Um fado tropical?

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Nenhum templo cristão atrai tanta gente como a Basílica do Bom Jesus

Os portugueses saíram há meio século e, entretanto, chegaram os hippies que puseram o exotismo de Goa na boca do mundo. Cenários indianos com arquitectura portuguesa, uma cultura na encruzilhada entre o oriente e o ocidente. Andreia Marques Pereira (texto) e Adriano Miranda (fotos) chegaram a Goa com Portugal na cabeça para descobrir que ele está por todo o lado e não está em lado nenhum

As palavras custam-lhe a sair. Tem todos os olhos nela, nós, as noras, os netos. E a memória a viajar 50 anos no tempo a escrutinar uma língua que para ela está (quase) morta. Embora o seu nome seja um testemunho dela - Leonora. Leonora Rodrigues, 65 anos, em passeio de família no dia de ano novo hindu a ver os navios de cruzeiro atracados no porto de Mormugão (na cidade de Vasco - que é da Gama, mas caiu em desuso) e a ouvir inesperadamente uma língua nela adormecida. Custam-lhe, portanto, as palavras a sair: no início, quase que sentimos o esforço com que perscruta a memória em busca das certas; depois, solta-se um pouco, tímida na sua pele curtida pelo sol envolta no sari já um pouco gasto, perante o olhar surpreso da família que nunca lhe tinha ouvido o português. É ela quem nos aborda ao escutar-nos, é ela quem pergunta se estamos a falar português, é ela quem recorda outros tempos. "Os portugueses eram bons." Sem nostalgia e sem condescendência. Talvez com o pragmatismo de quem nem sequer pensa nisso - "isso" é parte da ordem natural das coisas, da história.

Já é quase hora da despedida desta Goa que encontrámos carregada de Portugal e cada vez mais oca de Portugal. Enquanto o nosso navio se afasta lentamente, deixando o porto de ferro envelhecido e abrindo caminho entre longos dhows também ferrugentos, com o dia a declinar no horizonte, os nossos olhos passam da cidade ocre e castanha entre o verde seco que trepa uma colina em casas coloridas, azuis, verdes, brancas, amarelas, de telha escurecida, para terminar em dois silos bem destacados na paisagem; para o outro lado, o do rio Zuari a entranhar-se terra adentro em saracoteios que se desenham entre o verde impossível da vegetação para se irem desvanecer lentamente na neblina, em contornos suaves; e quando damos conta os barquitos de pesca são quase uma miragem, uma sinfonia azul pronta a tocar. O cenário é technicolor, a atmosfera de calor lânguido - mas o ar de família é evidente. Um fado tropical.

Há quem vá a Goa pelas praias, há quem vá pelo paraíso hippie que os anos 60 trouxeram e os anos 70 cristalizaram numa eterna new age. Um português até pode ir por esses motivos, mas é quase impossível não tropeçar no imaginário lusitano que sobrevive neste cantinho do caleidoscópio indiano. Diríamos mesmo que é quase impossível não o buscar, porém não queremos abusar. E na verdade, passada um pouco a euforia "espiritual", Goa permanece distinta no mosaico indiano pelo carácter singular que lhe advém da herança lusitana.

Cumpre-se amanhã meio século sobre a invasão do Estado Português da Índia pelas forças indianas; no dia seguinte estava tudo acabado. Goa, Damão, Diu, os últimos redutos de Portugal no subcontinente indiano, eram anexados pela jovem recém-nascida União Indiana, que sete anos antes já havia engolido os enclaves lusos de Dadrá e Nagar Aveli. Fechava-se um ciclo: os portugueses foram os primeiros europeus na Índia, os portugueses foram os últimos a sair. E 451 anos sobre a conquista de Goa quase contados ao dia - o mês de Dezembro viu a chegada, o mês de Dezembro viu a partida. Por mar. Para Portugal era o começo do fim do império; para Goa era o começo do resto da sua vida.

É uma porta de entrada para Goa, a cidade de Vasco da Gama. É a maior cidade do mais pequeno estado indiano (3702 metros quadrados), cujo único aeroporto fica em Dabolim, a meia dúzia de quilómetros - e o porto de Mormugão, um dos mais importantes do país, está às suas portas, virado para o Mar Arábico.

Não é preciso andar muito na estrada para se ver a primeira vaca a caminhar calmamente, em contramão. Ao contrário de outras partes, por aqui ainda é possível destrinçar quando começa e acaba uma povoação. Os quilómetros consomem-se entre intensa vegetação e casas coloniais de cor parda e alpendres generosos, nos lugarejos as casas chegam-se à beira da estrada e expõem-se em colorido ora brilhante ora gasto, sucedem-se os nomes familiares - Café Coelho, Pensão Rebelo, Pereira Wines, JD Dias Relax Inn, Domingos Furniture, Fernandes General Store - entre Sairaj Bar & Restaurant, Sharvan General Store e até um Madonna Medical Center. Assim mesmo, com o inglês como uma espécie de língua franca. Um templo hindu à beira da estrada, outro além da floresta de palmeiras, blocos de prédios castanho-triste e verde-acabrunhado, espelhos de água, mais palmeiras, palmeiras e baías ao longe, entre elas, como ilhotas azuis. Passam autocarros Inácio e Paulo e passamos nós pelos vendedores de beira de estrada de baleias, golfinhos e cadeiras insufláveis - e o circo vem à cidade, dizem os cartazes em postes e pilares de pontes e viadutos.

Chegamos a Panaji, na margem esquerda do rio Mandovi, sem sobressalto - será das menos buliçosas capitais de estado indianas (que acumula com a função de capital do distrito de Goa Norte; Goa Sul tem capital em Margão). No entanto, com a sua tranquilidade provinciana, é a capital do estado de Goa, que é um dos mais desenvolvidos de todo o país: tem o maior rendimento per capita de toda a Índia e anda no topo dos rankings relativos a infra-estruturas, ambiente e qualidade de vida.

É Pangim, a última capital do Estado Português da Índia, esta Panaji com problemas de afirmação toponímica: este é agora o seu nome oficial, mas continua a ser conhecida por Pangim (ou o seu equivalente anglo-saxónico, Panjim). Capital com pouco brilho, capital na sombra de um mito: Velha Goa (a Goa que é a parte que muitas vezes se toma pelo todo, que é o estado). Essa foi a Roma do Oriente, foi o El Dorado, foi a "Goa-quem-a-vê-não-necessita-de-ver-Lisboa" (e quando isto se dizia Lisboa era a grande metrópole mundial), foi "a melhor coisa que temos na Índia", segundo Fernão Mendes Pinto. Mas a Velha Goa portuguesa não surgiu do nada.

O El Dorado português

A cidade que hoje é conhecida como Velha Goa foi fundada no século XV, nas margens do rio Mandovi, pelos governantes do sultanato de Bijapur. A sua missão era substituir o antigo porto de Govapuri, nas margens do rio Zuari, uns quilómetros a sul, que havia deixado de ser viável.

Entretanto, Vasco da Gama chega à costa indiana em 1498. Calecute foi a porta de entrada dos portugueses, Cochim torna-se a sua base, até Afonso de Albuquerque, o grande estratego visionário destes primeiros dias do império português do oriente, µ ± perceber que Goa, mais a norte, era mais apropriada para essa função. Tinha um dos melhores portos naturais da costa ocidental indiana e já era um entreposto comercial florescente, o que, aliado à prodigalidade dos seus recursos naturais e à rede fluvial que penetrava pelo interior do território, lhe concediam uma posição de charneira irresistível.

Em 1510, Afonso de Albuquerque está, portanto, determinado em conquistar Goa. A primeira tentativa tem glória curta - três meses - mas em Dezembro o futuro vice-rei volta. E os portugueses ficam. É dia 10, dia de Santa Catarina de Alexandria, feita padroeira do novo território que se tornaria na plataforma para as conquistas de um império - que aqui teve o seu assento durante alguns séculos.

Foi em 1534 que Goa foi oficialmente declarada a sede dessa entidade informalmente conhecida como Império Português do Oriente, que haveria de abranger territórios desde a costa oriental africana, passando pelo Golfo Pérsico, Malaca, China, Japão (entrepostos comerciais) até ao longínquo Timor. A autoridade directa sobre essas possessões era exercida desde Goa, desde Velha Goa mais exactamente, por um vice-rei.

Quando São Francisco Xavier chega a Velha Goa, em 1542, onde permanece dez meses antes de seguir em acção missionária pela Ásia (embora regressando regularmente), já refere o esplendor arquitectónico da cidade. Que todavia teria o seu apogeu umas décadas mais tarde, altura em que brilharia em todo o seu esplendor de igrejas, conventos, mosteiros (as ordens religiosas tiveram aqui terrenos férteis para a evangelização e a ostentação - franciscanos, jesuítas, agostinhos, dominicanos, carmelitas), palácios em largas avenidas, mercados cosmopolitas, os melhores artesãos, uma multiculturalidade lendária. Em Goa os jesuítas montam a primeira impressora da Índia, por aí passam Camões e Garcia da Orta. Aos goeses foram concedidos os mesmos privilégios cívicos de Lisboa e a opulência era desregrada, alimentada pelo lucrativo comércio de especiarias.

A decadência, porém, já se alimentava desses excessos e os ventos da História também começaram a soprar contrários a Goa. No século XVII, a cobiça de outras potências europeias (nomeadamente, da Holanda) começou a abrir brechas no poderio português e embora no século XVIII Portugal ainda se apodere de outros territórios - as "novas conquistas" a juntarem-se às "velhas conquistas" de Quinhentos - a sua hegemonia nunca foi igual.

A cidade de Velha Goa é um espelho onde se reflecte esta decadência. O vice-rei transfere-se da Velha Goa para Panelim, nos arredores, no final de Seiscentos, depois de a cidade ter sido atacada por uma epidemia, e em meados do século XVIII estabelece-se em Pangim - um século depois, a administração é oficialmente transferida para esta "Nova Goa", que já vinha engrossando a sua população com os habitantes da velha capital.

A cidade "eterna"

No seu auge, a Velha Goa teve 200 mil habitantes - agora, dizem os censos, a população ronda os cinco mil; foi capital de um império - agora é Património Mundial da UNESCO. Há algo de assombroso na visão actual da que foi uma das grandes metrópoles asiáticas: as igrejas, catedrais, mosteiros, parecem ser o que restou da grandeza de outrora (não descortinamos edifícios seculares memoráveis, pelo menos) e erguem-se quase fantasmagóricas entre o verde que se apoderou, indomado, dos interstícios. É quase como um sítio arqueológico, é praticamente um museu a céu aberto e é impossível não tentar imaginá-la no esplendor da Roma do Oriente que deixava todos os visitantes deslumbrados - e este era também um dos objectivos das construções religiosas: impressionar os nativos e levá-los à conversão (e este foi um dos aspectos mais conseguidos da presença portuguesa, como veremos). Quem diz que a decadência não é bela?

Um dos locais que mais impressiona por essa sensação irremediável de grandeza perdida é a ruína da Igreja de Santo Agostinho. Diz-se que foi a maior igreja da Índia e foi construída (1602) junto ao convento da ordem que chegou aqui no século XVI. Vemo-la no cimo de uma pequena colina despida de tudo menos de sol inclemente e de árvores que parecem apenas troncos, que temos de subir para alcançar a torre sobrevivente (de quatro) - 46 metros de altura esventrados, muitos mais metros quadrados deixados à imaginação. Parece que foi bombardeada, mas o único bombardeamento sofrido foi o da solidão e do tempo. As paredes grossas que ainda restam dão ideia de um gigante tombado - tinha cinco andares, oito capelas e quatro altares, abandonados em 1835, aquando da expulsão das ordens religiosas de Goa; o seu espólio foi vendido ou espalhado por outras igrejas de Goa, o sino, por exemplo, esteve no Forte da Aguada e desde 1879 está na Igreja da Imaculada Conceição, em Pangim.

A vista daqui é irrepreensível (estamos no alto, no planalto do Monte Santo): as cúpulas e torres da Velha Goa, quase imaculada na sua alvura, surgem em clareiras no verde tropical, rico em palmeirais. Antes de descermos, o Convento de Santa Mónica chama-nos do outro lado da estrada, em azul pálido com cantaria que se espraia em três andares. Foi o único convento feminino de Goa, um dos maiores do império português: fixamo-nos nos arcobotantes da sua fachada, que lhe conferem um certo ar de fortaleza, mas o que impressiona são os seus frescos em murais que só podemos espreitar à socapa - está tudo em obras. Mas não abandonado: alberga, por exemplo, o Museu de Arte Cristã de Goa, o primeiro da Ásia, inaugurado em 1994.

Das 60 igrejas inventariadas na cidade do século XVIII restam cerca de duas dezenas intactas. Fachadas manuelinas, barrocas, maneiristas, sobretudo, interiores de talha dourada - Goa foi um laboratório gigante de arquitectura, escultura e pintura. Nenhum templo cristão goês atrai tanta gente como a Basílica do Bom Jesus (concluída em 1605). Foi o único local onde encontrámos multidões e tivemos mesmo de fazer fila para ver o seu maior tesouro, o corpo-relicário de São Francisco Xavier, o "Apóstolo das Índias", trazido para aqui depois da sua morte na China, fechado numa opulenta urna de prata, no topo de uma coluna de mármore.

Dois milhões de visitantes, entre peregrinos e turistas, chegam anualmente ao "Taj Mahal" de Goa, como também é conhecida a igreja, construída, como todas as outras, em laterite, mas que, ao contrário das outras, se apresenta despida de caiados. Revela-se, portanto, num tom escuro, com derivações rosadas dependendo da luz, rosto imponente e vetusto. Passada a sua fachada barroca de três andares (o rés-do-chão com três portas, o primeiro com três janelas compridas e o último com três janelas redondas, quase escotilhas) encimados por um frontispício quadrangular, entramos numa típica igreja-salão cuja simplicidade é quebrada pela profusão dourada do retábulo-mor; a iconografia revela os construtores, os jesuítas.

O pequeno mausoléu de São Francisco (um presente do grão-duque da Toscana) é acossado por dezenas de pessoas de cada vez, máquinas fotográficas em punho, notas e moedas na mão para as esmolas. O caixão tem janelas onde mal dá para distinguir o corpo do santo, o mármore predomina e os querubins esculpidos andam à solta.

É à volta da basílica, debaixo de palmeiras e entre algum lixo, que se dá o maior assalto de vendedores ambulantes aqui em Goa velha (diríamos mesmo, se a memória não nos falha, o único) e, claro, de turistas que aqui se concentram em força - de várias partes da Índia, incluindo viagens de estudo. Mas rapidamente estamos defronte à grande avenida ladeada de palmeiras e trânsito insuspeito para a Índia (pouco) a atravessar para o complexo do mosteiro e igreja de São Francisco de Assis, rodeado de um jardim que deste lado sufoca debaixo do sol e do outro divide espaço com cantaria de antigos edifícios espalhada pelos relvados à sombra de árvores - e podemos imaginar um pouco melhor como seria essa Goa eterna de grandes avenidas e praças. Parte do mosteiro é ocupada pelo Museu Arqueológico, onde uma estátua de bronze de Afonso de Albuquerque, que esteve numa praça em Pangim até à anexação, recebe os visitantes. Lá dentro, encontramos Camões em estátua e os vice-reis em pinturas a conviverem com peças hindus de vários templos do território. A Igreja de São Francisco, adjacente, foi das primeiras a serem construídas em Goa e não surpreende que seja uma das duas (a outra é a Igreja do Rosário) que ainda existem com vestígios manuelinos - aqui, no portal, integrado numa posterior reconstrução.

A Sé Catedral surge a pouca distância. Dedicada a Santa Catarina de Alexandria, a sua alvura transmite uma simplicidade que a fachada renascentista, de colunas coríntias e cantaria escurecida, e torre sineira com balaustrada, não dissipa - e as janelas partidas talvez acentue - apesar dos 36 metros de altura desta (para 76 de comprimento e 55 de largura). Talvez seja da solidão envolvente, não evitamos pensar. Esta é a maior igreja da Ásia, sede do patriarcado, consagrada em meados do século XVII - da original, há restos, escondidos ali, entre um café à beira de barracas.

A Igreja de São Caetano surge não muito longe, numa curva verde, geometricamente severa na sua fachada a imitar a Basílica de São Pedro de Roma. Duas torres, o zimbório, colunas e capitéis que sobem ao primeiro andar, estatuária alinha em nichos, um frontão triangular deixam uma imagem mais monumental do que a catedral. Que nem o edifício do antigo convento anexo (hoje Instituto Pio X), também ele rigorosamente clássico, consegue apagar.

Seguindo a mesma estrada, alguns metros adiante em direcção às margens do rio, o arco dos vice-reis surge como a porta de entrada dos governadores (uma espécie de percursor da Porta da Índia, em Bombaim). Virado ao rio está Vasco da Gama dando as boas-vindas aos construtores do império que por ali passaram. Em redor, a solidão dos palmeirais que encerram a Capela de Santa Catarina, a primeira construída em Goa, a ver o Mandovi a passar. µ

O passado (ainda) vivo

Vamos atrás dele, como foi a Velha Goa carregando-se, por vezes pedra atrás de pedra, até Pangim. No ancoradouro, barcos de cruzeiro prometem passeios ao pôr do sol, com música e dança e na avenida arborizada que segue a margem do rio, os carros passam sem parar. Fazemos gincana entre buracos e até um cão em avançado estado de decomposição até ao Instituto Menezes Bragança (já se chamou Vasco da Gama), que encontramos em obras. Não visitamos a colecção de livros raros no seu museu e ficamos pela entrada de azulejos, azuis e brancos a retratar episódios de Os Lusíadas, e de cores pálidas a desenhar molduras rebuscadas. Caminhamos entre edifícios públicos bem ao estilo do Estado Novo e prédios que o cruzam com o toque colonial das varandas e alpendres, passamos o jardim Garcia da Orta, murado, uma praça no meio de lojas reluzentes e guardas armados à porta. Um parque infantil, uma livraria com poucos livros em português (e alguns de aprendizagem) e a Igreja da Nossa Senhora da Imaculada Conceição em frente, alva com apontamentos azuis (Pangim é uma cidade ribeirinha e a água é uma marca da sua identidade), incrustada bem no coração da cidade, no topo de uma escadaria dupla que se vai cruzando. Fachada tranquilamente imponente, coroada pelo gigantesco sino, no dia 8 de Dezembro atrai verdadeiras romarias e à noite é uma espécie de farol, iluminado.

Não sabemos se se vê das Fontainhas, onde a maioria da população é católica e o português é ainda uma língua viva. Embora talvez não por muito tempo, como se percebe neste dédalo de ruas e ruelas de nomes portugueses. Gambeta Gonçalves, 66 anos, fez todo o liceu "com os portugueses", em casa fala português, mas os filhos não. Ele insistiu - quis mudar o filho para um colégio melhor, porém, não havia português, então ele ficou onde estava e até ao 12.º ano teve uma cadeira (opcional) de português. O lamento - "Portugal não contribui para a língua" - encontra eco no amigo, Jovito Lopes, que estava a estudar no Liceu Nacional Afonso de Albuquerque (uma escadaria quase em frente à sua porta, na Rua do Natal, leva até lá) quando "os portugueses saíram". Agora é jornalista de O Heraldo, The Herald, pois o mais antigo jornal português do território sobrevive há largos anos em inglês - apresentando, contudo, notícias do campeonato nacional de futebol, por exemplo.

Assim, aqui nas Fontainhas onde a "maioria" fala português não se espera que este sobreviva. Actualmente, o português é falado por apenas um por cento da população goesa, mas a verdade é que nunca se impôs em Goa - permaneceu como língua de administração e de elite -, onde o concanim é a língua dominante, o marata é largamente falado (a que não é alheia a forte imigração de outros estados da Índia) e o inglês ganha terreno, inclusive como língua educacional. Pelo contrário, a religião católica encontrou terreno mais fértil e contou com a "ajuda" da Inquisição (a maior parte dos nomes portugueses que encontramos não revela ascendência lusa, antes essas conversões). Aqui estamos na órbita da Capela de São Sebastião e sob o seu manto - o crucifixo do Palácio da Inquisição de Velha Goa foi trazido para aqui, e mantém-se, algo perturbador com o Cristo de olhos abertos, como a principal relíquia do templo datado de 1812.

No Natal, nesta zona de casario pitorescamente português, "fica tudo iluminado", conta Branca Miranda. "A maioria é católica." Já não se passa o mesmo no estado, onde a percentagem ronda os 20 por cento, tendo perdido muitos crentes para o hinduísmo.

Branca aponta "a única casa hindu da rua" (uma das poucas do bairro), decorada com flores a celebrar o ano novo hindu, Gudi Padwa - "um dia auspicioso". Mas um pouco adormecido, como vemos calcorreando as ruas e travessas (dos Magriços, inclusive), entre mercearias e cafés fechados, até ao Bairro de São Tomé, fila de edifícios coloridos virados para a Ribeira de Ourém, onde mais flores estão depostas.

On the road

As estradas de Goa percorrem-se entre sobressaltos: do asfalto não domado e dos cenários que hipnotizam. O verde é luxuriante e os palmeirais omnipresentes (coqueiros, cajueiros, arecas, que formam uma parte importante da produção frutícola) - fora das cidades é difícil não nos encontrarmos entre florestas, entre palmeiras e mangueiras, descobrimos árvores que antes desconhecíamos como a figueira-de-bengala (que até é a árvore nacional da Índia) e a ficus religiosa (foi debaixo de uma que Buda alcançou a iluminação). Cada curva revela surpresas, seja uma igreja solitária entre palmeiras ou lagos como manchas azuis entre o verde ou campos de arroz alagados, sejam cenas da vida quotidiana em que vacas caminham livremente, crianças jogam futebol (ou críquete) à beira da estrada, mulheres caminham com cestos na cabeça, vendedores assaltam um qualquer ponto do caminho. Na costa, os terrenos são suaves, vão subindo até se depararem com a cordilheira montanhosa dos Gates Ocidentais, fronteira natural do estado - e no meio de tudo isto, dizem-nos, a segunda queda de água mais alta da Índia, Dudhsagar Falls.

A arquitectura indo-portuguesa continua a espreitar - até em alguns templos hindus que escaparam às demolições (seguidas de reconstruções) pós-1961 - mas não chegamos a ver o esplendor do palácio dos Menezes-Bragança, em Chandor, pequena povoação em redor da qual se podem encontrar outros exemplares mais ou menos conservados. E a tradição hindu floresce em Ponda, onde a concentração de templos a torna famosa.

Porém, um dos ex-líbris incontornáveis do estado são as praias - o turismo goês cresceu com elas, desde os anos 60, com os hippies que encontraram aqui o seu paraíso. Nos anos 80, viraram-se para outras paragens, mas as portas abertas já não se fecharam. Pelo contrário, o turismo passou a ser uma aposta estruturada, alimentando o aparecimento de resorts, guesthouses, bares e discotecas que tomaram de assalto parte da costa (a norte, estão as praias mais festivas, a sul, as mais tranquilas) e onde se desenvolveu o chamado psy trance ou Goa trance que continua a atrair fiéis a megafestas.

Com uma costa de cem quilómetros, ainda é possível encontrar praias desertas, de areias brancas e palmeiras ondulantes que compõem os postais turísticos, mas esse é um bem cada vez mais escasso. E se no sul as praias mantêm esse rosto atraente de paraíso mesmo quando exploradas, no norte pode-se inadvertidamente entrar numa gigantesca feira ao ar livre. Calangute, por exemplo, uma das mais afamadas, pode ser uma armadilha para quem procura tranquilidade à beira-mar. O movimento é intenso, entre peões, carros, motas, há imensos restaurantes (com quadros de giz a apresentar os pratos do dia), hostels e para alcançar o areal ninguém escapa a um gigantesco mercado (com imensos "salões" de tatuagens) - na areia continua a regatear-se: gelados, claro, mas também ananases que mulheres, homens e miúdos carregam em bacias à cabeça, sarongs, pulseiras, colares e toda a parafernália habitual. Há bares em abundância, com espreguiçadeiras sob guarda-sóis a mirar o mar, onde o movimento de desportos aquáticos se desenrola sem regras. As famílias indianas, vestidas, sentam-se pela areia ou param defronte do mar - quem entra na água fá-lo quase sempre vestido, embora entre os homens existam excepções.

Vistas de cima, as praias em torno do Forte Aguada parecem tranquilas. Pode ser, no entanto, o distanciamento da história, aquela que medeia entre a chegada desses estrangeiros em busca das especiarias e a destes novos estrangeiros em busca de sol. Dos muitos fortes e outras construções militares que fazem parte da herança lusitana, muitos são ruínas de ruínas; o Forte Aguada continua poderoso testemunho do passado. Orgulhoso, também, µ ou não atraísse multidões de toda a Índia, que transformam os estacionamentos improvisados na confusão habitual de vendedores e turistas. A entrada é gratuita (como na maior parte dos monumentos goeses), a vista impagável. As baías sucedem-se separadas por línguas de terra, o azul do mar é quase impossível, as ilhas e ilhotas parecem visões envoltas de neblina fina - e o rio Mandovi tem a sua foz aqui aos pés e, cá em cima, os caminhos de ronda virados para o Mar Arábico têm congestionamentos: as ameias com o mar por detrás são muito fotogénicas. Construído em 1612, o forte constituía a primeira linha de defesa da capital e foi vendo o seu complexo de muralhas, baluarte e fossos de pedra escura carcomida pelo sol expandir-se ao longo dos séculos. O nome vem das "aguadas" dos navios (que aqui se abasteciam de água, portanto) e aqui funcionou um farol até há poucas décadas - durante o Estado Novo foi utilizado como prisão.

Há muitas pedras por aqui que contam estórias assim, de Goa e de Portugal, a caminhar juntos pelos séculos e a construir uma identidade que vai além das marcas arquitectónicas - o twist da cozinha de Goa, que a torna num pequeno universo à parte entre a gastronomia indiana (os estrangeiros destacam o vindaloo, "vindalho", uma vinha-de-alho à goesa; em Portugal não há quem não conheça as chamuças), o mandó, que é um lamento goês com sabor a fado, o Santo António e o São João que são grandes festas populares no território. Foram séculos de glória e de esquecimento, de triunfos e de derrotas, entrecruzando-se caprichosamente. Desde que, em 1987, Goa passou a ser um estado dentro da União Indiana (até aí era um Union Territory - Goa, Damão e Diu) pode não ter recuperado a glória do passado, mas recuperou parte dos seus pergaminhos que durante séculos se desgastaram. Os seus caminhos separaram-se dos de Damão e Diu, que seguem juntos como um território da união, mas a sua personalidade singular destaca-se. Nem completamente indiana, nem tão-pouco portuguesa, Goa é dona do seu próprio nariz. Mas cinquenta anos depois da sua saída, o caminho de Portugal em Goa arrisca-se a ser mais de forma do que de conteúdo - uma idiossincrasia com valor em alta no mercado turístico (não é à toa, contam-nos, que muitos estabelecimentos comerciais na Velha Goa adoptaram recentemente, ou retomaram, nomes portugueses), mas cada vez mais desligada do dia-a-dia dos goeses. Chegámos com curiosidade, partimos com nostalgia. Foi assim há 500 anos, há 50, é assim hoje. Desígnio da História - ou desígnios da História que Portugal escreveu neste pedaço da costa de Malabar a lamber o Mar Arábico.As palavras custam-lhe a sair. Tem todos os olhos nela, nós, as noras, os netos. E a memória a viajar 50 anos no tempo a escrutinar uma língua que para ela está (quase) morta. Embora o seu nome seja um testemunho dela - Leonora. Leonora Rodrigues, 65 anos, em passeio de família no dia de ano novo hindu a ver os navios de cruzeiro atracados no porto de Mormugão (na cidade de Vasco - que é da Gama, mas caiu em desuso) e a ouvir inesperadamente uma língua nela adormecida. Custam-lhe, portanto, as palavras a sair: no início, quase que sentimos o esforço com que perscruta a memória em busca das certas; depois, solta-se um pouco, tímida na sua pele curtida pelo sol envolta no sari já um pouco gasto, perante o olhar surpreso da família que nunca lhe tinha ouvido o português. É ela quem nos aborda ao escutar-nos, é ela quem pergunta se estamos a falar português, é ela quem recorda outros tempos. "Os portugueses eram bons." Sem nostalgia e sem condescendência. Talvez com o pragmatismo de quem nem sequer pensa nisso - "isso" é parte da ordem natural das coisas, da história.

Já é quase hora da despedida desta Goa que encontrámos carregada de Portugal e cada vez mais oca de Portugal. Enquanto o nosso navio se afasta lentamente, deixando o porto de ferro envelhecido e abrindo caminho entre longos dhows também ferrugentos, com o dia a declinar no horizonte, os nossos olhos passam da cidade ocre e castanha entre o verde seco que trepa uma colina em casas coloridas, azuis, verdes, brancas, amarelas, de telha escurecida, para terminar em dois silos bem destacados na paisagem; para o outro lado, o do rio Zuari a entranhar-se terra adentro em saracoteios que se desenham entre o verde impossível da vegetação para se irem desvanecer lentamente na neblina, em contornos suaves; e quando damos conta os barquitos de pesca são quase uma miragem, uma sinfonia azul pronta a tocar. O cenário é technicolor, a atmosfera de calor lânguido - mas o ar de família é evidente. Um fado tropical.

Há quem vá a Goa pelas praias, há quem vá pelo paraíso hippie que os anos 60 trouxeram e os anos 70 cristalizaram numa eterna new age. Um português até pode ir por esses motivos, mas é quase impossível não tropeçar no imaginário lusitano que sobrevive neste cantinho do caleidoscópio indiano. Diríamos mesmo que é quase impossível não o buscar, porém não queremos abusar. E na verdade, passada um pouco a euforia "espiritual", Goa permanece distinta no mosaico indiano pelo carácter singular que lhe advém da herança lusitana.

Cumpre-se amanhã meio século sobre a entrada das forças indianas no Estado Português da Índia; no dia seguinte estava tudo acabado. Goa, Damão, Diu, os últimos redutos de Portugal no subcontinente indiano, eram anexados pela jovem recém-nascida União Indiana, que sete anos antes já havia engolido os enclaves lusos de Dadrá e Nagar Aveli. Fechava-se um ciclo: os portugueses foram os primeiros europeus na Índia, os portugueses foram os últimos a sair. E 451 anos sobre a conquista de Goa quase contados ao dia - o mês de Dezembro viu a chegada, o mês de Dezembro viu a partida. Por mar. Para Portugal era o começo do fim do império; para Goa era o começo do resto da sua vida.

É uma porta de entrada para Goa, a cidade de Vasco da Gama. É a maior cidade do mais pequeno estado indiano (3702 metros quadrados), cujo único aeroporto fica em Dabolim, a meia dúzia de quilómetros - e o porto de Mormugão, um dos mais importantes do país, está às suas portas, virado para o Mar Arábico.

Não é preciso andar muito na estrada para se ver a primeira vaca a caminhar calmamente, em contramão. Ao contrário de outras partes, por aqui ainda é possível destrinçar quando começa e acaba uma povoação. Os quilómetros consomem-se entre intensa vegetação e casas coloniais de cor parda e alpendres generosos, nos lugarejos as casas chegam-se à beira da estrada e expõem-se em colorido ora brilhante ora gasto, sucedem-se os nomes familiares - Café Coelho, Pensão Rebelo, Pereira Wines, JD Dias Relax Inn, Domingos Furniture, Fernandes General Store - entre Sairaj Bar & Restaurant, Sharvan General Store e até um Madonna Medical Center. Assim mesmo, com o inglês como uma espécie de língua franca. Um templo hindu à beira da estrada, outro além da floresta de palmeiras, blocos de prédios castanho-triste e verde-acabrunhado, espelhos de água, mais palmeiras, palmeiras e baías ao longe, entre elas, como ilhotas azuis. Passam autocarros Inácio e Paulo e passamos nós pelos vendedores de beira de estrada de baleias, golfinhos e cadeiras insufláveis - e o circo vem à cidade, dizem os cartazes em postes e pilares de pontes e viadutos.

Chegamos a Panaji, na margem esquerda do rio Mandovi, sem sobressalto - será das menos buliçosas capitais de estado indianas (que acumula com a função de capital do distrito de Goa Norte; Goa Sul tem capital em Margão). No entanto, com a sua tranquilidade provinciana, é a capital do estado de Goa, que é um dos mais desenvolvidos de todo o país: tem o maior rendimento per capita de toda a Índia e anda no topo dos rankings relativos a infra-estruturas, ambiente e qualidade de vida.

É Pangim, a última capital do Estado Português da Índia, esta Panaji com problemas de afirmação toponímica: este é agora o seu nome oficial, mas continua a ser conhecida por Pangim (ou o seu equivalente anglo-saxónico, Panjim). Capital com pouco brilho, capital na sombra de um mito: Velha Goa (a Goa que é a parte que muitas vezes se toma pelo todo, que é o estado). Essa foi a Roma do Oriente, foi o El Dorado, foi a "Goa-quem-a-vê-não-necessita-de-ver-Lisboa" (e quando isto se dizia Lisboa era a grande metrópole mundial), foi "a melhor coisa que temos na Índia", segundo Fernão Mendes Pinto. Mas a Velha Goa portuguesa não surgiu do nada.

O El Dorado português

A cidade que hoje é conhecida como Velha Goa foi fundada no século XV, nas margens do rio Mandovi, pelos governantes do sultanato de Bijapur. A sua missão era substituir o antigo porto de Govapuri, nas margens do rio Zuari, uns quilómetros a sul, que havia deixado de ser viável.

Entretanto, Vasco da Gama chega à costa indiana em 1498. Calecute foi a porta de entrada dos portugueses, Cochim torna-se a sua base, até Afonso de Albuquerque, o grande estratego visionário destes primeiros dias do império português do oriente, perceber que Goa, mais a norte, era mais apropriada para essa função. Tinha um dos melhores portos naturais da costa ocidental indiana e já era um entreposto comercial florescente, o que, aliado à prodigalidade dos seus recursos naturais e à rede fluvial que penetrava pelo interior do território, lhe concediam uma posição de charneira irresistível.

Em 1510, Afonso de Albuquerque está, portanto, determinado em conquistar Goa. A primeira tentativa tem glória curta - três meses - mas em Dezembro o futuro vice-rei volta. E os portugueses ficam. É dia 10, dia de Santa Catarina de Alexandria, feita padroeira do novo território que se tornaria na plataforma para as conquistas de um império - que aqui teve o seu assento durante alguns séculos.

Foi em 1534 que Goa foi oficialmente declarada a sede dessa entidade informalmente conhecida como Império Português do Oriente, que haveria de abranger territórios desde a costa oriental africana, passando pelo Golfo Pérsico, Malaca, China, Japão (entrepostos comerciais) até ao longínquo Timor. A autoridade directa sobre essas possessões era exercida desde Goa, desde Velha Goa mais exactamente, por um vice-rei.

Quando São Francisco Xavier chega a Velha Goa, em 1542, onde permanece dez meses antes de seguir em acção missionária pela Ásia (embora regressando regularmente), já refere o esplendor arquitectónico da cidade. Que todavia teria o seu apogeu umas décadas mais tarde, altura em que brilharia em todo o seu esplendor de igrejas, conventos, mosteiros (as ordens religiosas tiveram aqui terrenos férteis para a evangelização e a ostentação - franciscanos, jesuítas, agostinhos, dominicanos, carmelitas), palácios em largas avenidas, mercados cosmopolitas, os melhores artesãos, uma multiculturalidade lendária. Em Goa os jesuítas montam a primeira impressora da Índia, por aí passam Camões e Garcia da Orta. Aos goeses foram concedidos os mesmos privilégios cívicos de Lisboa e a opulência era desregrada, alimentada pelo lucrativo comércio de especiarias.

A decadência, porém, já se alimentava desses excessos e os ventos da História também começaram a soprar contrários a Goa. No século XVII, a cobiça de outras potências europeias (nomeadamente, da Holanda) começou a abrir brechas no poderio português e embora no século XVIII Portugal ainda se apodere de outros territórios - as "novas conquistas" a juntarem-se às "velhas conquistas" de Quinhentos - a sua hegemonia nunca foi igual.

A cidade de Velha Goa é um espelho onde se reflecte esta decadência. O vice-rei transfere-se da Velha Goa para Panelim, nos arredores, no final de Seiscentos, depois de a cidade ter sido atacada por uma epidemia, e em meados do século XVIII estabelece-se em Pangim - um século depois, a administração é oficialmente transferida para esta "Nova Goa", que já vinha engrossando a sua população com os habitantes da velha capital.

A cidade "eterna"

No seu auge, a Velha Goa teve 200 mil habitantes - agora, dizem os censos, a população ronda os cinco mil; foi capital de um império - agora é Património Mundial da UNESCO. Há algo de assombroso na visão actual da que foi uma das grandes metrópoles asiáticas: as igrejas, catedrais, mosteiros, parecem ser o que restou da grandeza de outrora (não descortinamos edifícios seculares memoráveis, pelo menos) e erguem-se quase fantasmagóricas entre o verde que se apoderou, indomado, dos interstícios. É quase como um sítio arqueológico, é praticamente um museu a céu aberto e é impossível não tentar imaginá-la no esplendor da Roma do Oriente que deixava todos os visitantes deslumbrados - e este era também um dos objectivos das construções religiosas: impressionar os nativos e levá-los à conversão (e este foi um dos aspectos mais conseguidos da presença portuguesa, como veremos). Quem diz que a decadência não é bela?

Um dos locais que mais impressiona por essa sensação irremediável de grandeza perdida é a ruína da Igreja de Santo Agostinho. Diz-se que foi a maior igreja da Índia e foi construída (1602) junto ao convento da ordem que chegou aqui no século XVI. Vemo-la no cimo de uma pequena colina despida de tudo menos de sol inclemente e de árvores que parecem apenas troncos, que temos de subir para alcançar a torre sobrevivente (de quatro) - 46 metros de altura esventrados, muitos mais metros quadrados deixados à imaginação. Parece que foi bombardeada, mas o único bombardeamento sofrido foi o da solidão e do tempo. As paredes grossas que ainda restam dão ideia de um gigante tombado - tinha cinco andares, oito capelas e quatro altares, abandonados em 1835, aquando da expulsão das ordens religiosas de Goa; o seu espólio foi vendido ou espalhado por outras igrejas de Goa, o sino, por exemplo, esteve no Forte da Aguada e desde 1879 está na Igreja da Imaculada Conceição, em Pangim.

A vista daqui é irrepreensível (estamos no alto, no planalto do Monte Santo): as cúpulas e torres da Velha Goa, quase imaculada na sua alvura, surgem em clareiras no verde tropical, rico em palmeirais. Antes de descermos, o Convento de Santa Mónica chama-nos do outro lado da estrada, em azul pálido com cantaria que se espraia em três andares. Foi o único convento feminino de Goa, um dos maiores do império português: fixamo-nos nos arcobotantes da sua fachada, que lhe conferem um certo ar de fortaleza, mas o que impressiona são os seus frescos em murais que só podemos espreitar à socapa - está tudo em obras. Mas não abandonado: alberga, por exemplo, o Museu de Arte Cristã de Goa, o primeiro da Ásia, inaugurado em 1994.

Das 60 igrejas inventariadas na cidade do século XVIII restam cerca de duas dezenas intactas. Fachadas manuelinas, barrocas, maneiristas, sobretudo, interiores de talha dourada - Goa foi um laboratório gigante de arquitectura, escultura e pintura. Nenhum templo cristão goês atrai tanta gente como a Basílica do Bom Jesus (concluída em 1605). Foi o único local onde encontrámos multidões e tivemos mesmo de fazer fila para ver o seu maior tesouro, o corpo-relicário de São Francisco Xavier, o "Apóstolo das Índias", trazido para aqui depois da sua morte na China, fechado numa opulenta urna de prata, no topo de uma coluna de mármore.

Dois milhões de visitantes, entre peregrinos e turistas, chegam anualmente ao "Taj Mahal" de Goa, como também é conhecida a igreja, construída, como todas as outras, em laterite, mas que, ao contrário das outras, se apresenta despida de caiados. Revela-se, portanto, num tom escuro, com derivações rosadas dependendo da luz, rosto imponente e vetusto. Passada a sua fachada barroca de três andares (o rés-do-chão com três portas, o primeiro com três janelas compridas e o último com três janelas redondas, quase escotilhas) encimados por um frontispício quadrangular, entramos numa típica igreja-salão cuja simplicidade é quebrada pela profusão dourada do retábulo-mor; a iconografia revela os construtores, os jesuítas.

O pequeno mausoléu de São Francisco (um presente do grão-duque da Toscana) é acossado por dezenas de pessoas de cada vez, máquinas fotográficas em punho, notas e moedas na mão para as esmolas. O caixão tem janelas onde mal dá para distinguir o corpo do santo, o mármore predomina e os querubins esculpidos andam à solta.

É à volta da basílica, debaixo de palmeiras e entre algum lixo, que se dá o maior assalto de vendedores ambulantes aqui em Goa velha (diríamos mesmo, se a memória não nos falha, o único) e, claro, de turistas que aqui se concentram em força - de várias partes da Índia, incluindo viagens de estudo. Mas rapidamente estamos defronte à grande avenida ladeada de palmeiras e trânsito insuspeito para a Índia (pouco) a atravessar para o complexo do mosteiro e igreja de São Francisco de Assis, rodeado de um jardim que deste lado sufoca debaixo do sol e do outro divide espaço com cantaria de antigos edifícios espalhada pelos relvados à sombra de árvores - e podemos imaginar um pouco melhor como seria essa Goa eterna de grandes avenidas e praças. Parte do mosteiro é ocupada pelo Museu Arqueológico, onde uma estátua de bronze de Afonso de Albuquerque, que esteve numa praça em Pangim até à anexação, recebe os visitantes. Lá dentro, encontramos Camões em estátua e os vice-reis em pinturas a conviverem com peças hindus de vários templos do território. A Igreja de São Francisco, adjacente, foi das primeiras a serem construídas em Goa e não surpreende que seja uma das duas (a outra é a Igreja do Rosário) que ainda existem com vestígios manuelinos - aqui, no portal, integrado numa posterior reconstrução.

A Sé Catedral surge a pouca distância. Dedicada a Santa Catarina de Alexandria, a sua alvura transmite uma simplicidade que a fachada renascentista, de colunas coríntias e cantaria escurecida, e torre sineira com balaustrada, não dissipa - e as janelas partidas talvez acentue - apesar dos 36 metros de altura desta (para 76 de comprimento e 55 de largura). Talvez seja da solidão envolvente, não evitamos pensar. Esta é a maior igreja da Ásia, sede do patriarcado, consagrada em meados do século XVII - da original, há restos, escondidos ali, entre um café à beira de barracas.

A Igreja de São Caetano surge não muito longe, numa curva verde, geometricamente severa na sua fachada a imitar a Basílica de São Pedro de Roma. Duas torres, o zimbório, colunas e capitéis que sobem ao primeiro andar, estatuária alinha em nichos, um frontão triangular deixam uma imagem mais monumental do que a catedral. Que nem o edifício do antigo convento anexo (hoje Instituto Pio X), também ele rigorosamente clássico, consegue apagar.

Seguindo a mesma estrada, alguns metros adiante em direcção às margens do rio, o arco dos vice-reis surge como a porta de entrada dos governadores (uma espécie de percursor da Porta da Índia, em Bombaim). Virado ao rio está Vasco da Gama dando as boas-vindas aos construtores do império que por ali passaram. Em redor, a solidão dos palmeirais que encerram a Capela de Santa Catarina, a primeira construída em Goa, a ver o Mandovi a passar.

O passado (ainda) vivo

Vamos atrás dele, como foi a Velha Goa carregando-se, por vezes pedra atrás de pedra, até Pangim. No ancoradouro, barcos de cruzeiro prometem passeios ao pôr do sol, com música e dança e na avenida arborizada que segue a margem do rio, os carros passam sem parar. Fazemos gincana entre buracos e até um cão em avançado estado de decomposição até ao Instituto Menezes Bragança (já se chamou Vasco da Gama), que encontramos em obras. Não visitamos a colecção de livros raros no seu museu e ficamos pela entrada de azulejos, azuis e brancos a retratar episódios de Os Lusíadas, e de cores pálidas a desenhar molduras rebuscadas. Caminhamos entre edifícios públicos bem ao estilo do Estado Novo e prédios que o cruzam com o toque colonial das varandas e alpendres, passamos o jardim Garcia da Orta, murado, uma praça no meio de lojas reluzentes e guardas armados à porta. Um parque infantil, uma livraria com poucos livros em português (e alguns de aprendizagem) e a Igreja da Nossa Senhora da Imaculada Conceição em frente, alva com apontamentos azuis (Pangim é uma cidade ribeirinha e a água é uma marca da sua identidade), incrustada bem no coração da cidade, no topo de uma escadaria dupla que se vai cruzando. Fachada tranquilamente imponente, coroada pelo gigantesco sino, no dia 8 de Dezembro atrai verdadeiras romarias e à noite é uma espécie de farol, iluminado.

Não sabemos se se vê das Fontainhas, onde a maioria da população é católica e o português é ainda uma língua viva. Embora talvez não por muito tempo, como se percebe neste dédalo de ruas e ruelas de nomes portugueses. Gambeta Gonçalves, 66 anos, fez todo o liceu "com os portugueses", em casa fala português, mas os filhos não. Ele insistiu - quis mudar o filho para um colégio melhor, porém, não havia português, então ele ficou onde estava e até ao 12.º ano teve uma cadeira (opcional) de português. O lamento - "Portugal não contribui para a língua" - encontra eco no amigo, Jovito Lopes, que estava a estudar no Liceu Nacional Afonso de Albuquerque (uma escadaria quase em frente à sua porta, na Rua do Natal, leva até lá) quando "os portugueses saíram". Agora é jornalista de O Heraldo, The Herald, pois o mais antigo jornal português do território sobrevive há largos anos em inglês - apresentando, contudo, notícias do campeonato nacional de futebol, por exemplo.

Assim, aqui nas Fontainhas onde a "maioria" fala português não se espera que este sobreviva. Actualmente, o português é falado por apenas um por cento da população goesa, mas a verdade é que nunca se impôs em Goa - permaneceu como língua de administração e de elite -, onde o concanim é a língua dominante, o marata é largamente falado (a que não é alheia a forte imigração de outros estados da Índia) e o inglês ganha terreno, inclusive como língua educacional. Pelo contrário, a religião católica encontrou terreno mais fértil e contou com a "ajuda" da Inquisição (a maior parte dos nomes portugueses que encontramos não revela ascendência lusa, antes essas conversões). Aqui estamos na órbita da Capela de São Sebastião e sob o seu manto - o crucifixo do Palácio da Inquisição de Velha Goa foi trazido para aqui, e mantém-se, algo perturbador com o Cristo de olhos abertos, como a principal relíquia do templo datado de 1812.

No Natal, nesta zona de casario pitorescamente português, "fica tudo iluminado", conta Branca Miranda. "A maioria é católica." Já não se passa o mesmo no estado, onde a percentagem ronda os 20 por cento, tendo perdido muitos crentes para o hinduísmo.

Branca aponta "a única casa hindu da rua" (uma das poucas do bairro), decorada com flores a celebrar o ano novo hindu, Gudi Padwa - "um dia auspicioso". Mas um pouco adormecido, como vemos calcorreando as ruas e travessas (dos Magriços, inclusive), entre mercearias e cafés fechados, até ao Bairro de São Tomé, fila de edifícios coloridos virados para a Ribeira de Ourém, onde mais flores estão depostas.

On the road

As estradas de Goa percorrem-se entre sobressaltos: do asfalto não domado e dos cenários que hipnotizam. O verde é luxuriante e os palmeirais omnipresentes (coqueiros, cajueiros, arecas, que formam uma parte importante da produção frutícola) - fora das cidades é difícil não nos encontrarmos entre florestas, entre palmeiras e mangueiras, descobrimos árvores que antes desconhecíamos como a figueira-de-bengala (que até é a árvore nacional da Índia) e a ficus religiosa (foi debaixo de uma que Buda alcançou a iluminação). Cada curva revela surpresas, seja uma igreja solitária entre palmeiras ou lagos como manchas azuis entre o verde ou campos de arroz alagados, sejam cenas da vida quotidiana em que vacas caminham livremente, crianças jogam futebol (ou críquete) à beira da estrada, mulheres caminham com cestos na cabeça, vendedores assaltam um qualquer ponto do caminho. Na costa, os terrenos são suaves, vão subindo até se depararem com a cordilheira montanhosa dos Gates Ocidentais, fronteira natural do estado - e no meio de tudo isto, dizem-nos, a segunda queda de água mais alta da Índia, Dudhsagar Falls.

A arquitectura indo-portuguesa continua a espreitar - até em alguns templos hindus que escaparam às demolições (seguidas de reconstruções) pós-1961 - mas não chegamos a ver o esplendor do palácio dos Menezes-Bragança, em Chandor, pequena povoação em redor da qual se podem encontrar outros exemplares mais ou menos conservados. E a tradição hindu floresce em Ponda, onde a concentração de templos a torna famosa.

Porém, um dos ex-líbris incontornáveis do estado são as praias - o turismo goês cresceu com elas, desde os anos 60, com os hippies que encontraram aqui o seu paraíso. Nos anos 80, viraram-se para outras paragens, mas as portas abertas já não se fecharam. Pelo contrário, o turismo passou a ser uma aposta estruturada, alimentando o aparecimento de resorts, guesthouses, bares e discotecas que tomaram de assalto parte da costa (a norte, estão as praias mais festivas, a sul, as mais tranquilas) e onde se desenvolveu o chamado psy trance ou Goa trance que continua a atrair fiéis a megafestas.

Com uma costa de cem quilómetros, ainda é possível encontrar praias desertas, de areias brancas e palmeiras ondulantes que compõem os postais turísticos, mas esse é um bem cada vez mais escasso. E se no sul as praias mantêm esse rosto atraente de paraíso mesmo quando exploradas, no norte pode-se inadvertidamente entrar numa gigantesca feira ao ar livre. Calangute, por exemplo, uma das mais afamadas, pode ser uma armadilha para quem procura tranquilidade à beira-mar. O movimento é intenso, entre peões, carros, motas, há imensos restaurantes (com quadros de giz a apresentar os pratos do dia), hostels e para alcançar o areal ninguém escapa a um gigantesco mercado (com imensos "salões" de tatuagens) - na areia continua a regatear-se: gelados, claro, mas também ananases que mulheres, homens e miúdos carregam em bacias à cabeça, sarongs, pulseiras, colares e toda a parafernália habitual. Há bares em abundância, com espreguiçadeiras sob guarda-sóis a mirar o mar, onde o movimento de desportos aquáticos se desenrola sem regras. As famílias indianas, vestidas, sentam-se pela areia ou param defronte do mar - quem entra na água fá-lo quase sempre vestido, embora entre os homens existam excepções.

Vistas de cima, as praias em torno do Forte Aguada parecem tranquilas. Pode ser, no entanto, o distanciamento da história, aquela que medeia entre a chegada desses estrangeiros em busca das especiarias e a destes novos estrangeiros em busca de sol. Dos muitos fortes e outras construções militares que fazem parte da herança lusitana, muitos são ruínas de ruínas; o Forte Aguada continua poderoso testemunho do passado. Orgulhoso, também, ou não atraísse multidões de toda a Índia, que transformam os estacionamentos improvisados na confusão habitual de vendedores e turistas. A entrada é gratuita (como na maior parte dos monumentos goeses), a vista impagável. As baías sucedem-se separadas por línguas de terra, o azul do mar é quase impossível, as ilhas e ilhotas parecem visões envoltas de neblina fina - e o rio Mandovi tem a sua foz aqui aos pés e, cá em cima, os caminhos de ronda virados para o Mar Arábico têm congestionamentos: as ameias com o mar por detrás são muito fotogénicas. Construído em 1612, o forte constituía a primeira linha de defesa da capital e foi vendo o seu complexo de muralhas, baluarte e fossos de pedra escura carcomida pelo sol expandir-se ao longo dos séculos. O nome vem das "aguadas" dos navios (que aqui se abasteciam de água, portanto) e aqui funcionou um farol até há poucas décadas - durante o Estado Novo foi utilizado como prisão.

Há muitas pedras por aqui que contam estórias assim, de Goa e de Portugal, a caminhar juntos pelos séculos e a construir uma identidade que vai além das marcas arquitectónicas - o twist da cozinha de Goa, que a torna num pequeno universo à parte entre a gastronomia indiana (os estrangeiros destacam o vindaloo, "vindalho", uma vinha-de-alho à goesa; em Portugal não há quem não conheça as chamuças), o mandó, que é um lamento goês com sabor a fado, o Santo António e o São João que são grandes festas populares no território. Foram séculos de glória e de esquecimento, de triunfos e de derrotas, entrecruzando-se caprichosamente. Desde que, em 1987, Goa passou a ser um estado dentro da União Indiana (até aí era um Union Territory - Goa, Damão e Diu) pode não ter recuperado a glória do passado, mas recuperou parte dos seus pergaminhos que durante séculos se desgastaram. Os seus caminhos separaram-se dos de Damão e Diu, que seguem juntos como um território da união, mas a sua personalidade singular destaca-se. Nem completamente indiana, nem tão-pouco portuguesa, Goa é dona do seu próprio nariz. Mas cinquenta anos depois da sua saída, o caminho de Portugal em Goa arrisca-se a ser mais de forma do que de conteúdo - uma idiossincrasia com valor em alta no mercado turístico (não é à toa, contam-nos, que muitos estabelecimentos comerciais na Velha Goa adoptaram recentemente, ou retomaram, nomes portugueses), mas cada vez mais desligada do dia-a-dia dos goeses. Chegámos com curiosidade, partimos com nostalgia. Foi assim há 500 anos, há 50, é assim hoje. Desígnio da História - ou desígnios da História que Portugal escreveu neste pedaço da costa de Malabar a lamber o Mar Arábico.

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