Galvão foi mais do que o homem do assalto ao Santa Maria

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Francisco Teixeira da Mota pedro cunha

Apoiante do Estado Novo desde a primeira hora, acabou a combater a ditadura, o que lhe valeu a prisão e o exílio. Teixeira da Mota escreveu Henrique Galvão, um herói português. Um retrato de corpo inteiro de um homem que fez tremer o regime de Salazar

Solitário, teimoso, inteligente, culto, corajoso. São características que Francisco Teixeira da Mota, advogado e colaborador do PÚBLICO, vê em Henrique Galvão, um homem do regime que se passou para o campo da oposição democrática a Oliveira Salazar. Henrique Galvão, um herói português (edição Oficina do Livro) traz à luz do dia muita informação inédita sobre esta complexa e controversa personalidade do universo português do século XX. Ao escrever este livro, Teixeira da Mota quis dar vida a alguém que se estava a apagar na memória dos vivos: "É um resgate ao esquecimento e acho que isso é importante, porque vivemos da memória."

Antes de começar a investigação, quem era Henrique Galvão para si?

O que era para a maioria das pessoas - o homem que tinha feito o assalto ao Santa Maria, que tinha sido do Estado Novo e que depois se tinha passado para o outro lado. Eu próprio não conhecia muito bem o processo através do qual ele se tinha desafectado do regime.

Qual é agora o seu retrato de Galvão?

Continuo a achar que ele foi um herói português, embora já me tivessem dito que seria melhor dizer que ele foi um herói solitário.

Henrique Galvão era um homem ambicioso, com qualidade, intelectualmente superior em relação à elite do Estado Novo. Isso sentia-se e nunca foi reconhecido. E não o foi porque, na minha opinião, Salazar sabia que ele era um indivíduo incontrolável. Nunca poderia estar num escalão elevado do regime, porque a certa altura iria escoicear, era certo. Foi acusado de ter-se virado contra o Estado Novo ao não conseguir o lugar que pretendia. Não é verdade. Mas eu diria que ele quis ter um lugar mais alto e se fosse parar a governador de Angola ou ministro das Colónias, que era o que se dizia que ele queria - admito que sim, embora ele nunca o tenha dito -, estou convencido que iria de novo incompatibilizar-se com o poder. Isto é estrutural nele e isso é que é fascinante. Personagens como Henrique Galvão têm a tragédia inserida na vida e, fatalmente, por mais doce que a realidade fosse, iria sempre descobrir um motivo para não a aceitar tal como ela era e para a querer transformar segundo a sua visão. Ora, a sua visão nunca seria aceite, porque o Estado Novo não aceitava heterodoxias, pessoas diferentes. Tinha que ser gente da mesma natureza daquela elite, como Mário de Figueiredo ou Vieira Machado. Ele era fatalmente um outsider. A imagem com que eu fiquei é essa, a de um personagem sozinho, teimoso, inteligente e corajoso.

Características que no final da vida se acentuam muito...

Já há bastante tempo que se vinham manifestando os sintomas de arteriosclerose - as paralisias parciais que o afectaram na prisão, por exemplo. Na fase final da sua vida, esses sintomas acentuam-se, manifestam-se os quadros obsessivos e ele entra um bocado em "parafuso". Vê conspirações em todo o lado, ameaças dos comunistas que o querem liquidar, etc. Essa fase final da sua vida é trágica. Para mim, Galvão foi uma pessoa brilhante; pertence à categoria das pessoas-cometas, que atravessam o firmamento, brilham muito e depois desaparecem.

Como é que chegou ao resultado final que é este livro?

Henrique Galvão surgiu numa conversa à volta do desvio do navio Santa Maria por um comando luso-espanhol e do filme que o Francisco Manso queria fazer. Vi que Henrique Galvão era muito mais do que o episódio do Santa Maria que organizou e em que participou. Colaborei na feitura do filme, mas sobretudo fui desenvolvendo a investigação global sobre a vida de Galvão. Há bastante material, sobretudo sobre o episódio do Santa Maria, mas não havia nenhum livro sobre o Galvão propriamente dito. Eu utilizo um método que consiste em falar a toda a gente do que ando a fazer. Podem roubar-me as ideias, mas tenho muito retorno porque Portugal é uma aldeia e a certa altura encontrei alguém que conhecia uma sobrinha do Henrique Galvão. Foi por aí que tive acesso ao espólio dele. A seguir andei pelos alfarrabistas. E foi através deles que cheguei a parte do espólio que estava nas mãos de particulares e que acabei por adquirir. Havia fotografias da Exposição Colonial de 1934, no Porto, algumas cartas, fotografias... Depois, andei pela Torre do Tombo, Biblioteca Nacional e a Internet, local imprescindível de pesquisa e informação.

O que lhe saltou mais à vista nessa pesquisa?

Henrique Galvão escrevia maravilhosamente bem e tem livros fantásticos. Procurei transmitir isso fazendo numerosas citações. Mas ele escrevia à moda dos anos de 1930 ou 1940. Isto é, ideologicamente, a sua visão do mundo é o que hoje diríamos racista, paternalista, sexista. Uma das coisas que eu procurei no livro foi, precisamente, não fazer nenhum julgamento de valor. Qualquer leitor poderá ter as suas opiniões ideológicas, mas eu não queria que o livro transmitisse isso, para além de alguma simpatia pessoal pelo personagem que, creio, é notória.

A questão colonial foi fracturante no percurso de Henrique Galvão?

Completamente. Há três fases a considerar. Na primeira, quando ele está na Huíla, Angola, no período 1927-29, em que ele acha que nem temos de dar resposta ao relatório da Sociedade das Nações sobre a situação colonial e a exploração do trabalho indígena. Acha que é necessário obrigar as populações a trabalhar, mas não em regime de escravatura. Ele adere ao sistema colonial em pleno.

Nos anos 1930-40, ele vai ter uma visão diferente. Acha que o que eram pequenos defeitos ou erros do sistema são afinal problemas estruturais. O sistema é um sistema de abuso - para Galvão a transferência forçada de angolanos para S. Tomé é uma coisa chocante. No papel diz-se que essa deslocação não pode ocorrer, a não ser em determinadas condições, mas as populações são deslocadas em massa. Ele conclui que no tempo da escravatura os patrões eram pelo menos obrigados a cuidar dos escravos, caso contrário era um activo que perdiam. Quando passam ao regime de trabalho compelido, se morrerem (morriam em S. Tomé cerca de 30 por cento dos negros que para lá eram transferidos) pede-se ao Estado que os substitua! A compreensão que ele teve deste sistema é que o leva, na minha opinião, a criar um núcleo duro de oposição ao regime. Embora ele seja colonialista e, se quisermos, racista, é-o num sentido paternalista, e não no sentido esclavagista. Ele entende que da forma como as coisas estão a ser geridas nunca o Império será aquilo com que ele sonhava. Ele vai fazendo os seus relatórios, tenta punir as pessoas que abusam quando passa por África, mas é um solitário...

O golpe final nessa ilusão é a passagem pela Assembleia Nacional, onde vê serem recusadas todas as suas propostas?

Ele esteve em África como funcionário público e não conseguiu nada. Fez relatórios a Vieira Machado, Marcelo Caetano, Teófilo Duarte, todos ministros das Colónias, mas nada acontece. A seguir, decide actuar a nível da Assembleia Nacional, onde é deputado. Mas também aí lhe fecham a porta e decide-se então a investir mais na comunicação social, onde começa a atacar o regime. É aí que a ruptura é feita e, a seguir, lhe cai tudo em cima.

Por que é que o percurso de Henrique Galvão depois de sair de Portugal - a passagem pela Venezuela, o assalto ao Santa Maria, a conspiração permanente no Brasil até à sua morte, em 1970 -, é tratado com menos profundidade?

Considerei que o que havia mais de único a trazer ao conhecimento público era essa fase do passado de Galvão e a evolução dele até à ruptura com o regime, a passagem pela prisão e o drama individual daquele homem que era "antes quebrar do que torcer". E, por fim, o choque com Humberto Delgado.

São dois militares muito diferentes?

São próximos e diferentes. São dois "galarós", dois narcisos, ambos um pouco excessivos. Só podiam dar-se mal. Delgado era extrovertido de mais e criou grandes incompatibilidades, enquanto Galvão é mais diplomata. Mas onde vai haver a grande cisão é na questão de colaborar ou não com os comunistas. Esta é a pedra de toque do afastamento entre ambos. Galvão não quer substituir uma ditadura por outra. Bem ou mal, estabeleceu essa opção e não se desvia até ao fim - é isso que eu gosto nele. É um indivíduo que podia ter tudo ou quase tudo no regime, mas vai construindo o seu percurso individual alheio a todo esse exterior que o poderia seduzir. Nunca amealhou um tostão, nunca teve dinheiro e, no entanto, foi acusado sempre de ter roubado. De facto, morreu pobre e quem lhe pagou a estada, nos últimos anos de vida, foi o jornal brasileiro Estado de S. Paulo. Quando Mário Soares o visitou em 1970, até lhe pediu um cigarro.

Galvão conheceu Álvaro Cunhal?

Tive acesso a documentação inédita onde Galvão se refere a esse encontro na prisão. Sabe-se que Cunhal lhe censurava o preconceito em relação aos presos comuns, pois ao considerar-se um preso político achava que não tinha de se dar com os restantes. Cunhal, pelo contrário, queria estar no seio dos presos comuns, Apesar disso, Galvão conta que tinham uma boa relação formal, sendo Cunhal quem se lhe dirigiu inicialmente e falaram dos adversários comuns. Diziam mal de Salazar e isso chegava-lhes.

No livro refere que Galvão terá sido ferido em Espanha, em 1936, possivelmente no massacre de Badajoz. Participou na guerra civil?

Ele vai a Espanha nessa altura e a data coincide com esses acontecimentos. Galvão nunca diz que esteve em Badajoz. Os elementos de que disponho são respeitantes ao conflito que ele tem com Vieira Machado por este não lhe querer pagar os três dias em que esteve ausente sem autorização para desempenhar uma missão secreta. Esta missão é realizada no âmbito do Ministério das Obras Públicas, que tutela a Emissora Nacional, da qual ele era director desde 1935. Tudo o que se sabe é que foi a Espanha, veio ferido e trouxe uma pistola... Como director da Emissora Nacional, e até o Governo português ter reconhecido a Junta de Burgos [o Governo franquista], defendeu sempre uma maior neutralidade em relação a Espanha, em contraste com o Rádio Clube Português, que fazia campanha a favor dos falangistas. Achava, em cartas enviadas a Salazar, que tínhamos de manter as relações com a II República espanhola, por mais que isso lhes custasse, o que é curioso como posição institucional.

Qual é o peso simbólico de Galvão na luta política daqueles tempos?

Pensa pela sua cabeça e actua não em função do que acha correcto. Era uma pessoa muito mais culta do que Delgado, por exemplo. Publicou muitos livros e tinha um sentido muito agudo de observação. E tudo isso com humor, pois há sempre uma certa ironia que transparece no que ele escreve. Naquela altura não havia quase ninguém que se atrevesse a isso numa terra de yes man, a falar assim com um ministro... Galvão era um homem sempre à solta e não tinha hipótese de ser absorvido pelo regime.

A luta clandestina que desenvolve na Penitenciária de Lisboa assim o prova...

É um episódio fascinante! Galvão está na prisão, foi condenado e faz sair 11 números do Moreanto, um panfleto clandestino de 500 exemplares impresso na tipografia do estabelecimento. A PIDE passa-se quando descobre que há milhares de exemplares a circular por Lisboa que foram impressos dentro da prisão! Dá noção da coragem do homem, que está lixado e começa a congeminar na prisão uma coisa de que não fala sequer aos seus advogados e convence um recluso a imprimi-lo. Isto define o personagem na perfeição. Galvão vai acumulando processos dentro da prisão, porque nunca dobra e não suporta deixar-se intimidar. A cada ataque, a grande questão dele é conseguir reagir.

Ter sido um apoiante de peso do regime valeu-lhe um tratamento diferenciado pela PIDE?

Indiscutivelmente. Ele não era comunista e nunca foi torturado. O regime tratou-o como um oposicionista que era do regime, isto é, continuava a vê-lo como militar, apesar de ter sido afastado. Sofreu maus tratos (má alimentação, regime de isolamento, condições celulares insalubres), mas nunca lhe bateram ou privaram do sono. Em Peniche, por exemplo, tinha quase uma espécie de ordenança que lhe fazia as coisas, como limpar as latrinas. Ele recusava-se e dizia que não o fazia, nem a tiro. Qualquer comunista que dissesse isso levava um tiro. Não havia espaço para um comunista actuar na prisão como ele actuou.

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