Cenas da angústia das classes no Irão

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Um incidente vai colocar Simin e Nader em confronto com outro casal, Razieh e Houjat. Dinheiro e cosmopolitismo urbano ali, precaridade económica e suburbana e submissão religiosa aqui. O inferno é o desconhecimento dos outros

A crónica de uma separação é um comboio em andamento sacudido para outra linha quando um casal da classe média iraniana entra em confronto com um par do operariado. O inferno é o desconhecimento dos outros. E "Uma Separação", de Asghar Farhadi, traz-nos imagens de uma sociedade que desconhecemos Vasco Câmara, em Paris

Há dez anos, entrámos num carrocel em andamento com uma história que já tinha começado antes de entrarmos nela e que não era travada pelo genérico final. Para o espectador sobra ansiedade perante o que parece imparável. Chamou-se "O Círculo", era realizado por Jafar Panahi. Nunca tínhamos visto numa ficção cinematográfica uma cidade iraniana assim, tão aberta (aos olhares exteriores), tão devassada pelo cinema e simultaneamente tão tumular para as personagens, um grupo de mulheres das margens da sociedade.

Uma das coisas que começamos por dizer a Asghar Farhadi é que o seu filme, "Uma Separação", partilha desse carrocel - não é uma primeira vez, portanto, até porque o suplemento de angústia, perante o dilema de personagens de crianças ou de adultos, faz parte de uma cartilha de crueldade do cinema iraniano. Mas há uma experiência que pode ser uma estreia para um ocidental: por exemplo, ver uma mulher, classe média, explicitar - logo a abrir o filme - que quer sair do país, que não é no Irão que quer educar a filha.

"Também não lhe posso dizer se isto é inédito no nosso cinema, também não vi todos os filmes iranianos. Em todo o caso a personagem é alguém que diz as coisas de forma explícita e clara. Ela representa, segundo penso, um dos dilemas mais problemáticos da classe média no Irão. Penso que o Irão é um dos países com mais emigrantes", diz Asghar Farhadi, 39 anos, cinco longas-metragens, experiência como argumentista e realizador em televisão. "Classe média" é palavra chave no seu cinema.

A intenção de Simin de abandonar o Irão não é partilhada pelo marido, Nader, preocupado com o pai, doente com Alzheimer, incapaz de o abandonar. Quando os conhecemos, Nader e Simin estão à beira de ruptura, portanto. E ela a iniciar o pedido de divórcio nos tribunais, a quem entrega o caso para análise. A casa onde o casal habita, décor que também não corresponde à experiência do que é "um filme iraniano", faz figura de espaço de cerco. Toda a gente pode ver toda a gente aqui, como uma "janela indiscreta" debruçada para os interiores. Vale isto para dizer que a classe média iraniana está sob pressão?

"Não tenho a pretensão de fazer um filme sobre a sociedade iraniana. Tive a pretensão de fazer um filme. Não é boa ideia ver os filmes iranianos sempre sob um ângulo político, como se contassem sempre algo sobre o Irão; nem todos os filmes têm de o fazer", começa por responder o realizador, e isso, essa reserva, a distância, não são mesmo uma primeira vez em termos de declarações públicas de realizadores iranianos. (O que não quer dizer que não seja cirúrgico a apontar algo que tem distorcido, como uma lente intromissora, a relação entre um espectador ocidental e o cinema que vem do Irão.) "Mas é justo", prossegue, "pensar que a classe média iraniana está sob pressão, económica e não só, porque deve sentir a falta de liberdade".

Quanto à casa, o cineasta procurou-a durante muito tempo. "Devia ter duas características. Uma delas é que se devia sentir que a personagem do avô [o pai de Nader] tinha vivido ali durante muito tempo. Ao mesmo tempo era necessário que os acessórios fossem modernos, porque uma nova geração aí se tinha instalado. Por exemplo, na cozinha, se repararem, há um velho frigorífico e um frigorífico moderno. Tive sorte porque encontrei uma casa vazia e era essa casa que queria. Com pequenas mudanças comecei a mobilá-la." A casa foi usada como espaço de ensaios muito antes das filmagens, e aos actores, ao pai, à mãe e à adolescente desta família, foi solicitado que passassem ali o maior tempo possível, que a decorassem como quisessem, que fizessem dela o seu espaço.

Uma mancha

Há um momento em que o jogo de olhares se intensifica, em que a pressão sobre a família aumenta: um incidente vai colocar Simin e Nader em confronto com outro casal, Razieh e Houjat. Dinheiro e cosmopolitismo urbano ali, precaridade económica e suburbana e submissão religiosa aqui. É daqueles incidentes - Nader empurrou Razieh, que tomava conta do seu pai, furioso por considerar que ela fôra negligente; ela, grávida, caiu nas escadas e agora acusa-o de ser responsável pelo aborto - cujos contornos perdem a definição. Como uma mancha que se agiganta. Como se o toque entre sectores de uma sociedade que não se tocam habitualmente, que não se vêem, estivesse inquinado pelo desconhecimento, pela desconfiança - em "About Elly" (2009), anterior filme do realizador, o desaparecimento da personagem cujo nome ensombra o título leva à ruptura entre um grupo de amigos em férias na praia. Faz sentido considerar, vendo a filmografia do cineasta, que é com as angústias da classe média - a pressão que sobre ela se exerce - que Farhadi pode começar por se interessar. E por personagens femininas, sempre mais fortes do que os homens. Aliás, diz-nos isto, ainda referindo-se ao plano inicial em que a mulher declara que se quer ir embora do Irão (atenção, podem evaporar-se aqui mais preconceitos): "Quando escrevo um filme e falo das minhas personagens, não as classifico segundo o sexo. É a história que ordena tudo. Neste caso foi assim, não fui eu que decidi. Mas, forçosamente, esta história foi escrita também com o meu inconsciente e é claro que está nele inscrita a história social iraniana. Mas apesar do que as pessoas podem pensar sobre o Irão, acho que as mulheres vão jogar um papel importante no futuro do país. E sobretudo as mulheres da classe média. Pensa-se que elas se habituam rapidamente aos condicionalismos que lhes são impostos, mas acho o contrário: serão elas a mudar as condições de vida no Irão."

O realizador e o cidadão

Insiste, quando o interrogamos sobre a realidade da ficção em "Uma Separação": "A maioria dos divórcios no Irão começa com pedidos das mulheres. Isso é muito realista no filme."

Mas se o olhar de cineasta se pousa sobre a classe média, os seus medos, também suspende qualquer julgamento sobre quem possa fazer figura de invasor, revelador ou intruso. Uma certa generosidade "renoiriana" de querer compreender as razões de todos. "Sou um cidadão mesmo quando faço um filme, não há diferença entre o realizador e o cidadão. É verdade que em momentos de cólera posso dizer "esta família enerva-me" ou "identifico-me com aquela", mas quando me acalmo torno-me eu próprio."

Esta disponibilidade é visível, ainda, na forma como são retratados os funcionários da Justiça - por vezes pode levar-nos a perguntar se o olhar do realizador não está afectado por algum angelismo. "Fui muitas vezes aos tribunais, fiz pesquisa. Os juízes e todas as pessoas que se vêem no filme são meros empregados e ganham pouco. E trabalham muito. Na verdade, aquelas personagens são empregados de um sistema, não são eles que julgam. Têm um trabalho difícil. Não tenho grande opinião sobre o sistema judicial iraniano, mas tenho muito respeito por aquelas personagens." Actores em tribunais de cinema: tipicamente iraniano, já agora, foi o "rally" contra a censura.

"Quando escrevo vou a todo o lado, não me censuro. Mas no momento da rodagem, as coisas mudam: há décores a que não tenho acesso, neste caso os tribunais e instalações do Ministério da Justiça. Tivemos de reconstituir o tribunal num décor neutro, numa escola. Mas foi melhor assim. Controlámos melhor a rodagem. Agradeço, por isso, ao aparelho judicial iraniano por não me ter autorizado a filmar nas instalações porque dessa forma pudemos reconstituir melhor esse aparelho. Para se rodar nas instalações públicas e governamentais, é preciso submeter o argumento [à censura]. E várias coisas teriam de ser mudadas, a personagem não poderia dizer isto e aquilo... Para não comprometer o argumento, optei por não rodar ali."

Como um safanão, esta consciência infernal da existência do outro atira o comboio da separação de um casal para uma outra linha. Para depois, no final, regressar ao ponto de partida. Mas já ninguém é como era. Um círculo infernal, começámos por dizer. E ainda nem falámos da filha de Nader e Simin, em cujo olhar se vão espelhando as (nossas?) dúvidas, inquietações perante o que está a acontecer. No final, ela terá de escolher com qual dos pais quer viver. E esta é a parte da história que vai continuar depois do genérico, o espectador já não estará lá. Ainda assim, perguntámos a Asghar Farhadi: qual será a escolha da filha?

- Tenho numa ideia, não tenho a certeza.

- Mas qual seria?

- Não gostaria de o dizer. Toda a gente vai pensar que teria de ser assim. Tenho apenas uma ideia.

- E qual é a sua ideia?

- E qual é a sua?

Ver crítica de filmes pág. 42 segs.

O Ípsilon viajou a convite da Alambique

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