Cabala Não é judaísmo, não é religião, não é ritual, culto, new age. É old age e está a crescer em Portugal

O New York Times diz que a Cabala "responde à fome" das pessoas por auto-ajuda. Em Portugal está a aumentar o número dos que procuram os ensinamentos do Kabbalah Center. E já se prepara a vinda de Yehuda Berg, o "cabalista do povo" - e o preferido de Madonna.

São oito e meia de uma noite de domingo e a Avenida da Liberdade, em Lisboa, está praticamente deserta. Com uma excepção: um hotel próximo do Parque Mayer, onde não param de chegar pessoas. Entram, descem uma escada, atravessam um corredor estreito, pagam os dez euros de bilhete de entrada e instalam-se numa sala.

O ambiente é animado. Algumas pessoas cumprimentam-se, outras observam os livros dispostos numa mesa junto à entrada. Uma mulher loura, de vestido preto, fala com quem vai chegando. Reconhece uns de sessões anteriores, apresenta-se a outros. É Hannah Diandre, brasileira, e o cartão que nos vai dar indica que é "instrutora da Cabala".

Há cerca de ano e meio que Hannah começou a viajar regularmente para Portugal para fazer palestras com pessoas interessadas no estudo da Cabala, o misticismo e esoterismo judaico. O resto do tempo dá, a partir de Telavive, Israel, aulas online aos que querem aprofundar os estudos.

A sessão de hoje tem como tema a Lua Nova de Sagitário. O bilhete de entrada que acabámos de receber diz que "Sagitário é famoso pela abertura cósmica de chanukah e a conexão aos milagres, a essência deste mês. A sua capacidade de fazer o impossível acontecer está agora no seu auge". Na hora e meia que se segue, Hannah vai dar algumas explicações básicas sobre os princípios da Cabala e, sobretudo, sobre o calendário cabalístico e os ciclos da lua e a ligação com a astrologia.

Hannah Diandre é uma chevre, o que significa que pertence a um grupo de perto de 200 pessoas que são os instrutores do Kabbalah Center, a organização criada em 1965 nos EUA pelo rabi norte-americano Philip Berg e a sua mulher, Karen. Baseado em Los Angeles, o centro tornou-se famoso sobretudo depois de se saber que Madonna se tinha tornado uma estudiosa da Cabala, e com ela várias figuras de Hollywood, entre as quais a actriz Demi Moore, e o (agora ex) marido Ashton Kutcher.

Figura de referência para Madonna é Yehuda Berg, filho de Philip e Karen, que, juntamente com o irmão Michael, se tornou um dos maiores divulgadores da Cabala - algo que, dizem repetidamente (e em Lisboa Hannah também frisou), não é uma religião.

O que é então a Cabala? Hannah começa a sua aula por aí. Ou melhor, começa pelo que não é: "Não é judaísmo, não é religião, não é ritual, culto, new age. Cabala é old age, os ensinamentos que sempre estiveram aqui, desde o início dos tempos, antes da criação, leis espirituais universais para toda a humanidade."

À procura de líderes

Uns dias depois, numa entrevista com a professora da Cabala para Portugal, tentamos perceber melhor. "Não procuramos alunos, procuramos líderes", diz. "A Cabala não é uma filosofia, a filosofia pode ser muito interessante, muito inspirador, mas é algo passivo, e a Cabala é muito activa." Mas, insistimos, há regras que têm que ser seguidas? Não. "A velocidade de viver a Cabala vai de acordo com o desejo de cada pessoa. Algumas começam a gerar mudança dentro da sua vida depois da primeira ou segunda aula. Outras assistem de forma passiva."

Na sessão de domingo à noite percebe-se pelas perguntas e comentários que há quem já tenha passado pelas fases iniciais: o Cabala 1 (oito horas de aulas, "em que passamos pelos conceitos mais básicos e os mais importantes para que se possa começar a entender essas leis do universo"), Cabala 2 e Cabala 3. Há também, explica a professora, cursos sobre "prosperidade, paz, amor, meditação".

Hannah não sabe dizer ao certo quantas pessoas estudam a Cabala em Portugal, mas diz que o grupo de estudos baseado em Lisboa "está a crescer" - calcula que no último ano e meio tenham feito cursos ou assistido a palestras umas 400 ou 500 pessoas e que "quase 2500 recebem sintonias diárias no grupo do Facebook".

Leonor Moreira, que conheceu a Cabala pela primeira vez no Brasil, faz hoje parte do grupo de Portugal que, quando Hannah não está, organiza mensalmente os encontros da Lua Nova. "Nunca pertenci a nenhum partido, a nenhuma organização de juventude, não sou muito dessas coisas", afirma. "Mas a Cabala fisgou-me." Porquê? Porque "faz tudo muito sentido, do ponto de vista racional e não só". Não se trata de estudar para ir acumulando conhecimento. É, diz Leonor, "uma maneira de viver".

O conselho que dá é para que se tente pôr em prática o que se aprende. "À medida que se vai pondo em prática e que isso vai ressoando na nossa alma, vamos abrindo o receptor. Mas cada um avança completamente ao seu ritmo. Não há julgamento. A Cabala é totalmente tolerante." Compara-a com um "ginásio espiritual" em que quem quer mais resultados avança mais depressa, mas quem quer ir mais lentamente não é penalizado.

Uma das aprendizagens base é a de evitar seguir os nossos primeiros impulsos - evitar ser reactivo. Parar para pensar e assumir, perante, por exemplo, uma situação que nos provoca irritação, uma atitude que represente uma mudança em cada um e, portanto, crescimento pessoal.

"Não ser reactiva é reagir, mas tomando o controlo sobre as coisas", explica Leonor. "Ganha-se uma energia fantástica. É incrível as coisas em que gastamos energia, quando estamos em modo reactivo."

E o que é mais difícil? "Fácil é entender com a cabeça, racionalmente. Difícil é fazer o meio metro entre a cabeça e o coração." E sublinha: "Como não é uma questão de fé, temos um desprendimento em relação ao que estamos a aprender [que torna tudo mais fácil]."

Um sinal de que Portugal já tem alguma importância na estratégia de difusão do Kabbalah Center na Europa é o facto de estar a ser preparada a vinda de Yehuda Berg - a data definitiva ainda não foi marcada, mas a visita deverá acontecer na Primavera.

A informação que recebemos já relacionada com a preparação desta visita apresenta Berg como co-director do Centro Internacional Cabala, e "autor de best sellers como O Poder da Kabbalah, O Poder de Mudar Tudo, Spiritual Rules of Engagement e Os 72 Nomes de Deus". Chamam-lhe "o cabalista do povo", e em 2007 a Newsweek "elegeu-o um dos rabis de topo dos EUA".

Hannah oferece-nos O Poder da Cabala - Tecnologia para a Alma (edição brasileira. Na capa uma frase de Madonna: "Nenhum abracadabra, nenhum truque ou enganação. Nada a ver com dogma religioso. As ideias contidas neste livro são de fazer a terra tremer, e, ao mesmo tempo, são muito simples.").

Um dos primeiros capítulos anuncia: "Acabou o segredo." E é aí, nessa frase, que reside em grande parte o sucesso do Kabbalah Center e da família Berg. O que eles dizem é que abrem a todos um conhecimento que se supunha altamente secreto, e só acessível a quem atingisse um nível de estudos elevadíssimo, e colocam-se assim numa linhagem "de corajosos cabalistas que foram rejeitados pelo establishment religioso pelos seus esforços para tornar a Cabala e os ensinamentos do Zohar [o conjunto de livros com dois mil anos, que reúne "o conhecimento legítimo sobre a Cabala"] disponíveis e acessíveis para todos os tipos de pessoas".

Hannah, por exemplo, começou há seis anos, quando um amigo a levou a uma sessão do Kabbalah Center. "Eu tinha ouvido a palavra Cabala, mas era "isso é segredo, não se toca". Quando cheguei ao centro, comecei a encontrar respostas, a entender. A Cabala é como um manual. A gente fica andando por aí sem manual, vamos tentando por aqui, não dá; depois tentamos por ali e também não dá. A Cabala dá-nos instrumentos para que possamos andar melhor."

Houve um momento em que sentiu "que a vida não ia ter mais sentido, se não partilhasse de forma mais intensa" o que estava a aprender. Deixou o design, em que trabalhava, e tornou-se professora - embora isso "não corresponda a um título, mas a um estado de consciência".

Fórmula revelada

Avançamos várias páginas no livro e chegamos ao Décimo Segundo Princípio da Espiritualidade, que nos diz que "a mudança interna verdadeira é criada através do poder de ADN das letras hebraicas", e explica que foi graças a uma fórmula "que literalmente lhe dava acesso ao âmbito subatómico da natureza" que Moisés abriu o mar Vermelho. Essa fórmula (os 72 Nomes de Deus) "estava oculta no Zohar" e agora, "com o súbito renascimento da Cabala, foi finalmente revelada ao mundo".

É precisamente isto que tem suscitado desconfiança relativamente ao Kabbalah Center da parte de alguns rabis e organizações judaicas. Mas para Hannah "este é um dos trabalhos mais espectaculares que eles [os Berg] fazem: trazer para todos algo que era fechado para um grupo específico de pessoas". "Os conceitos são muito simples. Ninguém precisa de ter 50 anos de estudos para perceber que existe um nível de semente para tudo na vida. As catástrofes, os desastres, as crises financeiras, tudo o que existe hoje são frutos, e para eles existirem teve que haver uma semente noutro lugar."

Força da astrologia

Uma das críticas que se tem feito ao Kabbalah Center é a de que dá demasiada importância à astrologia. "A primeira escrita espiritual do mundo foi feita por Abraão há quase quatro mil anos", responde Hannah. "Ele foi o primeiro astrólogo do mundo. A Cabala usa a astrologia, sim. Todas as religiões se conectam com a astrologia, mas a gente perdeu-se no caminho. Começámos a ver a astrologia como a página de uma revista que dita em sete linhas o que vai ser o meu mês. Mas a astrologia é muito mais profunda."

Mas há outras críticas feitas ao movimento. A revista Sábado publicou recentemente um artigo no qual dizia que várias figuras portuguesas que se tinham aproximado da Cabala acabaram por se afastar, desiludidas. Há no texto quem conte que, numa sessão, foi sugerido aos presentes que dessem o dízimo (dez por cento do ordenado) à organização.

Hannah diz que há aqui um erro de interpretação. "Não existe dízimo. As pessoas pagam, assistem às aulas, há material que é dado gratuitamente, o cento dá até bolsas de estudo. Infelizmente a palavra "dízimo" foi muito distorcida. O que o centro ensina é que todos precisamos de dar algo que gere luz no mundo, mas não se refere especificamente a dinheiro. Há pessoas para as quais pode ser mais fácil passar um cheque do que dar três horas do seu dia ocupadíssimo. Para essa pessoa o mais valioso é dar essas três horas."

Na contracapa do livro de Yehuda Berg está uma citação do The New York Times que diz que a Cabala "é parte da fome da América por auto-ajuda e por respostas para grandes perguntas metafísicas com que as pessoas se confrontam ao envelhecer". Perguntamos a Hannah em que é que a Cabala tal como é ensinada pelo Kabbalah Center difere dos milhares de sessões de auto-ajuda que acontecem no mundo e que pretendem levar as pessoas a conhecer-se melhor e a controlarem as suas emoções negativas. "A Cabala é a semente de tudo", responde. "A gente pode relacionar-se com uma certa técnica, um poema, uma inspiração, uma doutrina, mas, se a pessoa quiser buscar a semente do que está aprendendo, vai acabar por encontrar a Cabala. Ela precede tudo, é o que sempre existiu."

Olhamos mais uma vez para a contracapa do livro. No topo, duas palavras a vermelho, e uma promessa: "Nada menos... do que as respostas definitivas para as mais importantes perguntas da existência humana."

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