Associação de lares de idosos diz que há mais de mil ilegais a funcionar

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Lar sem alvará em Cascais. Processo de licenciamento teve início há anos daniel rocha

Um milhão de pessoas com 75 ou mais anos. E apenas 1863 lares licenciados. O mercado paralelo ganha espaço. Retrato de um negócio clandestino

O alerta é feito por associações, investigadores e até proprietários de lares privados que se dizem vítimas de "concorrência desleal": "Houve uma explosão em todo o país de casas clandestinas que recebem idosos", diz João Ferreira de Almeida, presidente da ALI - Associação de Apoio Domiciliário de Lares e Casas de Repouso de Idosos. Mais: a crise está a levar mais famílias a preferir pagar menos, optando por respostas mais baratas ainda que com condições precárias.

Muitos lares sem alvará publicitam os seus serviços nas páginas de classificados dos jornais, com anúncios do tipo "Aceitam-se idosos desde 500€ max. 8 utentes". Outros, "mascaram-se como casas de habitação ou pensões", diz Paula Guimarães, jurista e professora na área da Gerontologia.

"Os lares ilegais funcionam em circuito fechado, pelo que não é possível identificar quantos são nem onde estão", faz saber o Instituto de Segurança Social (ISS), em resposta por escrito ao PÚBLICO. Mas Ferreira de Almeida faz contas, com base, entre outras, nas denúncias que lhe chegam dos associados da ALI: "É uma estimativa muito conservadora, mas pelo menos mil lares ilegais existirão no país." Na própria ALI, que congrega 200 lares com fins lucrativos, há 20 por cento em processo de licenciamento.

De qualquer modo, se forem "apenas mil os ilegais", continua Ferreira de Almeida, o volume de receitas oscilará entre os 36 milhões de euros por ano (partindo do pressuposto que cada um recebe apenas cinco pessoas e cobra mensalidades da ordem dos 600 euros) e os 108 milhões de euros (se cada um acolher 15 pessoas).

O presidente da ALI acredita que muitos não pagarão impostos. Para além de que nalguns casos oferecem "condições desumanas" - "É impossível prestar bons cuidados se se cobra uma mensalidade de 500 euros." Num lar lucrativo a mensalidade média ronda os 1200 - "são 40 euros por dia para alojamento, cinco refeições por dia, médico, enfermagem, fisioterapia, animação, salários e encargos com pessoal, higiene, tratamento de roupa, rendas, água, luz, gás... 24h por dia a funcionar. Não há como fugir ao que custa ter um lar a funcionar bem."

Este é um negócio que Manuel Villaverde Cabral, presidente do Instituto do Envelhecimento, admite que ninguém conhece a fundo. Mas que merece "a tolerância do Estado e da sociedade em geral" porque, continua, "o Estado não sabe o que fazer às pessoas que estão nessas casas" e "as famílias também não".

Pelas contas de Lino Maia, presidente da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (CNIS), entre lares da rede lucrativa e não lucrativa, haverá 55 mil utentes e as listas de espera são grandes. Isto num país onde, segundo o Instituto Nacional de Estatísticas, cerca de 916 mil habitantes têm mais de 75 anos. E onde muitas famílias só querem "empurrar o idoso para um lar".

Vários equipamentos têm sido construídos ao abrigo de programas comparticipados pelo Estado e a oferta será hoje um pouco maior do que a referida por Lino Maia (a Carta Social aponta para quase 70 mil vagas no fim de 2009). Seja como for, é fácil perceber que "há mercado" mais do que suficiente para "as casas clandestinas proliferarem", diz.

De acordo com o ISS foram encerrados até Novembro 98 lares ilegais (contra 36 em todo o ano de 2010), 28 dos quais ao abrigo da figura "encerramento urgente" por haver perigo iminente para os utentes. "Mas quantos já se instalaram noutro sítio qualquer?", interroga Ferreira de Almeida.

Problema de saúde pública

Também Rui Fontes, presidente da Associação Amigos da Grande Idade, que reúne investigadores e profissionais de diferentes áreas, diz que "as centenas de lares e casas de repouso para pessoas idosas que permanecem em Portugal fora do sistema de controlo" são "um problema de saúde pública e de concorrência pouco transparente com os operadores licenciados".

A associação, que também presta formação a gestores de lares, fez chegar ao grupo parlamentar do PSD uma proposta de "plano nacional de legalização de lares de idosos e casas de repouso". No documento, apela-se ao Estado Português para que olhe "definitivamente para o problema". E propõe-se que lares que funcionam clandestinamente possam recorrer a uma linha de crédito, com prazos de pagamento alargados, para se legalizarem, à luz de legislação mais flexível. "Não se pode manter uma situação de exigência nórdica em relação à qualidade dos equipamentos e serviços, mas ao mesmo tempo não se deve permitir a situação pantanosa de muitos", lê-se na proposta. Em Agosto, o Governo fez saber que pretendia simplificar a legislação, que assumiu ser demasiado exigente (ver nestas páginas).

Nos últimos dias, o PÚBLICO visitou 15 lares e casas particulares onde se recebem idosos. E falou com alguns proprietários que, apesar de não terem alvará, garantem que recebem visitas da Segurança Social. Ou seja, muitas destas situações são conhecidas e arrastam-se durante anos. O presidente da ALI fala de "contemporização" da fiscalização.

O ISS recusa a ideia. "Sempre que a fiscalização detecta algum lar ilegal, por melhores condições de funcionamento que o mesmo possa oferecer", multa-o, faz saber. "A aplicação desta coima acontece sempre que tal infracção seja detectada."

É um facto que "as equipas da área social" visitam estes lares - "até porque o objectivo é, sempre que possível, que superem as deficiências" para que se adequem à lei e possam constituir "mais uma resposta social". Mas, sublinha o ISS, as equipas de fiscalização podem continuar a multar "uma, duas, três vezes... porque funcionar sem alvará é sempre ilegal. Agora, não se pode encerrar sem mais".

O encerramento imediato de um ilegal só é decretado quando há "perigo iminente para os idosos"; quando não há perigo iminente mas há "um perigo potencial" é comunicado ao proprietário que deve articular-se com as famílias e fechar. O "incumprimento reiterado" também pode ser razão para fecho - mas não está definido durante quanto tempo se admite o "incumprimento reiterado".

Hilário Oliveira, proprietário de um lar numa vivenda com piscina, em Cascais, onde vivem 13 idosos que pagam em média 1400 euros por mês, já recebeu algumas visitas da Segurança Social. Em 2008 foi multado. "É evidente que um lar não devia abrir sem alvará", diz. "Mas o Estado permite que se constitua uma empresa, que se colecta nas Finanças, que faz um investimento e depois os alvarás levam anos a ser emitidos. Por isso, toda a gente abre antes."

Iniciou o processo de licenciamento há quatro anos - o que implica o cumprimento de legislação que vai ao pormenor de definir a dimensão mínina dos compartimentos do lixo, e pareceres da câmara, Protecção Civil, autoridade de saúde e ISS. No seu lar, o equipamento exigido foi adquirido, há acompanhamento médico, o pessoal tem formação, a casa tem bom aspecto, mas neste momento há um problema com um muro do jardim que não cumpre as regras municipais.

Lino Maia conhece estas situações. "Ando no terreno, vejo bastantes lares ilegais. Há muito maus e outros com qualidade. Podem não prestar toda assistência desejável, não ter ocupação de tempos livres, animação, apoio psicológico. Mas têm higiene, estão equipados, fornecem boa alimentação." Por isso, não o surpreende que a Segurança Social acabe por "fechar os olhos" se "só falta um papel".

Há inclusivamente hospitais a sugerir às famílias lares que funcionam ilegalmente. O Centro Hospitalar do Médio Tejo (CHMT), por exemplo, produziu folhetos para distribuir pelos utentes: um tem o título "Lares para idosos sem alvará". Segue-se uma lista com nomes e moradas. Contactado pelo PÚBLICO, o CHMT lembra que os folhetos são de 2006. "O mesmo tinha sido detectado há relativamente pouco tempo numa das unidades do Centro Hospitalar e por isso a situação foi regularizada no final do mês de Novembro, retirando de circulação todos os exemplares que, erradamente, ainda restavam", diz Margarida Marques, do gabinete de comunicação.

Ferreira de Almeida garante que, com tudo isto, há lares legais, lucrativos, que começam a ter vagas que não conseguem preencher. O que é inédito. Enquanto isso, casas sem alvará têm listas de espera, diz Lino Maia. "Pombal, Leiria, Santarém, margem Sul... estão infestadas", diz Almeida. São as que cortam em quase tudo que o preocupam. "Se maltratar é bater, penso que não será assim tão generalizado quanto isso", diz. "Mas se é tratar com pouca atenção, não mudar uma fralda a tempo, não alimentar como deve ser, faltarem colchões antiescaras, cremes para hidratar a pele, está mais generalizado. Porque estas coisas representam custos."

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