Tão amigos que nós éramos

Uma adaptação inteligente mas fria de John Le Carré, que recusa a nostalgia heróica de “tempos melhores” ao mesmo tempo que a celebra à distãncia

É um lugar-comum (e não é de hoje) dizer que algumas coisas “já não se fazem como antigamente” - e é precisamente aí que se encontram as razões para o sucesso desta nova adaptação do romance de espionagem de John Le Carré filmado para televisão nos anos 1970 com Alec Guinness no papel principal, aqui retomado por um Gary Oldman de irrepreensível sobriedade.


Entregue aos bons ofícios do sueco Tomas Alfredson, autor do culto “Deixa-me Entrar”, a história da busca de um agente duplo infiltrado ao mais alto nível dos serviços de espionagem britânicos torna-se, também ela, na crónica de um “filme duplo” infiltrado. Ambientado numa Londres permanentemente chuvosa e cinzenta no início dos anos 1970, reconstituída com uma precisão quase maníaca, “A Toupeira” simultaneamente celebra e recusa a nostalgia heróica de “tempos melhores”, funcionando em simultâneo em dois níveis narrativos diferentes. De um lado, o “presente” sórdido e mesquinho da investigação da identidade da “toupeira” infiltrada, onde nada é o que já foi, numa dicotomia dificilmente conciliável entre o quotidiano de uma vida normal e os segredos que se escondem por baixo dela. Do outro, o “passado” dos tais “tempos melhores” em que a espionagem era algo de quase nobre, em que o “Circo” - a alcunha dos serviços de informação - era uma espécie de família unida por laços gloriosos de dever e abnegação, que, à medida que a política internacional descambava numa luta de galos, tombou ela própria numa disfunção desfasada, entre a ambição e o desencanto. Outra coisa não é sublinhada pelos “flashbacks” à festa de Natal onde todas as personagens se cruzam, como uma espécie de “tão amigos que nós éramos” que já transportava em si as sementes da desintegração.

É precisamente nesse equilíbrio precário garantido pela manutenção da história nos anos 1970 em que originalmente decorria que Tomas Alfredson ganha o seu filme. “Deixa-me Entrar” já era um filme de época, é verdade, mas o mais importante é o modo como o sueco explora os silêncios e as atmosferas, reduz a violência a um mínimo gráfico permitindo que ela esteja permanentemente presente como uma presença malsã que imbui as relações entre as personagens. Essa frieza distante e cerebral é a grande força do filme, reproduzindo na perfeição os jogos de estratégia mentais do tabuleiro de xadrez da espionagem da Guerra Fria; mas é também a sua fraqueza, impedindo o espectador de se empenhar emocionalmente para lá de uma admiração distante e respeitosa por um filme onde tudo está tão evidentemente no sítio certo. Não é ajudado pela necessidade de “compactar” a longa narrativa de Le Carré em duas horas, que reduz a maior parte do elenco luxuoso a papéis secundários que entram por sair (Kathy Burke e Stephen Graham têm uma cena, Ciarán Hinds quase não abre a boca, só John Hurt, Mark Strong e Colin Firth conseguem transcender o pouco tempo de antena). Mas a verdadeira importância de “A Toupeira” está no modo como explica porque é que “já não se fazem filmes como antigamente” ao mesmo tempo que, desmontando o lugar-comum, consegue fazer um: onde o que interessa é a história que se conta e tudo, dos actores à encenação, está lá para servir a história e não para mostrar “que bem que eu realizo”, “que original que eu sou”, “que grande actor que eu sou”. É um filme profundamente moderno e extraordinariamente clássico - e não há contradição nisto.

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