1917-2011Madalena Sotto Na morte de uma actriz

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Madalena Sotto foi primeira figura de um teatro português ido, foi Desdémona, Lady Windermere, Amanda. Jorge Silva Melo recorda-a, "uma senhora elegante, com um sorriso de desdém que a tornava distante, um pouco fria". "Nós, os que ditámos o teatro que se tem vindo a fazer, não fomos precisando dela - inventámos outros nomes, esquecemos, vencemos, que injustiça."

Veio assim, brutal, no sobrescrito que me chegou "devolvido ao remetente": faleceu. Madalena Sotto terá morrido, pelos 85 anos, no Porto, para onde se remetera nestes últimos anos - para perto de familiares, ao que creio. Não vi jornais que tenham noticiado essa morte, e já poucos saberão quem foi ela - que tem rua e biblioteca com seu nome em Oliveira de Azeméis, onde cresceu.

0 teatro português é assim mesmo, coisa que passa, ou até, se calhar, que já passou.

E, no entanto, Madalena Sotto foi primeira figura, Desdémona junto de Alves da Cunha, a verdadeira Lady Windermere junto de Amélia Rey-Colaço, foi empresária com Ribeirinho e com Assis Pacheco, estreou-se na ingénua dessa linda e esquecida peça que é Os Velhos de D. João da Câmara (junto de Alves da Cunha), estreou a Amanda das Vidas Íntimas de Noel Coward, foi a Isabel do Alcaide de Zalamea (com Alves da Cunha, sempre), fez o maliciosíssimo Amor de Quatro Coronéis de Peter Ustinov, naquele teatrinho Avenida a que o seu nome está ligado (já não existe, ardeu em 67, ninguém o reconstruiu e eu gostava tanto dele), tantas vezes que foi cabeça de cartaz de comédias sofisticadas ou nem tanto (que o público gostava de coisas mais chãs), Pirandello também, estava na estreia das Seis Personagens no histórico 1958 de tantas esperanças e tristezas, em que a Censura deixou passar umas quantas coisas de que suspeitava - e ela fez o Geboe a Sombra e foi a Colombina de um Goldoni que Saviotti ali estreou (e quem o faria agora, com que risco comercial?).

"Ninguém como ela sabe fazer papéis irónicos", dizia-me tantas vezes o Augusto de Figueiredo, seu amigo - e acho que, com isso, insinuava que a deveríamos convidar para a Cornucópia, naqueles anos de renovação em que tanto foi deixado para trás, salas que não ocupámos e agora estão em ruínas, actores que deixaram de ter lugar porque o seu mundo ruíra, mundo de pó-de-arroz e tafetás, mundo semi-francês das toilettes e cigarrilhas, sedas dos Souzas e o Ramiro Leão do célebre elevador com groom.

Vi-a muitas vezes, sim, lembro-me dela na triste companhia municipal que dirigia o Augusto na Estufa Fria, lembro-me dela na Arkadina da pobre Gaivota que Amélia montou no Trindade, produção atribulada que fora pensada para o João Perry, lembro-me dela nos teatros da televisão, senhora elegante, janota, com um sorriso de desdém que a tornava distante, um pouco fria, nada simpática, como, afinal, tantas das primeiras damas inglesas, actrizes e detectives que nos habituámos a adular (mas dela fomo-nos esquecendo). Sempre lhe ouvi elogiar a dedicação, aquela coisa a que agora chamam o profissionalismo, e eu chamaria o empenho em fazer bem, o silêncio cuidadoso, o recato com que encarava uma profissão onde envelhecer não é fácil - e a maneira delicada como passara de primeira figura sedutora (picante, aventureira) para secundária, algumas vezes lhe ouvi elogiar o carinho pelos mais novos, a solidariedade para com pessoas que, no seu tempo, passaram tantos e tão injustos maus bocados. Teria ela uns 60 anos quando terminou a carreira, na Companhia de Teatro de Lisboa, convidada pela Graça Lobo (que, com ela, anos antes, fizera um Albee - Tudo no Jardim - dirigido por Jacinto Ramos) para a sua Hedda, já para fazer de tia velha, a Tia Juliana, naquele que foi o seu derradeiro trabalho, ai, já passaram 25 anos, em 86.

Terminar a carreira aos 60 anos, mais nova do que eu agora sou, que injustiça, e digo-o sinceramente, eu que não a conheci, nunca a vi sem ser nos palcos e nos écrans (A Varanda dos Rouxinóis que lhe trouxe fama popular), faz-me impressão que morra assim uma actriz, esquecida, recolhida ao ambiente da família.

Ela vinha de um tempo em que os actores frequentavam os jornalistas e escritores, Artur Inez terá sido quem a apresentou a Leitão de Barros, homem de jornais e fitas, foi benquista por Alves da Cunha, a sua derradeira ingénua, era o teatro do Chiado, do fumo e dos jornais, das sedas e das intrigas. Depois, depois, a vida foi avançando, o mundo de que sabia falar, com distância e malícia, desaparecia, a ironia nunca vingou no pequeno comércio teatral, a sofisticação muito menos, a subtileza nunca passou das primeiras três filas dos teatros, dos cartazes foram saindo os autores dos entre-duas-guerras em que ela, ao que me dizem, brilhava de brilho verdadeiro, o teatro esqueceu-se, dos camarins foram saindo os tapetes, as chaise-longues e as rosas.

Não me faz falta esse mundo brilhante e protegido, sempre ansiei por uma modernidade que não tivemos, não gostava desse teatro para comerciantes da Baixa ou notários de província com esposa que vinha às compras ao Paris em Lisboa, não.

Mas entristece-me saber que uma rapariga, filha de professores, ainda adolescente, lá veio, em 1939, de Oliveira de Azeméis para Lisboa (o meu pai contava essa história, falava de Ferreira de Castro e de Madalena Sotto naquela subida por onde passávamos nas viagens para o Minho, atravessando a vila), ganhando um célebre concurso da revista Cinéfilo, fez o que pôde com energia, dedicação e aplauso - e nós, os que hoje ficámos na profissão, bem mais velhos do que ela quando começou a ficar esquecida, nós, os que ditámos o teatro que se tem vindo a fazer (melhor do que o dela? Pior? Ou nem por isso?) nestas décadas, nós mesmos, não fomos precisando dela - e, com o pouco dinheiro que podíamos pagar, não ousámos convidar, inventámos outros nomes, esquecemos, vencemos.

Pois é, veio-me esta leve tristeza com aquele sobrescrito brutal. Será assim a vida, vamos despedindo, vamo-nos despedindo, não vamos chamando para o nosso lado, não queremos saber de quem antes de nós veio, esbracejamos, que injustiça.

De Madalena Sotto, como é linda esta fotografia de outros mundos, ela, a jovem Lady Windermere num cenário que mais Lucien Donnat não pode haver, num espectáculo que não vi (O Leque de Lady Windermere, de Oscar Wilde, no D. Maria, em 1944) e de quem tantos e tão originais tanto bem me disseram, esta imagem, este sorriso sarcástico, esta arte de vestir.

É só isso o teatro, este sorriso assustado que fica na fotografia qundo se tem 20 anos? Talvez.

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