A educação de Rita

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JOANA BOURGARD

A vida de Rita Ferro deu vários livros. Mas agora combina a sua educação com a história de uma geração, crescida a sacões. Mulher que todos dizem estar a representar, faz da sua vida a de um certo Portugal que ainda se esconde

Muito antes de Agustina Bessa-Luís lhe confidenciar que devia tudo o que era à má relação com a mãe, já Rita Ferro afirmava que devia tudo ao egoísmo dos homens. Mas o livro que editou, "A Menina é filha de quem?" (Dom Quixote), fala menos dos homens e mais da mãe e da família. E, por extensão, de uma educação, de um país e de um quadro de valores que sendo os seus, são também um modo de contar a história de um país à mesa de jantar, onde o dito era não dito, onde pelas palavras se mediam as relações e onde as relações eram, muitas vezes, a fachada que escondia a realidade.

Os homens esses, disse-lhe um dia a avó poetisa, Fernanda de Castro, "são uns fracos".

A frase ficou-lhe mas não entrou neste desfiar de memórias, mesmo que a sua maior vivência não seja a da escrita, "mas a parte sentimental, apenas aflorada neste livro". E confessa: "Há muitos anos que espero o momento para escrever sobre isso. Uma das razões era os meus filhos crescerem, compreenderem e poderem lidar com uma certa intimidade da mãe."

Mas foi para que ela própria pudesse lidar, em intimidade com a sua mãe que escreveu este livro: "Às vezes somos o que somos por simpatia e identificação, outras vezes é o oposto. Sou uma ‘mater' instintiva. Quero encontrar a mãe para entender porque é que eu às vezes me enervava tanto com ela. A minha mãe era totalmente machista e eu sou totalmente feminista. Quis entendê-la, mas acho que só a descrevi, estou longe de me ter aproximado dela".

Pó, como corruptela de Pau (Pô), abreviatura de Pauline, sua avó francesa, é a grande protagonista de um romance autobiográfico, escrito com a memória na boca - "vinha-me tudo por inteiro" - de uma mulher escritora, cronista, apresentadora de televisão e cheia de rótulos, uns atirados, outros assumidos e para quem "A palavra será faca/ O sentido será gume/ A imagem será chama/ A matéria será lume!".

As palavras são de Ary dos Santos, que os disse numa tertúlia em casa da avó poetisa, Fernanda de Castro, mulher de António Ferro, que foi director do Secretariado Nacional de Propaganda do regime de Salazar, como se aprende nos bancos da escola e que se colou de tal forma à vida da escritora, que Rita "entrava nas salas e já tinha sido catalogada de fascista ou filha de fascistas". "É muito cansativo. Todas as entrevistas que dou é para falar dos meus avós. A grande pedrada que levei foi passar 18 anos a ouvir elogios enjoativos e cansativos, de que já fazíamos ‘blague' lá em casa e depois no dia 26 de Abril ‘fascista', ‘carniceira', ‘campo pequeno contigo'."

Vai dizendo: "Eram pessoas inteligentes, fascinantes e boas na sua pratica diária que de repente passaram a algozes e tive que viajar retrospectivamente para perceber o que se passava e ver se havia algum momento ali que me dissesse o contrário. Eu não douro nada, o meu avô poderia estar equivocado, como estaria o Salazar, totalmente, é indesmentível, teve um entusiasmo por Mussolini, adorava chefes, mas as coisas não são dois e dois igual a quatro". Por isso lê-se o livro a tentar perceber como é que estas personagens conseguem sobreviver a si próprias, como muitas da sua geração: "É tudo tão igual que é por isso que a pose cultural é tão patética".

A sua história

através da História

"Eu existo", diz-nos cansada de repetir a mesma história. Ela, que num país sem tradição diarística, sem a distância crítica sobre o seu passado, e menos ainda à-vontade para falar de si sem "puxar dos galões", anda há anos a retratar em romances, contos, epítolas, diários e fotobiografias, a sua história através da História que viveu. "Jogo o jogo perverso da verdade. As coisas são tão verdade que as pessoa julgam que é mentira", conta-nos para nos explicar que aquilo a que chamam representação para ela é um modo de reagir à previsibilidade dos portugueses. Perguntamos-lhe se se diverte consigo e Rita responde: "Acho-me interessante". E depois de uma pausa acrescenta: "em comparação com a média nacional, acho-me hipnótica".

Foi sempre assim, e é isso que conta num livro onde olha à volta e, ao falar-nos das férias na Granja, das tertúlias em casa da avó Fernanda, a avó poetisa, mãe do pai que um dia abriu a porta e viu, de frente, Fernando Pessoa, e dos jantares remedidadas na casa da outra avó, a quem chamava de viscondessa, mãe da mãe, ou nas viagens à procura de igrejas no interior do país com um pai entusiasmado e uma mãe de voz levantada, na educação em colégios de freiras a quem puxava as toucas para perceber se eram carecas, e nas sessões de cinema onde se emocionava, sem saber que já isso era sexual, fala-nos também de uma geração que foi educada a não sobressair.

"Em minha casa era tudo tão antiquado, que nem se esperava que fizesse a faculdade. Lembro-me de o meu pai dizer: ‘as meninas não precisam de estudar porque, se Deus quiser, terão um marido que tomará conta de vocês'". Estudar como instrumento de emancipação opondo-se a casar como instrumento de protecção. "Quando disse ao meu pai que me queria separar, três anos depois de me ter casado a primeira vez, a resposta foi: ‘Rita tens que ser estóica'. Não esperava uma frase de um artista. Os artistas criam o seu próprio quadro moral, mas com os filhos o meu pai fazia excepção. Uma coisa era a vida, os romances, as aventuras do meu avô e as suas, e outra era o comportamento das meninas em sociedade, inatacável". Não seguiu o conselho do pai. "Chocou-me que não se importasse com o meu sofrimento, mas com o cumprimento das coisas. Aos 23 anos fiquei muito magoada, fiz as malas e saí". Separou-se mais duas vezes. "Nunca aguentei sacrifícios. O meu primeiro divórcio foi uma carta de alforria". Mas, não vacilando, vai dizendo ter sido "muito bem educada". "Os princípios fundamentais da minha educação foram sólidos. Nunca me permitiram fazer batota. Soube sempre distinguir entre o bem e o mal, mesmo quando o mal se disfarça de bem e o seu contrário. Fiquei um pouco vítima. E isso tem a ver com o conhecimento". E é tudo subtil. "O principal da cartilha de uma certa tribo social de que falo, que ainda hoje se recomenda, era cumprir essas regras. Nunca tivemos uma alta sociedade culta. Basta dizer ‘aliás' para nos excluírem. É uma frase muito complicada. O léxico é diminuído e todo o investimento é no que não se pode dizer, para não se ser considerada uma ‘parvenue', uma imitação. É uma disciplina, paralela à regular que coarctava um desenvolvimento que se esperaria normal numa criança". Mas, ainda assim, agradece uma educação assim, que a distancia das suas colegas de escola, sem esse lado tão artístico e, por isso, tão livre.

No livro escreve: "Não penso que exista outro tipo de educação convivial capaz de vencer esta em termos de valores formativos, assentes, por sua vez, nos religiosos, éticos, cívicos e patrióticos - e refiro-me apenas ao conjunto de regras protocolares e não a certos ridículos óbvios ou às muitas incongruências humanas que ali se observavam." Mais: "Defendo é que a permanente observância da norma pode substituir-se, primeiro na cabeça das crianças e mais tarde na dos adultos, por aquele espaço que, em espíritos livres deste manual, potencia o nascimento da originalidade e do rasgo superativo."

Mas vai dizendo: "não sabíamos nada". E o livro é, ao mesmo tempo, a revelação dessa consciência e a surpresa da descoberta. A manipulação que faz dos acontecimentos, "sem arrebicar a verdade", ela que foi educada "com boas mentiras", vai até ao princípio de tudo para traçar uma história que partilhou com tantas. E, de uma vida feita aos sacões, guarda a memória de um corpo que foi aprendendo a ter um nome: "Vivi o que muitas meninas viveram, a descoberta do corpo através dos corpos das outras. Dormíamos nas casas umas das outras, fingíamos ter muito prazer em que nos coçassem as costas e aquilo era, no fundo, um pretexto para sermos tocadas." Revela: "Dormi até mais tarde do que era suposto numa cama de grades. O maior horror era deixar que os amigos do meu irmão vissem que dormia assim. Achava a completa deserotização", diz ela que passou pelos anos 70 "como uva vindimada, não me droguei, casei virgem". Era assim, "com todas as variantes que existiam para não se romper o hímen", diz sem pudores, nem os falsos. "Eu era extraordinariamente física e curiosa. Tinha todas as sensações do corpo, sem necessidade de instrutor, mas depois entrava num desafasamento completo porque não se falava disso". Da mãe, esperava respostas: "queria saber até onde poderia ir, qual era a fronteira entre uma menina boa e uma menina muito levantada. Melgava a minha mãe para saber se podia dar beijinhos, se os podia aceitar e de que tipo. Mas não pegava, ela não me respondia".

O livro enche-se de episódios que seriam "pícaros", se não fossem ao mesmo tempo cómicos, enternecedores e reveladores desse processo de descoberta convulso. Como este: "O primeiro beijo não tem história. Mendigaram-mo no Minho, pelos anos, como quem pede um frasco de Agua Brava ou um single do Adamo, que eram as novidades da época, e foi trocado, é verdade, comigo em gozo e penitência, para, no fim, me lançar numa correria escada abaixo para ir despenhar-me por cima da primeira cama que encontrei e para me afundar na almofada, depois de descalçar as sabrinas e de desapertar o soutien, ainda em sobressalto, para sentir os bicos do peito a perfilarem-se e confirmar, de vez, se aquele fenómeno em que tantas vezes reparara tinha ou não a ver com a reacção de um homem a desejar-me."

A vida de Rita passou por entre as infidelidades do pai, as dores de cabeça da mãe, as festas da avó e a memória de um avô que não cabia no retrato que pintara; por entre as tropelias que fazia com as freiras à descoberta do amor sem amor e do sexo fingindo ser amor; por entre os divórcios, os filhos e as partilhas de herança; por entre as histórias de famílias que ela ainda hoje não percebe que possam dizer-se de esquerda, ela que é de direita e católica, que não suporta que se argumente sem se deixar margem para a contra-resposta, ela que responde, porque antes era tudo feito por carta, por olhares, em jantares com a elite social e cultural. A vida, Rita resume-a assim: "a primeira metade passeia-a a ouvir que era minha a culpa", agora pensa "é dos outros". "Tornei-me cínica com o tempo. Para além da bondade anónima e inesperada, nada me comove. Endureci. Não está tudo intacto, mas sinto que não me posso dar ao luxo de chorar. Uma mulher não chora." Mesmo tendo levado um estalo disfarçado de amor: " - Vá, anda, mexe-te! Vai lá à casa de banho lavar esse sangue, antes que sujes a camisola, e não te faças de vítima porque isso não pode doer tanto que justifique essa expressão holocáustica!"

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