Em casa do doutor Hugo Meneses, "primeiro indiano e depois goês"

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Carlos, Marlene, Hugo, Sílvia e as crianças (Karl, Renée, Shawn e Craig, sempre da esq. para a dir.) Miguel Manso

Primeiro zoom: Índia, esse país subcontinente triangular. Segue-se a costa oeste, junto ao mar Arábico, e descendo em direcção ao sul, Goa.

No estuário do rio Mandovi, Panjim.

Não se pára aqui: mais uma lupa no Bairro de Fontainhas. Procura-se a rua ao lado da Capela de S. Sebastião.

Agora é abrir o portão de ferro castanho, ignorar o ladrar insistente do pastor-alemão, e entrar.

Atravessa-se o pátio com plantas.

A escada em frente dá directamente para a sala de visitas, em cima.

Cadeiras, mesinhas, um canapé, tudo trabalhado em detalhe, flores e folhas e a exuberância tropical goesa no estilo indo-português. Jarrões chineses e pratos da Companhia das Índias; alguns discos a um canto onde está uma discreta aparelhagem de som, um piano vertical ao lado direito.

Façamos as apresentações, com dois beijinhos e sem apertos de mãos, em estilo muito pouco indiano. É Hugo Meneses, 73 anos, o patriarca da casa. Tem dois filhos a viver com ele: Carlos Manuel, o mais velho, casado com Marlene e pai de Karl (oito) e Renée (seis); e Tito Jorge, casado com Sílvia, com dois rapazes, Craig (sete) e Shwan (cinco). E pelos nomes da família vemos logo como algumas coisas foram mudando em Goa nos últimos 50 anos.

Hugo Meneses nasceu em Raia, perto de Margão (Sul de Goa). É o mais novo de sete irmãos, mas o único que seguindo a tradição familiar se tornou médico como o pai e o avô. Fala um português perfeito, quase com sotaque lisboeta já os filhos e as noras assim que podem mudam agulhas para o inglês, e os netos pouco entendem.

Mas nada de mal-entendidos.

Muito rapidamente ficamos a saber: "Primeiro sou indiano, e tenho muito orgulho nisso; depois sou goês." Hugo Meneses não inclui nada mais nesta equação.

Os nomes de muitos católicos goeses (26 por cento dos 1,4 milhões de habitantes, com tendência para decrescer) e o domínio da língua por uma muito ínfima percentagem dão a ilusão de uma ascendência portuguesa. Há raras excepções, mas a grande maioria é etnicamente indiana e se tem apelidos como Noronha, Albuquerque, Figueiredo, Sousa (ou D'Souza), ganharam-nos de quem os baptizou nas conversões forçadas do hinduísmo para o cristianismo, nos séculos XVI e XVII.

O destino de Goa mudou com a chegada de Afonso de Albuquerque em 1510 e o início da colonização portuguesa os primeiros europeus a entrar e os últimos a sair. Por isso, dizer que se é goês é acrescentar já alguma complexidade.

"Quando Goa foi anexada [em Dezembro de 1961], Jawaharlal Nehru disse que seria uma janela aberta para o Ocidente. E é verdade", diz o médico na sua sala de visitas.

Desta janela, que antes da integração já estava aberta, Hugo Meneses viu sempre Portugal. Talvez por isso, quando pisou o país pela primeira vez, em 1982, não apanhou um choque. "Já sabia que seria mais avançado do que aqui." Mas havia uma certa sensação de estar em casa.

Sem choques nem surpresas.

Nessa altura, já tinham passado 21 anos sobre o fim do Estado Português da Índia. As tropas indianas chegaram, quando Hugo Meneses estava ainda a tirar o curso de Medicina. Foi para a sua aldeia natal, porque sabia-se que alguma coisa estaria prestes a acontecer e quis estar com os pais. "As tropas passaram em frente a nossa casa.

Eram saudadas por certas pessoas." Do lado da União Indiana, e para recuperar Goa, Damão e Diu, entraram 50 mil soldados bem apoiados por meios aéreos e navais; para defender o regime português estavam 3500 militares mal equipados. A desproporção de meios era tal que em 36 horas tudo estava resolvido. O então governador general Vassalo e Silva ainda hoje é elogiado por ter visto a inutilidade do combate e não ter cedido à pressão de Salazar para resistir até ao último homem.

"Não podia haver resistência. Seria numericamente impossível", diz Hugo Meneses, de cigarro na mão e olhar directo. "Não se esperava uma grande guerra, nem a povoação local poderia tomar parte nisso." De qualquer forma, "Portugal não poderia continuar a governar [Goa] para sempre".

Já nessa altura, o jovem Meneses não tinha dúvidas sobre a sua identidade. "Não posso dizer que estava mais perto de Portugal e mais longe da Índia. Goa estava dentro do mapa indiano... Mas o nosso contacto com o resto da Índia era muito pequeno. Não havia televisão, era só rádio, e por isso não havia uma ideia visual das coisas." "[Em todo o caso], não me sentia português de Portugal. Tinha uma certa simpatia por Portugal, mas sem perder as minhas raízes indianas. Essa simpatia continua hoje, igualzinha... Sou tão português agora como há 50 anos." Ou seja, quase nada. Mesmo que seja uma emoção ouvir Amália.

Língua estufada e papo-seco

Em cima de uma mesinha, retratos de família: o casamento de Jorge e Sílvia; o casamento de Carlos e Marlene; os dois rapazes quando eram isso, dois rapazes podemos imaginá-los a jogar à bola lá em baixo, o corpo a desafi ar o calor e a monção, como fazem agora os filhos.

Todas as tardes, depois da escola, os amigos de Karl e Craig vão à porta de casa chamá-los. Um dia, futebol, outro, desafios de piões de plástico, lançados para o chão com convicção.

São oito e meia. As mulheres estão na cozinha e as crianças, já jantadas, foram para a cama. É Marlene quem aparece primeiro, com cajus numa mão, guardanapos de papel azuis na outra. Serve os convidados e serve o sogro, a quem chama "papá". Não tarda e vai tudo lá para fora, à espera que sopre uma brisa para aliviar o calor. Cheira a chuva, quando esta se prepara para cair.

As portas da sala de jantar estão escancaradas para a varanda. A mesa bem recheada: língua estufada, costeletas de porco, puré de batata com bacon, salada de alface e tomate, camarões com cebolada. Imaginamos que não seja assim todos os dias. E não será. Ainda esta semana Karl e Renée estarão sentados nesta mesma mesa, diante da televisão (que num gesto de cortesia mudam dos desenhos animados para sintonizar na RTP Internacional), a comer simplesmente um cheiroso guisado de salsichas com batata, ensopando o papo-seco no molho.

Já nem é costume, mas as três gerações da família Meneses vivem todas juntas nesta casa de 200 anos (com algumas modificações recentes). Jorge na parte de baixo, com a mulher e filhos, os outros no andar de cima. Muitas vezes juntamse todos para as refeições, outras para rezar o terço no oratório ao lado da sala de estar, onde Jesus cruxificado é acompanhado por Santo António e Nossa Senhora.

"Tentamos rezar o terço todos os dias, às 19h30 às vezes em português, outras em inglês. Mas ultimamente estamos a desleixar", diz Marlene.

Este é um bairro de muitas famílias católicas, feito de casas garridas amarelo, azul, encarnado com varandas, alpendres, telhados em triângulo, azulejos com o nome da família à porta, janelas com carepas (finas conchas de madrepérola) em vez de vidros, ou em alternativa vidros coloridos.

Durante alguns anos o doutor Hugo pagou a um padre para vir dar a missa em português na Capela de S. Sebastião, ao lado de casa.

Habituou-se desde criança a rezar em português e a língua com que se comunica com Deus não muda de um momento para o outro. Mas acabou por se habituar, e hoje assiste à missa em concanim, quando calha.

O fi lho Carlos tem também outras formas de falar com Deus. Aprendeu violino na Academia de Música e viola de ouvido. Podemos vê-lo de guitarra ao colo na capela a preparar uma missa a S. Paulo com um coro, onde canta também Marlene. E se for a primeira terça-feira do mês também o ouviremos na noite de fado do Hotel Cidade de Goa.

"Can I seat?"

A monção faz cobrir de plásticos e linóleos as varandas, portas, janelas.

É como se as casas estivessem à espera de serem estreadas depois de uma obra. Ouvem-se motorizadas, pássaros, uma criança a chorar ao longe. E o som de um piano antigo.

Primeiro escalas, para cima e para baixo; depois uma peça de Liszt. "É a dona Julieta", diz uma vizinha. Não é preciso interrompê-la.

Segue-se para a Sharada Mandir School, em Miramar. É a única escola privada de Panjim e a família Meneses pôs lá as quatro crianças a estudar. Uma vizinha levaos de manhã, por volta das sete e meia, e Marlene que trabalha perto vai buscá-los.

É hora do recreio para os mais novos e por isso os baloiços estão cheios. Fala-se em inglês para disputar o balancé "Please, can I seat? Please!" e para tudo o resto.

Empurra-se a colega que insiste em ficar. A directora, Nurimata Rebello, explica que, como é administrada a partir de Nova Deli, a escola nem precisa de ensinar o concanim.

"As línguas regionais não são a prioridade. A prioridade é o inglês, e o hindi depois. Há três anos de concanim para quem quiser." Português nem sombra. Alguns têm francês como quarta língua.

Havia um tempo em que quem quisesse tirar um curso em Goa teria duas opções: Medicina e Farmácia.

Agora o leque abriu-se. "Todos os anos estão a começar novas licenciaturas", diz a directora. "Mas ainda não testámos a qualidade de muitas delas." Karl, na terceira classe, vem cumprimentar, contente. Depois avança contrariado para as aulas com a sua sandália desapertada e a caixa do lanche ainda com o bolo de chocolate por comer. Passa-se pela sala de Renée, que está um ano abaixo. Paredes quase vazias e as atenções de 30 alunos no quadro.

Ficou tímida, depois de dizer à professora que os visitantes estão a passar uma semana em sua casa.

O ano lectivo mal começou as férias grandes são em Abril e Maio.

Na aula de Música, sentadas em bancos de madeira encostados à parede, as crianças ensaiam o hino da escola. "I wish you a happy day." Também o avô fez a instrução em inglês, porque isso lhe daria mais oportunidades para estudar fora. Há muitas críticas à falta de investimento na educação por parte da potência colonial.

Minas e turismo

Goa percorreu um longo caminho desde 1961. É o estado mais pequeno da Índia, mas agora também um dos mais ricos. Hugo Meneses faz a lista rápida do que melhorou: "Educação, serviços, como abastecimento de energia eléctrica, rede de esgotos, estradas, pontes. Se Portugal tivesse continuado [a administrar Goa], a coisa talvez fosse avante, mas não tanto nem tão rápido. Goa faz agora parte de uma grande nação." Carlos e Marlene são um produto das apostas mais fortes do pequeno estado. Ele trabalha para a gigante do aço Arcelor Mittal, fazendo a ligação entre a multinacional do magnata indiano e o sector do minério de ferro que é retirado em grandes toneladas do solo goês correm críticas de que a extracção está a ferir de morte o território, criando graves problemas ambientais.

Com a chuva intensa que cai entre Junho e Setembro, deixa de ser seguro os barcos transportarem o minério (um barco leva 150 mil toneladas) e por isso esta é uma época de pouco trabalho. "A humidade faz com que a carga não fique estável. O barco pode até afundar-se", explica Carlos.

Já a mulher organiza eventos no Marriott, um hotel de cinco estrelas encostado ao mar, que nesta altura se enche com a classe média indiana que aproveita os preços mais em conta da época baixa da monção.

O turismo começou a ter um boom no final da década de 1960, quando os hippies descobriram as praias goesas; três décadas depois, hotéis e resorts de luxo começaram a crescer como cogumelos.

É no Marriott, em frente a uma chávena de café, que se ouve Marlene explicar que também os casamentos garantem uma fatia considerável dos lucros hoteleiros. Entre Janeiro e Dezembro estão garantidas ali 23 cerimónias. "Os casamentos indianos duram três e quatro dias", adianta.

"Estão 163 quartos reservados para um casamento esta semana. E ficam no mínimo três noites." O trabalho é exigente, mas assenta que nem uma luva nas exigências familiares de Marlene. Das 8h00 às 12h30, praticamente o mesmo horário dos filhos e sobrinhos na escola. À tarde acompanha-os nas tarefas: os trabalhos de casa de Renée, as aulas de violino de Karl, o futebol que os dois começaram a praticar recentemente o filho herdou do pai o apoio fervoroso ao Liverpool (o futebol português chega demasiado tarde à RTP Internacional, a horas em que todos estão já a dormir).

Guitarradas e limpezas

A ventoinha de pé vai girando na sala de Hugo Meneses. São quatro da tarde e já estão quase todos em casa. Karl de partida para a aula de violino (que o primo, Craig, também já começou a aprender). Antes treina umas notas, olhos fixos no livro que a mãe segura, as indicações por trás do pai atento: "O dó é mais alto... Com o terceiro dedo..." E agora é conversa de mulheres.

Marlene e Sílvia, a cunhada, de sorriso estampado por se lembrarem das festas que já passaram por esta sala: "Somos as duas umas party animals!" Não é preciso fazer um esforço para imaginar Carlos com a guitarra, o irmão a cantar "Canta bem, mas tem que ser obrigado", algum amigo ao piano. Música e dança até de madrugada. Não é em vão que no resto da Índia os goeses são conhecidos pelo seu espírito descontraído e festivo.

"Eu nunca quis estar sozinha numa casa, nunca fui independente.

Sempre quis isto", a vida partilhada com sogros e cunhados, diz Sílvia.

Tinha 30 anos quando se casou com Jorge a quem acabou de telefonar para saber se já chegou a Pequim, onde foi em trabalho e antes disso o pai estava sempre a aparecer-lhe com propostas de casamento. Mas foi ela quem escolheu o marido e escolheu bem: "Ele ajuda muito em casa. Trata das suas próprias roupas...", apesar de haver uma empregada interna.

Também o sogro gosta de cozinhar de vez em quando. E Marlene não deixa de elogiar Carlos, que "faz limpezas e aos domingos prepara o pequenoalmoço para todos". Goa também é conhecida por ser dos estados mais liberais da Índia.

Os cães a ladrar ao longe, os corvos a sobrevoarem a rua, e os gritos aflitos de Renée, cheios de preocupação porque Bruce, o pastor-alemão, conseguiu fugir de casa e anda ali entre as crianças e a lamber as pernas aos adultos. "Ele pode morder em alguém. Ele já mordeu", diz aflita.

Vestido de cetim com três rosas no decote, sapatos de verniz preto e meias brancas, uma bandolete de pérolas a segurar o cabelo escuro despenteado. Renée é uma princesa vestida de cor-de-rosa no meio da rapaziada que brinca num burburinho, incomodando a missa do fim de tarde, segundo as queixas das vizinhas no final.

O cão continua pacífico a rondar a rua. Amanhã lá estará ele, a ladrar a quem passa pelo seu portão.

Esta série de reportagens sobre a Índia é financiada no âmbito do projecto Público Mais
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