as palavras são dispensadas, imagem de uma família que encontra uma maneira de se recompor na assimetria (e que é obviamente o “ponto de chegada” de todo o filme, assim sucintamente expresso). Há alguns outros aspectos interessantes. O cenário, o Hawaii (o argumento adapta um livro de uma escritora hawaiana), talvez o estado americano menos filmado por Hollywood (à excepção dos filmes sobre Pearl Harbor...), e a maneira como Payne, nas entrelinhas da banda musical, faz de “Os Descendentes” um filme discretamente “folk”, embebido, com subtileza, pelas tradições musicais locais. Mais falhada, porque nunca se transforma na assombração que devia ser ( a “decadência do matriarcado”), é a cerimónia de morte: há demasiado cuidado na utilização dos grandes planos do rosto da mulher adormecida, um rosto progressivamente decomposto cuja imagem parece nalguns momentos querer “ritmar” a montagem, mas sem nunca se tornar a coisa horripilante e incómoda que fazia sentido ser.

Portanto: um filme perfeitamente decente, que devia ser a regra e não a excepção. Sendo uma excepção, estão já a ser atirados foguetes que mereciam ser guardados para a ocasião em que a regra fossem filmes como este.

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