A tecedeira que tinha lido Zola

Manuela Juncal.



O trajecto que levou a filha de uma família burguesa do Porto aos teares do Vale do Ave: a implantação.

Aos 22 anos, em 1972, Manuela, vulgo Nelinha, é aprendiz de tecedeira numa fábrica do Vale do Ave, na freguesia de Brito. Recebe 7$50 por dia. O marido, fiandeiro, ganha um pouco mais, por ser homem e por trabalhar de noite. Moram numa casa sem electricidade, água canalizada ou saneamento. O WC, no exterior, é uma tábua com um buraco. Ao jantar, Nelinha usa o fogão de dois bicos para cozinhar batatas, ovos, atum. Como o marido dorme de dia, almoça com as colegas, geralmente sopa e peixe frito.

Na vizinhança operária haverá quem viva melhor, mas também quem viva pior. Se descontarmos a sua altura invulgar (1,73m), e pequenas excentricidades, como a notória falta de jeito para lavar roupa no tanque, nada parece distingui-la das outras tecedeiras. Talvez o facto de ainda não ter filhos - o primeiro já nascerá no Portugal democrático. Maria, sua vizinha, é mais nova e já pariu quatro.Mas há outras diferenças. Uma delas é a circunstância de possuir uma estante. Tapou-a com um pano, como se quisesse esconder alguma coisa. E quer. Na verdade, salvo o nome próprio, Manuela, há pouca coisa nesta "rapariga do povo" que seja o que parece. Desde logo, o seu apelido não é Gonçalves, como consta da cédula que mostrou na fábrica, mas sim Juncal. E se as amigas operárias tivessem ouvido falar de Zola, achariam estranho saber que a "sua" Nelinha já o lera aos 12 anos. Ou que já desfilara numa "passerelle". Ou que estivera um ano nos EUA. Ou que o pai era advogado e ela vivera numa casa com duas criadas, o que explica a sua incompetência como lavadeira.O trajecto que levou esta filha de uma família burguesa do Porto aos teares do Vale do Ave não foi um caso isolado no Portugal da época. Era a "implantação".Juncal fez o liceu no Carolina Michaelïs e aos 13 anos já integra a Pró-associação. Em 1966 vai para os EUA frequentar o 12º ano. Apanha "o pico dos "black riots" e da contestação à guerra do Vietname". Não veio impressionada com o "american way of life", mas vê um mundo "com eleições e mais de 20 canais de TV", e onde as famílias deixavam as adolescentes sair à noiteDe novo em Portugal, parecia destinada a ir parar ao PCP. Pelos finais de 1967, chega a ser sondada. Quer entrar, mas o contacto demora. E depois já será tarde. "Vou para Belas Artes no ano de 1968-69, um ano de turbulência com laivos de surrealismo, espécie de pré-crise académica de 1969 em Coimbra misturada com o Maio de"68". E quando se torna claro que, em França, o PCF tentara boicotar a festa, as suas reservas agravam-se. Mas o golpe final foi a invasão da Checoslováquia. "Quem não estava comprometido com o PCP não podia deixar de se distanciar". Adere aos Comités de Base, onde se reuniam os estudantes de esquerda que não se reviam no PC. Foram os "melhores anos" da sua vida. Porque tinha a idade certa, porque se sentia sintonizada com o seu tempo, e porque o maoismo, na sua versão portuguesa temperada pelo Maio de 68, era ainda compatível com alguma euforia libertária. Em 1971, é recrutada para fundar os CREC (Comités Revolucionários de Estudantes Comunistas), as células estudantis de "O Grito do Povo", organização que no ano seguinte passaria a chamar-se OCMLP. Já o namorado, e depois marido, Tito Agra Amorim, tinha sido expulso da universidade de Coimbra na crise académica de 1969 e fora para Paris, onde se juntara ao grupo O Comunista, que se transformou num núcleo da OCMLP no exterior.A partir daqui, os acontecimentos sucedem-se. Há uma prisão na organização, Juncal sabe que outro militante deixara subitamente a casa onde vivia, e ela própria recebe uma convocatória da PIDE. Pondera passar à clandestinidade. Na mesma altura, Tito Amorim regressa a Portugal, na condição de refractário à tropa, com o objectivo de "ir para a implantação". O líder da organização, Pedro Baptista, decide que irão ambos, como casal, trabalhar para o Vale do Ave. Amorim vai à frente e arranja casa e trabalho para os dois. Juncal chega em Fevereiro de 1972 e só voltará ao Porto já depois do 25 de Abril, em Julho de 1974, quando "uma hepatite grave" a deixa prostrada e o namorado se mete num carro e a vai deixar a casa dos pais.Inspirada pela Revolução Cultural chinesa, a "implantação" de estudantes de origem burguesa em meios operários ocorreu em vários países e foi, em Portugal, marca distintiva da OCMLP. Era algo que rompia "com o conceito de clandestino do PCP: alguém que está numa casa, com uma companheira que faz a cobertura, ambos pagos pelo partido e desinseridos da comunidade local".Manuela Juncal esteve na "implantação" por "convicção profunda", fez lá amizades genuínas, e garante que não guarda ressentimentos. "Passei uns maus bocados, mas passei outros péssimos noutras alturas da minha vida". Foram dois anos e meio da sua juventude, o que pode não parecer muito na vida de uma mulher que já é avó. Mas ninguém adivinhava, em 1972, que o fascismo ia cair, e é preciso ter isso em conta. Para Nelinha, a aprendiz de tecedeira, "aquilo era para sempre".

Sugerir correcção