Câmara do Porto tenta despejar herdeiros de Eugénio de Andrade da sede da fundação

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Ana Maria Moura já entregou o assunto ao seu advogado Paulo Pimenta

Autarquia alega que com a extinção da Fundação Eugénio de Andrade se extingue também o direito de superfície cedido à família adoptiva do poeta. Caso deve acabar no tribunal.

A Direcção de Finanças e Património da Câmara do Porto enviou aos herdeiros do poeta Eugénio de Andrade uma notificação que os intima a proceder à entrega do andar onde habitam, "livre de pessoas e bens, no prazo máximo de 60 dias". A família adoptiva do poeta - Gervásio e Ana Maria Moura, pais do afilhado de Eugénio, Miguel - habita no 2.º andar do edifício da recém-extinta Fundação Eugénio de Andrade, de acordo com o protocolo firmado com a Câmara do Porto em Julho de 1997, que lhes concede o usufruto gratuito do andar por um período de 70 anos, prorrogável por mais 35.

Numa notificação enviada ao casal poucos dias antes do Natal, a autarquia informa que o "direito de superfície" que lhes havia sido cedido gratuitamente se extinguia com a extinção da própria fundação. Uma interpretação que Ana Maria Moura não aceita, tendo já enviado o processo ao seu advogado, para que este a conteste.

A história que agora ameaça desembocar num processo judicial iniciou-se há 20 anos, quando alguns amigos de Eugénio de Andrade idealizaram uma fundação que albergasse os livros e papéis do poeta, mas também as muitas obras de arte que lhe foram oferecendo ao longo da vida, e que já mal cabiam no seu exíguo andar da Rua Duque de Palmela. Uma ideia que a Câmara do Porto, então dirigida por Fernando Gomes, acolheu com entusiasmo. Já em 1992, numa entrevista ao PÚBLICO, Eugénio afirma que, quando lhe perguntaram se estava disposto a mudar-se para a casa que lhe tinham arranjado na Foz do Douro, respondeu que aceitava viver no edifício da Fundação desde que lá vivessem também o afilhado e os pais deste, e ele próprio não integrasse a sua direcção.

"Aquilo em que o Eugénio mais insistiu, a mim pessoalmente, e ao Armando Pimentel e à Manuela Melo [os dois vereadores que lidaram com o processo], foi que acautelássemos o futuro da família", disse ontem ao PÚBLICO Fernando Gomes, o presidente da câmara de então. Assegurando que "a vontade da câmara foi a de garantir que os herdeiros do poeta poderiam viver naquela casa até à sua morte", acrescenta: "Se falhou algum pormenor jurídico e a câmara quer agora servir-se disso, acho que é uma atitude inqualificável e que constitui uma violência à memória de Eugénio de Andrade".

Ana Maria Moura confessa-se "muito revoltada" e afirma: "O Eugénio foi tão traído como nós, porque não havia pessoa mais justa do que ele e jamais aceitaria isto". Lembrando que deixou a casa onde vivia, obrigando o filho, então adolescente, "a sair de ao pé dos seus amigos", argumenta que não o teria feito se adivinhasse que lhe iam "fazer isto".

Na origem do problema está a extinção da fundação, solicitada ao Governo pelo último presidente da direcção, o professor universitário e ensaísta Arnaldo Saraiva. O diferendo entre os herdeiros e a direcção da fundação começa logo após a morte do poeta, em 2005, designadamente em torno dos direitos de autor da obra de Eugénio. A família adoptiva levou a questão a tribunal, que, segundo Ana Maria Moura, decidiu, com base no testamento do poeta, que estes pertenciam aos herdeiros.

Em Setembro, o Governo declarou extinta a fundação. Um cenário que o protocolo original prevê, afirmando, na cláusula quinta, que em caso de extinção, "o espólio literário e artístico (...) reverterá através da Câmara para a cidade do Porto". A dita cláusula não faz qualquer referência à casa ou aos locatários. Já a cláusula primeira estabelece que "a cedência tem em vista a instalação da Fundação Eugénio de Andrade" e "a residência do escritor e dos seus herdeiros (...) durante a vida dos mesmos, por um prazo máximo de setenta anos", acrescentando-se na cláusula seguinte que esta cedência é gratuita e "prorrogável por 35 anos".

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