Marca portuguesa que chegou aos Emmy fecha portas e deixa quatro milhões por pagar

Foto
Marca vestiu actriz Kiernan Shipka, na cerimónia dos Emmy, em 2010 Foto: Jay L. Clendenin/MCT

A passadeira vermelha que Kiernan Shipka, a jovem actriz de Mad Men, pisou na cerimónia dos Emmy de 2010, desfilando um vestido da Papo d"Anjo, parecia perfeita para a empresa dar o salto final para uma história de sucesso na fragilizada indústria têxtil portuguesa. Mas, já nessa altura, as contas da marca lançada por Catherine Monteiro de Barros davam sinais de alerta. Ano e meio depois, confirmou-se o pior: o negócio falhou, sem dinheiro para pagar dívidas, que chegam praticamente a quatro milhões de euros.

A presença nos Emmy teve eco na comunicação social e reforçou o carimbo de exemplo empresarial que a Papo d"Anjo tinha conquistado, à custa de uma expansão que lhe valeu a presença em montras de armazéns conceituados nos Estados Unidos. Este país representava, aliás, praticamente 90% das receitas. E, depois de também ter entrado em Espanha, a ideia era seguir para a Ásia, sempre na área do vestuário para crianças.

Visto de fora, o negócio parecia sólido e promissor. E foi isso que lhe garantiu a obtenção de apoios públicos. Em 2008 e 2009, a empresa recebeu incentivos de 1,9 milhões de euros do Quadro de Referência Estratégico Nacional (QREN), ao abrigo de projectos de internacionalização. A Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) também lhe concedeu auxílios, apresentando-a, ainda, no seu site como uma "marca de roupa de alta qualidade, estilo europeu e design intemporal".

Hoje, a AICEP é um dos maiores credores da Papo d"Anjo, reclamando uma dívida de 780 mil euros, provavelmente por incumprimento contratual associado ao incentivo concedido pela agência agora liderada por Pedro Reis. O PÚBLICO questionou a entidade sobre o tema e sobre o valor do apoio, mas não recebeu uma resposta.

A queda de um negócio

O rol de dívidas que a empresa de Catherine Monteiro de Barros, nora do empresário Patrick Monteiro de Barros, acumulou chega a perto de quatro milhões de euros. O maior credor é o BES, com um incumprimento de quase 1,6 milhões. Aos cerca de 30 trabalhadores ficaram por pagar quase 400 mil. E o Estado também foi lesado: as dívidas ao fisco e Segurança Social totalizam 355 mil euros.

Ontem foi um dia decisivo para a Papo d"Anjo, que teve como presidente Frederico de Beck e pediu a insolvência em Outubro. Os credores reuniram-se em assembleia, no Tribunal do Comércio de Lisboa, para conhecer as conclusões a que o administrador nomeado pelo tribunal chegou, quando analisou as contas da empresa.

À porta, antes de a sessão começar, os comentários apontavam já num sentido: não haveria nada a fazer para recuperar o negócio. Uma sentença que o administrador de insolvência veio confirmar, perante a juíza. "A empresa colapsou", disse, sugerindo aos credores (bancos, empresas fabris, trabalhadores e Estado) que votassem favoravelmente a liquidação.

Ficam as dívidas

No relatório, que sintetizou em tribunal, o administrador escreveu que o fracasso da Papo d"Anjo tem duas razões à cabeça: a queda do dólar face ao euro, que se registou num momento importante da expansão, e opções estratégicas, com "erros na contratação de quadros para os Estados Unidos", num momento de crise económica mundial.

Seria de esperar que, com a ascensão que teve e as facturações que apresentava (9,7 milhões em 2008), a empresa fosse capaz de ressarcir, pelo menos, parte dos lesados. Mas, ao que tudo indica, não haverá como pagar as dívidas que deixou. É que a Papo d"Anjo, cujo site e telefones já não funcionam, só deixou bens avaliados em dez mil euros, num escritório que arrendava em Lisboa.

Há também um armazém comprado em regime de leasing à Caixa Geral de Depósitos. O espaço valerá 900 mil euros e cerca de 40% desse valor foi pago. No entanto, para reaver o dinheiro, seria necessário que o administrador conseguisse vender o imóvel rapidamente. É que o banco estatal deixou claro, em assembleia de credores, que só esperará até ao final do mês para que tal aconteça. Caso contrário, ficará com esse activo, perdendo-se a oportunidade de ressarcir alguns dos afectados.

O administrador de insolvência, Fernando Silva e Sousa, não acredita que seja possível, embora tenha dito que tentará vender o armazém em tempo útil. Também não deverá conseguir recuperar os seis milhões de euros que as sucursais dos Estados Unidos e de Espanha devem à casa-mãe, porque estão igualmente falidas.

Não foi apresentada qualquer proposta de viabilização. E, por isso, seguir-se-á para liquidação. Ainda é cedo para se saber se esta insolvência será considerada fortuita ou culposa. Só neste último caso se poderia responsabilizar financeiramente os gestores pelas dívidas, à luz do novo código aprovado recentemente pelo Governo.

Um sector revestido de insolvências

O sector do vestuário tem sido um dos mais afectados pela escalada das insolvências em Portugal. Nos últimos anos, várias empresas encerraram, despediram e deixaram dívidas. O caso mais recente é o da Labrador, cuja falência foi decretada em Julho do ano passado, arrastando uma marca conceituada de roupa de homem, com presença em Espanha, para a liquidação.

Também ficou na memória a insolvência da Cheyenne, a marca da Facontrofa, que contava com uma participação de 40% do IAPMEI. O instituto público tinha, aliás, investido quase dois milhões de euros no negócio apenas alguns meses antes de a falência ter sido decretada. As lojas, 25 no total, foram encerradas. No ano passado, vieram a público outros casos, como o da Têxtil Gamor (Trofa), que empregava 90 pessoas, ou o da Nórdica (Vila do Conde), que tinha 228 trabalhadores.

Regressando a 2010, houve outros exemplos dramáticos: o da HBC, de Oliveira do Hospital (180 funcionários), e o da Onara, que confeccionava vestuário feminino, e tinha a capital de risco estatal Inov Capital como accionista desde 2009. Também esta empresa tinha feito uma internacionalização de respeito e estava presente em 17 países. Mas, só em dívidas ao Estado, contabilizava-se perto de um milhão de euros.

Um caso que marcou particularmente a indústria foi o da Maconde, que foi pedindo sucessivamente a insolvência das suas cerca de 20 subsidiárias. Em Maio de 2010, os credores de uma das duas empresas que restavam do universo do grupo aprovaram a liquidação imediata da têxtil, já sem actividade há vários meses.

Notícia corrigida às 17h02: Catherine Monteiro de Barros não é filha, mas sim nora do empresário Patrick Monteiro de Barros
Sugerir correcção
Comentar