Torne-se perito

Em nome do pai, do filho e do espírito coreano

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Em cima: Kim Jong-il em criança com o pai e a mãe, Kim Jong-suk, KCNA/REUTERS

Diziam que era louco, imprevisível, impiedoso. Chamaram-lhe monstro e acusaram-no de ter transformado o país num gulag. Na Coreia do Norte, Kim Jong-Il era simplesmente o "Querido Líder"

Na década de 1920, um proprietário de terras cruel explora a família de uma rapariga, Ggot-bun. Ela vê-se obrigada a ir para o mercado vender flores para pagar os medicamentos da sua mãe doente; mas lá, é insultada e admoestada pelos colonizadores japoneses e os seus aliados coreanos. Numa noite de luar, é falsamente acusada de roubo. A polícia espanca-a. Depois é vendida pelo proprietário, que ainda agride a sua mãe até à morte e cega a sua irmã. No fim, um grupo de guerrilheiros vem salvar Ggot-bun e levá-la de volta à família.

A ópera Rapariga das Flores foi encenada e dirigida por Kim Jong-il em 1979. E é apontada pelo jornalista Bradley K. Martin, que então a viu em Pyongyang, como o exemplo de que o "Querido Líder" é mais do que o tirano que aparece descrito na imprensa estrangeira. "Não era só um ditador, era alguém com um talento genuíno para o palco e para o drama", disse ao PÚBLICO. "Rapariga das Flores era uma superprodução dele, e era excelente".

Martin levou mais de dez anos a preparar o seu livro de 700 páginas Under the Loving Care of the Fatherly Leader. E de todos os lados exóticos que formam Kim Jong-il, a sua vertente artística foi a que mais o surpreendeu, por revelar uma verdade quase universal: "Ele é uma personagem bem mais complexa do que se pensava", adianta.

No entanto, uma das suas características mais mencionadas provou-se sistematicamente verdadeira. Kim Jong-il era indomável. Só a morte poderia tirá-lo do poder. E enquanto viveu nada o ameaçou. O país que ajudou a construir, primeiro para o seu pai, Kim Il-sung, e depois para si próprio, não conheceu grandes momentos de distensão política que permitissem esperar por uma verdadeira mudança.

Uma dinastia comunista

Kim Il-sung criou a única dinastia comunista do mundo. Poderia dizer-se que seria simplesmente uma forma de egocentrismo: o líder apenas vê o seu filho, sangue do seu sangue, como o único capaz de continuar o seu trabalho.

Mas pode não ter sido bem assim. "Kim Jong-il teve de rivalizar a liderança com o tio [Kim Yong-ju] e com o irmão [Pyong-il]", diz ainda Bradley K. Martin. "Conseguiu vencer através da idolatria. Kim Il-sung adorava ser idolatrado e Jong-il usou isso a seu favor". Usou-o de tal forma que esse se tornou num dos pilares da sua legitimidade. "A teoria dele era: "Eu sou o pastor de Kim Il-sung, e por ser mais devoto que todos os outros mereço liderar o país"", continua Martin.

Quando, em 1945, Kim Il-sung fundou a República Democrática Popular da Coreia, introduziu o culto pelo seu inspirador, Estaline. Mas apenas dois anos depois, já mandava erguer uma estátua sua em Pyongyang e baptizara a única universidade do país com o seu próprio nome.

A ideologia juche foi adaptando o socialismo ao ego gigantesco de Kim Il-sung sob uma capa nacionalista. Passou de um sinónimo de auto-suficiência e independência política, económica, defensiva e ideológica - criando distância dos regimes comunistas de Moscovo e de Pequim - para um tipo extremo de xenofobia.

Muito do que se sabe agora sobre a Coreia do Norte deve-se a Hwang Jang-yop, o ideólogo do regime que, a partir de 1958, e durante mais de 30 anos, subiu vários degraus da hierarquia. Numa tarde de Fevereiro de 1997, deixou a embaixada norte-coreana em Pequim, dizendo que ia às compras. Conseguiu escapar aos seus acompanhantes, entrar num táxi e mandar o carro seguir para o consulado da Coreia do Sul. Pediu asilo. Como escreveu uma vez o Washington Post, foi como se Goebbels tivesse abandonado Hitler.

A comparação não é aleatória. O próprio Hwang diria que os dois regimes eram equivalentes nas suas consequências. Mas foi ele um dos grandes responsáveis pelo desenvolvimento da ideologia juche que tornou Kim Il-sung num deus vivo.

"Decidimos que tudo no Norte deveria ser decidido em conformidade com a realidade chosun [coreana] e no interesse do povo chosun e da sua procura da revolução", escreveu Hwang.

"Os norte-coreanos tentaram erradicar todas as formas de influência estrangeira e impediram de entrar no país qualquer coisa que viesse de fora", escreve Jasper Becker em Rogue Regime: Kim Jong Il and the Looming Threat of North Korea.

Jasper adianta que a máquina de propaganda atingiu picos de loucura na década de 1960, apresentando Kim Il-sung "como o Cristo salvador da Coreia". E, em 1970, o 5.º Congresso do Partido dos Trabalhadores formaliza a adopção do juche como o único princípio orientador para todas as acções, públicas ou privadas, políticas ou pessoais.

O ideólogo diz que foi Kim Jong-il quem transformou o estalinismo de tal forma que, em vez de o líder estar ao serviço do povo, o povo passou a estar ao serviço do líder.

Desde muito cedo que a função que Kim Jong-il tomou para si era alimentar a adoração colectiva ao pai, o chamado "absolutismo do Grande Líder". "Criar o culto da personalidade de Kim Il-sung e exagerar o seu papel na revolução era a função de Kim Jong-il e não de Kim Il-sung", afirmou Hwang.

Um diplomata europeu que esteve em Pyongyang nas décadas de 1970, 80 e 90, diria que a Coreia do Norte era como um país católico durante a Idade Média, com 90 por cento a acreditarem no que diz o regime e os outros 10 a fingirem que acreditam.

Nasceu o "Querido Líder"

Cultos e mitos andaram sempre de mãos dadas com a História norte-coreana. Nem o simples nascimento de Kim Jong-il é um dado objectivo. Nada foi dito sobre o episódio até meados da década de 1970, quando Kim foi referido como sucessor de Kim.

Diz a lenda que o "Querido Líder" nasceu a 16 de Fevereiro de 1942 (estima-se que tenha sido 1941), num campo da guerrilha na montanha Paekdu, a mais alta da Coreia. E logo se formou um arco-íris duplo, acompanhado de uma estrela brilhante, para assinalar a boa nova.

As notícias do seu nascimento terão chegado via rádio a Kim Il-sung, que combatia os japoneses (numa luta iniciada dez anos antes) a partir de Vyatsokye, na Sibéria da ex-União Soviética.

Alguns analistas apontam para a probabilidade de Kim Jong-il ter nascido mesmo em Vyatsokye, onde se sabe que passou os três primeiros anos da infância - ou seja, um berço pouco chosun.

A mãe, Kim Jong-suk, era uma mulher de pestanas longas e pele escurecida pelo sol. "Uma verdadeira beleza", comentou uma camarada de armas, Lee Min, ao escritor Peter Hyun. Não era, no entanto, sofisticada, e isso notava-se quando passou a ser a primeira-dama de Pyongyang.

Jong-il não herdou a beleza da mãe, nem a altura do pai. A aparência física era um problema e há até quem diga que os seus complexos de altura estão na origem de alguma malevolência.

Bruce Cummings faz no seu livro North Korea: Another Country uma descrição demolidora: "Em que pensa ele, ali de pé, com um blusão de polyester em forma de pêra, sapatos bicudos de salto, óculos de sol enormes de cor maligna, uma curva arrogante nos lábios femininos, uma imodesta barriga gorda, e sempre um péssimo cabelo? Está a pensar, "tirem-me daqui"".

O autor também refere um episódio em que Kim está com uma actriz sul-coreana e lhe pergunta: "Então, senhora Choe, o que acha do meu corpo? Pequeno, como o cagalhoto de um anão, não sou?"

No entanto, herdou outras coisas. Jong-suk gostava de cantar, dançar e actuar. Esses prazeres passou ao filho. Mas era dura com ele. E a infância de Jong-il - a quem chamavam "Yura", a alcunha soviética que mais tarde teve de largar - não foi feliz. Quando a mãe morreu, tinha ele sete anos (as causas nunca foram oficialmente explicadas), já trazia às costas o pesado trauma do afogamento do irmão, Shura, enquanto os dois brincavam.

O pai estava sempre ausente, restava-lhe a irmã. Há quem descreva Yura como uma criança só e culpada, que gostava de matar insectos e fazer tropelias, especialmente se conseguisse humilhar alguém pelo caminho.

Lee, que privou muito com a sua mãe, diz que era "uma criança inteligente e ágil". Gostava de brincar com uma espingarda de madeira - embora tenha chegado a pedir uma a sério, para poder "matar os japoneses" - e exigia ser o comandante de todas as brincadeiras. "Manifestou um interesse no poder desde pequeno, fazendo de líder nas suas brincadeiras de criança e nomeando os amigos ministros", recorda Hwang.

A guerra da Coreia (1950-1953) começou nove meses depois da morte da mãe de Kim Jong-il. O pai transferiu-se para um bunker, mas ele permaneceu por algum tempo na casa, até os combates ameaçarem Pyongyang. Foi no meio dos confrontos que Kim Il-sung casou pela segunda vez, com Kim Song-ae, com quem teve dois filhos, Pyong-il (que provocou muitos ciúmes ao meio-irmão devido ao tempo que o pai mais tarde pôde dispensar-lhe) e Yong-il.

"Seguir os olhos de Kim"

Na escola, e segundo as biografias oficiais redigidas mais tarde, Jong-il era um aluno brilhante, que "não só não quer como detesta favores especiais". Mas os professores tinham de seguir algumas instruções, como "olhar sempre para os seus olhos... Quando ele desvia o olhar ou mostra desagrado, o professor deverá saber que o que está a dizer ou a fazer está incorrecto e corrigir de imediato... Será adequado olhar para os olhos de Kim Jong-il para saber distinguir o certo do errado".

Colegas seus da escola secundária Namsan, frequentada pelos filhos da elite, referem coisas diferentes: não era particularmente entusiasta com os estudos e preferia ver filmes com os amigos. "Estava sempre a exibir-se. Era autocentrado e malcriado", cita Bradley no seu livro. Foi delegado de turma, presidiu a ligas estudantis, assumia o poder possível dentro da escola, à sombra da glória paterna.

Enquanto adolescente, Jong-il esforçava-se para agradar ao pai. Seguia-o sempre que podia, dava reprimendas em seu nome, ou fazia sugestões de como aperfeiçoar a idolatria dedicada ao líder.

Tinha 17 anos quando acompanhou o pai numa viagem à União Soviética, e até preparou o itinerário, revelaria Hwang Jang-yop, que também esteve nessa visita. "No hotel, levava o pai à porta, calçava-lhe os sapatos. Kim Il-sung tinha na altura 47 anos e uma boa saúde, mas ficava agradado com o facto de o filho lhe dar o braço e pôr-lhe os sapatos". Dava instruções aos médicos e enfermeiras da comitiva sobre o que tinham de fazer.

Hwang sugeriu nessa altura que Jong-il fosse estudar para a Universidade de Moscovo. O próprio rejeitou: "Disse que a política tinha que ser aprendida por via do pai e que não o poderia ajudar se estivesse a estudar no estrangeiro". Foi para a Universidade Kim Il-sung estudar Economia. E ali deixava de ser Yura. O ideólogo afirma que "já era visível a ambição de uma carreira política".

Os postos políticos

Foi recém-graduado que Kim Jong-il liderou o que pode ser considerado um equivalente à Revolução Cultural chinesa; mas, em vez dos guardas vermelhos, com as chamadas equipas das Três Revoluções. O objectivo era o mesmo: eliminar as obras artísticas "burguesas" e criar um pensamento totalitário.

É frequente dizer-se que os preparativos para tornar Jong-il sucessor de Il-sung começaram nos anos 1970. Bradley K. Martin defende que isso começou a acontecer uma década antes, assim que Kim Jong-il deixou a universidade, com importantes postos a serem-lhe confiados no Comité Central do Partido dos Trabalhadores.

Foi rapidamente que se tornou no "número dois" do departamento de propaganda, com liberdades que mais ninguém a não ser o filho do "Grande Líder" receberia. Por volta de 1966, seria encarregue da protecção pessoal do pai, recebendo para isso o posto de major: e esta viria a ser a sua única experiência militar.

Voltou para o departamento de propaganda e foi depois encarregue de remodelar a ópera e o cinema do país, um período produtivo de aprendizagem e enriquecimento pessoal, como aconteceu com o filme e ópera Mar de Sangue, adianta Martin.

Começara a ver em criança o cinema russo, e este tornou-se uma das suas obsessões. Direccionou a indústria para a linguagem revolucionária, explicando aos realizadores como fazer autênticos louvores a Kim Il-sung de forma artística e sem "influências burguesas".

A sua obsessão pelo cinema levou-o ainda ao ponto de, em 1978, sequestrar um realizador e uma actriz da Coreia do Sul para ajudarem a melhorar a indústria cinematográfica do Norte.

Alguns dos filmes que produziu receberam críticas excelentes, não só na Coreia do Norte, como no exterior. De resto, diz-se que era fã de James Bond, e que tinha todos os seus filmes entre os 20 mil títulos da sua videoteca.

As décadas de 60 e 70 foram também de consolidação do chamado "kimilsunguismo", termo que terá sido cunhado pelo próprio Jong-il para definir que o pilar do regime era o próprio pai e que tudo girava à sua volta.

Terá estado envolvido em algumas acções de terrorismo, como um ataque bombista na Birmânia que, em 1983, matou 17 responsáveis sul-coreanos; ou o atentado de 1987 contra o voo 858 da Korean Airlines, que vitimou 115 pessoas. Sul e Norte continuam ainda hoje tecnicamente em guerra, porque nunca assinaram um tratado de paz para o conflito de 1950-53.

Um dos grandes testes da sua carreira política foi preparar o 60.º aniversário do "Grande Líder", em 1972. A data não é indiferente: os 60 anos são um marco importante na cultura coreana. O presente de Jong-il para o pai foi um hino em seu louvor - "cada momento da vida do nosso líder é dedicado a trazer uma vida mais cheia e rica para o nosso povo..." - e a criação do Instituto de Saúde e Longevidade Kim Il-sung.

Em troca, o Presidente fez saber que tinha no filho o seu sucessor. Mas a sua nomeação oficial só veio em 1980. Foi no 6.º Congresso do Partido dos Trabalhadores que foi escolhido como membro permanente do Politburo, do Comité Central e do Comité Militar.

Em 1991, aumentou ainda mais o seu poder, ao assumir o controlo das Forças Armadas. O facto de não ter feito o serviço militar, como o resto da elite, não foi obstáculo.

"Aparentemente, ele funcionou como uma espécie de primeiro-ministro, gerindo o Governo numa base diária durante dez anos antes da morte do pai", comentou ao PÚBLICO Marcus Noland, autor de North Korea After Kim Jong Il. "Durante a sua carreira, conseguiu formar uma corte de responsáveis que lhe eram leais, que pôde colocar em posições de poder".

Há quem diga que Kim Il-sung chegou a arrepender-se da escolha, sobretudo quando viu o filho dividir em dois o serviço de segurança: uma parte para o pai, outra para ele. Uma ameaça, portanto.

Adeus ao pai

A 8 de Julho de 1994, os norte-coreanos ouviam uma voz grave na rádio anunciar: "O coração do "Grande Líder" parou de bater". Provavelmente, o de Kim Jong-il estaria a bater mais depressa. A liderança do país passava para ele.

Não sem alguns rumores. O episódio é descrito a Martin por Oh Young-nam, ex-capitão da Segurança do Estado, que fugiu para o Sul: Kim Il-sung começava a dar passos com vista à reunificação da Coreia, que ficaria sob dois sistemas. Jong-il opunha-se. Horas depois de uma dura conversa telefónica entre pai e filho, o "Grande Líder", que estava no Monte Myohyang, caía da cama, cara colada ao chão. Chamaram-se dois helicópteros, e aquele que trazia o equipamento de emergência para socorrer o Presidente despenhou-se. "A equipa médica não conseguiu ajudar Kim Il-sung e ele morreu. Quando Kim Jong-il soube, disse: "Não digam a mais ninguém. Restrinjam os movimentos da Segurança do Estado, da Segurança Pública e do Exército Popular"".

Quando o funeral se realizou, Kim Jong-il, que tinha jejuado durante quatro dias, parecia ele próprio o cadáver. O país ficaria de luto por três anos, anunciou.

O cargo de Presidente ficou eternamente nas mãos de Kim Il-sung, em mais um sinal de que o despotismo norte-coreano se assemelha a uma religião. E a eleição de Kim Jong-il pela Suprema Assembleia Popular deu-se a 26 de Julho de 1998.

Não se sabe muito sobre as suas inspirações políticas ou ideológicas - alguns analistas comentam que Hitler foi uma delas. Kim Jong-il sempre defendeu que o modelo a seguir era o do pai. "Dizia que Kim Il-sung era a única figura histórica da Coreia", adianta Martin. "Também não poderia dizer que admirava estrangeiros, porque seria acusado de ser pouco coreano; ou sequer outros coreanos, porque aí estaria a desviar-se de Kim Il-sung".

De resto, "ele não era um simples sucessor do seu pai", comentou numa entrevista em 2009 Kim Sung-chull, do Hiroshima Peace Institute e autor de North Korea Under Kim Jong Il: From Consolidation to Systemic Dissonance. "Ele consolidou o poder à sua custa, e tornou-se num homem bastante político. Ironicamente, ao colocar toda a sua energia na consolidação do poder, operou um desastre económico nacional".

A Coreia do Norte que Kim herdou (e também ajudou a construir) era já "um país em declínio", comenta Noland. "E ele fez pouco para inverter a trajectória. Sob a sua liderança, o país passou por uma fome que matou entre 600 mil e um milhão de pessoas, ou entre 3 e 5 por cento da população, o que faz desta crise uma das piores do século XX".

Brisas de mudança

Pyongyang ficou altamente dependente de ajuda externa. Talvez tenha sido isso que levou Kim a aceitar uma cimeira em 1998 com o então Presidente sul-coreano, Kim Dae-jung. E preparou-se um encontro também com o líder dos EUA, Bill Clinton.

Nesse período, diplomatas norte-americanos detectaram em Kim alguma vontade de fazer pequenas reformas, e ele ter-lhes-á falado da sua necessidade de aprender com o sistema capitalista. Jasper Becker refere que havia sinais de que Kim queria formar uma equipa de tecnocratas mais jovens e com mais instrução para mudar o país.

Fazê-lo seria o seu fim político. "O regime é altamente inseguro e avesso a mudanças económicas que podem trazer implicações políticas", explica Noland. "Como consequência, o instinto é de controlar e reprimir, não de liberalizar e abrir".

Mesmo algumas mudanças económicas que foram introduzidas em 2002 foram pouco firmes. "Achou que se abrisse um bocadinho, as comparações com a Coreia do Sul seriam desastrosas. As pessoas pensariam: "Por que estamos nós aqui a morrer de fome e eles a viver assim?"", adianta Bradley K. Martin. "Se abrimos ao exterior, o país começa a comunicar com o exterior. O que aconteceu em 2002 acabou por não ser o lançamento de reformas, mas apenas o reconhecimento de algo que estava a acontecer: a fome gerou pequenas acções semicapitalistas".

Entre estas acções está a criação de mercados privados, fora do controlo total do Estado, ainda assim considerados perigosos, "porque é no mercado que se fala sobre o que está a acontecer. Mas as restrições [impostas entretanto] estão a ter poucos efeitos porque há muita gente que depende destes mercados. Até as mulheres dos altos responsáveis do Governo fazem lá as suas compras", continua o jornalista.

Kim não chegou a enfrentar forças hostis dentro do regime porque "a elite partilha os valores da identidade do país: anti-imperialismo, o primado do militarismo e o princípio socialista, ainda que este último ponto tenha quase colapsado", disse Kim Sung-chull.

Por outro lado, refere Martin, há "uma histeria nacionalista, semelhante à do Japão pré-guerra", e particularmente forte entre as elites.

Do gulag ao nuclear

Oposição política, como tantas outras coisas, escasseia há décadas. Marcus Noland faz a lista do que não existe no país para provar como não pode haver resistência legitimada. "Não há sociedade civil, não há instituições, não há sindicatos, não há fóruns cívicos, não há Igreja Católica".

Hwang, o responsável que mais tarde desertou, adianta que as purgas faziam-se afastando apenas alguns intelectuais, porque na verdade nunca se formou uma corrente de oposição a Kim Il-sung.

Ainda assim, a Coreia do Norte está cheia de presos políticos: 200 mil, segundo estimativas da Associação Jurídica Coreana. Trabalham 12 a 15 horas por dia, alimentados apenas a milho e sal.

O regime nega a existência de campos de trabalhos forçados, e as organizações estrangeiras não podem lá entrar; mas as confirmações vindas de guardas e sobreviventes que fugiram para o Sul há muito que apontam para esta realidade tenebrosa que tem estado arredada das negociações internacionais.

Os "crimes" podem ser coisas simples, como ouvir música sul-coreana; mas muitos nunca chegam a saber do que são acusados, e são enviados para os campos com mais duas gerações da sua família, para "cortar o mal pela raiz".

Há, no entanto, uma instituição que podia fazer frente ao "Querido Líder", adianta Noland: "O Exército. E ele fez-lhes assiduamente a corte, governando o país do seu posto de presidente da comissão de defesa. Em alguns aspectos, o regime de Kim Jong-il parece ter-se transformado de um regime clássico soviético ou comunista, num regime militar".

Esta é por vezes uma das explicações para o programa nuclear norte-coreano: uma forma de agradar aos militares, ao mesmo tempo que se ergue um protecção contra ataques estrangeiros. Terá sido, segundo Noland, "o maior feito de Kim, se é que lhe podemos chamar de feito: dedicar uma grande parte do orçamento nacional a sistemas de armas nucleares e mísseis balísticos".

Até agora, o regime já fez dois ensaios atómicos, apesar de ter assinado em 1985 o Tratado de Não Proliferação Nuclear. E os seus mísseis de longo alcance estão a ser aperfeiçoados de forma a conseguir atingir território americano.

O seu principal objectivo foi sempre manter o poder - "é obcecado pelo poder" - e impedir um ataque exterior à Coreia do Norte, adianta Kim Sung-chull. Nesta tarefa, "sempre calculou tudo racional e meticulosamente. Se seguirmos o comportamento da Coreia do Norte, podemos concluir que é muito previsível".

Kim também foi exímio no jogo de gato e rato. As negociações nucleares andavam vários passos para trás antes de dar um passo em frente.

"O projecto nuclear faz parte da intenção de Kim de construir um país poderoso e temível. Não quer saber se milhões de pessoas morrem à fome", adianta Martin. Por isso, a ajuda económica nem sempre foi a melhor cenoura para fazer Pyongyang avançar para as negociações multilaterais.

Por outro lado, o jogo permitia-lhe ganhar tempo para avançar com o programa nuclear.

Luxos e filhos

Escreve Cummings que "Kim Jong-il não era o playboy, mulherengo, bêbado e mentalmente desequilibrado "Dr.Evil" que a nossa imprensa descreve. Era um rapaz caseiro que não socializa muito, não bebe muito... e, como a maioria dos pais coreanos, é profundamente dedicado aos filhos".

Mas esta não é a versão que mais prevalece. Há muitas testemunhas de como Kim Jong-il passava noites a beber vinhos importados - era um conhecedor das grandes especialidades -, com os quais regava refeições sofisticadas.

Começou por saber o que é uma pizza por causa dos filmes de Hollywood, e em 1997 mandou vir de Itália o chefe Ermanno Furlanis para formar os seus cozinheiros. A sua estadia em Pyongyang duraria três semanas, mas nesse período viu produtos luxuosos a entrar pela cozinha.

Um chef de sushi que começou por ir a Pyongyang em 1982 e regressaria várias vezes para cozinhar para Kim, escreveu um livro com o pseudónimo de Kenji Fujimoto. Fez longas descrições das suas viagens ao Irão e Uzbequistão para comprar caviar; à China para comprar melões e uvas; à Tailândia e Malásia para papaias; à República Checa para cerveja, e bacon na Dinamarca. Diz que havia 10 mil garrafas de vinhos franceses na adega e famosas marcas de whisky e sake. Diz também que, quando queria, Kim sabia lidar com pessoas, decorando os seus nomes e os dos seus filhos, ou ser generoso: um dia, atirou-lhe as chaves do seu carro, dizendo: "Toma, é para ti".

Não lhe fazia falta, certamente. No mesmo ano em que a ONU fazia um apelo de 600 milhões de dólares de ajuda à Coreia do Norte, Pyongyang encomendou 200 limousines Mercedes S-500.

O luxo estendia-se aos filhos, que estudaram na Suíça - disfarçados de filhos de diplomatas - e conheceram o que é a vida ocidental e uma sociedade de consumo (exemplificada até ao limite dentro da própria casa).

Kim Jong-il terá casado três vezes, mas antes disso teve uma relação com a actriz Song Hye-rim. Song era casada, e por isso a relação foi escondida, ou pelo menos afastada, de Kim Il-sung, tal como o filho que ambos tiveram, Kim Jong-nam. Só quando o rapaz fez quatro anos é que o avô o terá conhecido.

Passou muitas horas a jogar "SuperMario" com ele, num quarto onde havia tudo o que nenhum outro norte-coreano sonhava ter. A "evidência" de que Kim Jong-nam, agora com 40 anos, seria o herdeiro quebrou-se depois da notícia de que tinha sido apanhado a tentar entrar em Tóquio com um passaporte falso, em 2001.

Consta que Ko Yong-hui, a terceira mulher de Jong-il, dançarina, terá sido também a favorita. Deu-lhe dois filhos: Kim Jong-chul e Kim Jong-un (há também uma filha, Sol-song, do seu casamento com Yong-suk). Fujimoto escreveu que Jong-chul era demasiado efeminado, e que Jong-un tinha uma certa malícia que agradava ao pai.

Será ele, agora com 28 ou 29 anos, que tomará conta do botão nuclear.

Kim não escondeu que a sucessão dinástica é do seu agrado. Mas "ninguém, nunca, será como ele na história da Coreia do Norte", diz Kim Sung-chul. "Sobretudo tendo em conta a forma como conseguiu habilidosa e opressivamente controlar a sociedade e a elite. Levou 40 anos para Kim Jong-il herdar o poder do pai", ou seja, muito tempo de aprendizagem para se tornar no líder que foi.

"Kim Jong-un é muito mais novo e com muito menos experiência do que o seu pai tinha em 1994", diz por seu lado Noland. "E depois de 17 anos de uma performance deste nível, o sistema simplesmente não irá tolerar um mau desempenho: ou enfrentará uma rivalidade do poder, ou manifestações na rua".

Martin traça outro cenário: "O regime será encabeçado pelo filho mais novo, rodeado por uma equipa de conselheiros, e sem alterações drásticas". Mas avisa: "É muito difícil prever o que será a Coreia do Norte pós-Kim Jong-il".

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