O medo come a Martha

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A história ?de Charles Manson e o seu gang foi decisiva para a história de Martha e da seita a que adere mas Durkin recusa-se a fazer tese sobre as razões que levam alguém a aderir ?a um culto

E de novo um rapaz de classe média, com barba, ainda não chegado aos 30 anos, realiza a primeira longa, que é um rigoroso edifício do medo, cerebral e sensual simultaneamente. Depois de Antonio Campos e de “Afterschool”, Sean Durkin e “Martha Marcy May Marlene”

-Onde estamos?

-No Connecticut

E estão a três horas de viagem das Catskills Mountains, estado de Nova Iorque, local de onde Martha fugiu, explica-lhe a irmã. As duas estão sentadas com vista para um lago, como num plano de um melodrama de Douglas Sirk ou de James M. Stahl, mas não era suposto ser esse tipo de filme... é suposto "Martha Marcy May Marlene" ser um filme de terror ou um "thriller" psicológico.

Na cabeça de Martha, um sonho não se distingue da memória do passado. Na cabeça de Martha, Catskills e Connecticut estão sobrepostos, como se ela nunca tivessa abandonado a seita de que tentou fugir - daquelas com guru diabólico, abuso sexual, assalto a casas, esfaqueamento, tudo isso...

Martha está no Connecticut, a cabeça de Martha não está no Connecticut. E em que filme está a cabeça do espectador?

O espectador está na cabeça de Martha e da sua identidade fracturada - ela que também responde pelos nomes de Marcy May e de Marlene. Como se tivesse ficado com a autonomia ocupada, o espectador sonha o pesadelo de Martha. Vê em "Martha Marcy May Marlene" filmes que na realidade não podem estar ali. Não sabe verdadeiramente que filme está a ver. E mesmo depois de várias visões, a dificuldade de identificação permanece: o bucólico inicial das cenas de uma quinta pode continuar a resistir à informação de que há ali "thriller psicológico" à solta; aquele lago à Sirk e Stahl - portanto, com fantasmas de Jane Wyman ou de Gene Tierney - não costuma servir de cenário a "horror film"...

"Absolutamente" - uma constipação deixa, ainda assim, Sean Durkin, o realizador, concordar. "Não quis fazer ‘um tipo' de filme. Quis usar elementos de vários géneros porque acredito que o posso fazer se isso for bom para a história que estou a contar - devemos usar todos os elementos possíveis para potenciar a nossa forma de realizar um filme, acredito nisso."

E assim um filme projectado num grande ecrã pode ser a porta aberta para um cérebro gigante - é no filme que o guru Patrick (interpretado por John Hawkes) se faz teórico, explicando à sua "pupila" preferida, Martha (interpretada por Elizabeth Olsen), que o medo da morte tem o condão de abrir todos os poros às mais diversas sensações, aproximando-nos do nirvana.

"Queria que fosse incerto [para o espectador] o tipo de filme que estou a fazer porque Martha também não sabe o que lhe está a acontecer. Pensei no que ela tinha passado e ao que ela tinha escapado, e tratei cada minuto da sua experiência como se fosse presente. Mesmo que haja pedaços do filme que pertençam a um passado da personagem... Isso comunica essa sensação de incerteza [ao espectador]" É algo que nos deixa a latejar, uma ansiedade que conforta e vicia.

Pânico da conformidade

Foi isso, essa necessidade da submissão ao medo, que levou Martha a abandonar a família e a juntar-se a uma seita, a uma comunidade e ao seu guru?

Sean Durkin não quer falar das razões de Martha. É claro que fez pesquisa, e Charles Manson e a sua "família" (e as suas acções no final dos anos 60 nas colinas de Beverly Hills) foram determinantes - a primeira coisa que fez foi consultar a iconografia, imagens de arquivo, como aquelas das raparigas controladas por Mason a cantarem enquanto se dirigiam para o julgamento. Isso marcou a construção, em "Martha Marcy May Marlene", da tribo feminina e da sua disponibilidade sacrificial, por exemplo.

E Sean falou com quem fez um corte voluntário na sua vida para abraçar uma experiência comunitária que se transformaria em pesadelo. Encontrou semelhanças entre as experiências de cada um. "Mas em cada cinco pessoas, e de cada vez que eu achava que tinha encontrado um denominador comum, aquele protótipo da pessoa que larga tudo na vida para se entregar a um grupo desses, aparecia uma experiência que nada tinha a ver com as outras."

Isso, durante a fase em que escrevia a longa, levou-o a despachar a coisa, algo elipticamente, na curta "Mary Last Seen" (2010). Serviu como angariadora de investimentos para a longa - para abrilhantar o currículo, já que não estava satisfeito com a curta que fizera no curso de cinema. Em "Mary Last Seen" encontra-se, então, algo que pode ser o passado da personagem feminina que em "Martha Marcy May Marlene" é interpretada por Elizabeth Olsen. Sem explicações, os passos que levam alguém a juntar-se a uma seita.

O que encontramos na longa sobre esse passado tenta resistir à fixação de uma lógica de causa e efeito. Percebe-se que houve uma adolescência vivida em família e opressão; que desse "milieu" a irmã de Martha se ausentou (no reencontro sobram ressentimentos). E é quase tudo. Quanto à vida em comunidade, Durkin não filma como se explicasse. Percebe-se a existência de uma hierarquia, homens comendo primeiro, mulheres depois; de uma dinâmica de desestruturação do "aderente" - é Patrick, o líder, que diz a Martha que ela "tem cara de Marcy May". (O guru é um psicopata cantor que dedica à sua preferida a canção "Marcy's Song" - na verdade, "cover" de uma canção de Jackson C. Frank, diverte o realizador quando percebe que o espectador, tal como Martha, pode acreditar que a canção foi escrita para a personagem e para o filme.) Mas tudo o que vemos pode ser a memória de um passado ou apenas um sonho - a paranóia foi o que atraiu Durkin nos testemunhos de quem fugiu a uma seita e agia como se não se lembrasse do que ocorrera. Certo é o pesadelo de Sean Durkin.

"Sempre tive medo, pânico, da conformidade, desde criança. Não sei o que este filme pode dizer sobre a sociedade americana, embora saiba que os cultos e as seitas têm uma tradição na América - mas não só. O que sei é que ele diz algo sobre a necessidade enorme que as pessoas têm de pertencer a algo maior do que elas próprias. É um desejo saudável: o desejo de família. Mas quando isso permite a existência das seitas, esse desejo coloca-se ao alcance da manipulação..."

Borderline

E de novo, um rapaz de classe média alta, com barba, que ainda não chegou aos 30 anos, realiza a sua primeira longa, depois de uma série de curtas, que é um rigoroso edifício do medo, denso como a memória, cerebral e sensual simultaneamente. "De novo" porque Sean Durkin, que tem barba e 27 anos, é amigo e sócio de Antonio Campos, o realizador desse tratado sobre a percepção que se chamou "Afterschool" (2008) e que tem também 27 anos.

Um e outro, e não deve ser coincidência, sentiram que a vida mudou quando, adolescentes, viram um filme de Stanley Kubrick: "Laranja Mecânica" no caso de Campos, "Shining" no caso de Durkin. Colegas na New York University, descobriram "muitos filmes juntos" e juntos começaram a fazê-los - Durkin como director de fotografia dos primeiros filmes de Campos. Formaram a Borderline Films em 2003. Falta conhecer o terceiro elemento da sociedade, Josh Mond, colega de liceu de Campos, que tem 29 anos, menos barba e ainda sem longa de estreia - falta saber que filme o marcou na adolescência.

A Borderline Films tem sido identificada como um pólo criativo, a ter debaixo de olho, no novo "indie" americano. (Num dos últimos números da revista "Cahiers du Cinéma" dedicada a Nova Iorque, o produtor Ted Hope, que produziu Ang Lee, Hal Hartley nos anos 90, fala de Durkin e Ca. como protagonistas da mais excitante fase do "indie" americano dos últimos 15 anos.) Sobretudo porque, tal como no caso do trabalho de Josh e Ben Safdie, os de "Go Get some Rosemary", a Borderline está a meter rigor naquilo que já era puro "marketing" a mascarar o convencionalismo do costume.

Entre curtas e longas, dois dos sócios da Borderline servem sempre de apoio - produtores - ao projecto do terceiro. A sorte de "Afterschool" e de "Martha Marcy May Marlene" foi diferente, contudo. Apesar do interesse crítico na Europa, a estreia nas longas de Antonio Campos demorou a encontrar visibilidade e distribuição nos EUA. A sua sorte parecia ter sido ditada, brincou o realizador numa entrevista, pela passagem na secção Un Certain Regard de Cannes 2008: o filme foi exibido ao mesmo tempo que "Indiana Jones and the Kingdom of the Crystal Skull", para o qual se precipitou a imprensa americana. Já "Martha Marcy May Marlene" valeu a Durkin um prémio de realização em Sundance e acabou por ser comprado pela Fox Searchlight, que o distribui mundialmente.

"Passa-se tudo de forma muito natural: alguém tem uma ideia, escreve-a, mostra aos outros e o projecto é desenvolvido pelos três. Tentamos arranjar dinheiro, filmamos. Nunca houve uma situação em que um de nós tivesse um projecto e os outros dois duvidassem ou dissessem que não. Confiamos sempre que alguém que tem uma paixão pelo seu projecto", conclui Durkin.

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