Nelson Pereira dos Santos: "O Cinema Novo não foi uma coisa coesa, foi algo espontâneo"

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O realizador do mítico "Vidas Secas" (1963), filme emblema do Cinema Novo brasileiro, acompanhou nesta cidade, no dia 4 de Dezembro, a antestreia portuguesa do seu mais recente trabalho, o documentário "A Música Segundo Tom Jobim" - que passara já nos festivais de Nova Iorque, Amesterdão e Copenhaga, e chegará às salas brasileiras apenas a 20 de Janeiro. Trata-se de uma viagem de hora e meia ao mundo musical daquele que é um expoente da Bossa Nova, um filme que "é pura música", disse Nelson Pereira dos Santos, a justificar a sua opção por deixar de parte qualquer expediente narrativo exterior às músicas e às canções de Tom Jobim (1927-1994). Que podemos ver e ouvir interpretadas por nomes maiores da cena musical mundial, de Ella Fitzgerald a Elis Regina, de Judy Garland a Frank Sinatra, de Elizete Cardoso a Dizzie Gillespie, de Chico Buarque a Mina, de Milton Nascimento a Diana Krall...

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O realizador do mítico "Vidas Secas" (1963), filme emblema do Cinema Novo brasileiro, acompanhou nesta cidade, no dia 4 de Dezembro, a antestreia portuguesa do seu mais recente trabalho, o documentário "A Música Segundo Tom Jobim" - que passara já nos festivais de Nova Iorque, Amesterdão e Copenhaga, e chegará às salas brasileiras apenas a 20 de Janeiro. Trata-se de uma viagem de hora e meia ao mundo musical daquele que é um expoente da Bossa Nova, um filme que "é pura música", disse Nelson Pereira dos Santos, a justificar a sua opção por deixar de parte qualquer expediente narrativo exterior às músicas e às canções de Tom Jobim (1927-1994). Que podemos ver e ouvir interpretadas por nomes maiores da cena musical mundial, de Ella Fitzgerald a Elis Regina, de Judy Garland a Frank Sinatra, de Elizete Cardoso a Dizzie Gillespie, de Chico Buarque a Mina, de Milton Nascimento a Diana Krall...

Nos dias em que esteve de regresso a Portugal, país que visita com frequência e onde já rodou parte do filme "Casa Grande & Senzala", Nelson Pereira dos Santos teve também oportunidade de se reencontrar com Manoel de Oliveira, que conheceu pela primeira vez em 1956, em Paris. Numa sessão pública realizada em Guimarães, organizada pelos responsáveis pela Capital Europeia da Cultura, os dois realizadores trocaram impressões sobre o estado actual do cinema, e falaram dos novos projectos de ambos. O autor de "Jubiabá", que tem também já pronto um "segundo acto" do seu documentário sobre Tom Jobim, disse ao PÚBLICO que gostaria agora de levar ao ecrã uma biografia de Pedro II (1825-1891), o segundo e último Imperador do Brasil.

Guimarães 2012 anunciou, entretanto, que homenageará Nelson Pereira dos Santos com uma mostra a apresentar no final da Capital Europeia da Cultura.

Apresentou "A Música Segundo Tom Jobim" como "um filme que é pura música". Quando é que decidiu não usar palavras nem qualquer expediente de narração?
Cheguei lá espontaneamente, sem nenhuma planificação. A ideia original era fazer um filme em três actos, em função da temática das canções do Tom Jobim. O primeiro seria a cidade do Rio de Janeiro - ele tem muitas canções exaltando o Rio; o segundo acto, as Mulheres - ele tem muitas canções com nomes femininos; o terceiro seria a Natureza, outro tema muito apreciado por ele. Este projecto nasceu em 2005...

Antes disso, tinha feito já um documentário sobre o Tom Jobim para a televisão.
Sim. Mas isso foi já no século passado [TV Manchete, 1984]. Foi uma encomenda da televisão: quatro episódios de uma hora. Era o Tom Jobim falando sobre a música brasileira, a contar a evolução da música popular, desde o século XIX. Era na casa dele, com o Tom Jobim ao piano, e os seus dois amigos Caymmi, Danilo e Dori, um ao violão e outro na flauta, e recebendo as visitas. Era sobre esse meio da música popular: o Dorival Caymmi, o Chico Buarque, muito amigo do Tom. Agora, para esta nova etapa, trabalhando com a Miucha [Buarque de Holanda, irmã de Chico Buarque e co-argumentista do filme], eu cheguei a fazer o filme das Mulheres, cada uma no seu espaço geográfico e da natureza: é a irmã do Tom, a falar dos primeiros trabalhos dele, depois, a primeira esposa, e a segunda. Uma na praia, outra na montanha e outra no Jardim Botânico, onde o Tom morava - ele dizia que o Jardim Botânico era o quintal da casa dele. Elas as três lembrando os momentos importantes na criação dele.

Qual é o título do filme, e quando é que vai ser distribuído?
Chama-se "À Luz do Tom" e está pronto a sair. Estou à espera que haja condições para a distribuição.

Voltando a "A Música Segundo Tom Jobim"...
Eu tinha feito esse roteiro com a Miucha. Mas, na medida em que começámos a pesquisar o material existente, as gravações nos arquivos, vimos que seria melhor, em vez de vir de fora para entrar no mundo do Tom Jobim, fazer o contrário: trabalhar a partir do que existe registado, e fazer um filme de arquivo.

Quantas horas de gravações visionaram?
Muita coisa. Tentámos fazer um cálculo, mas é muito difícil. Sobre cada uma das canções - "A Garota de Ipanema", por exemplo -, há tanta coisa...

Foi fácil aceder às gravações, nomeadamente nos arquivos americanos.(Nelson Pereira dos Santos faz um gesto com os dedos significando dinheiro). Desde que se pague, tem-se tudo. Isso foi a coisa mais cara do filme. A equipa do filme...

...Pode-se dizer que este foi um filme feito em família.
Sim. A minha e a do Tom: a minha mulher [Ivelise Ferreira] a fazer a produção; a minha filha [Márcia Pereira dos Santos] é a dona da empresa e a produtora executiva; o filho do Tom, Paulo Jobim, tratou da direcção musical, e a neta, Dora, também dirigiu, porque ela tem muito boa memória musical, e isso é importante na edição.

Mas em que momento é que decidiu substituir a narração por "pura música"?
A ideia inicial era pôr o Chico Buarque a dizer duas ou três linhas sobre o capítulo do Rio de Janeiro e também sobre o segundo acto... Mas, a certa altura, isso pareceu-me perfeitamente inútil. A imagem pode dizer mais. O próprio Tom dizia: "A música basta, as palavras só atrapalham". Eu vou ainda inserir no letreiro do filme estas palavras dele. À medida que fui conhecendo o material, cheguei à constatação que não precisava de nenhum momento de narração. Vendo o material do Instituto Tom Jobim, as fotografias, os cartazes, toda essa memória... É possível relembrar a partir de um pedaço de papel, e confiar na combinação daquilo que produzo com a memória do espectador - cada um tem a sua memória a respeito duma canção. Estabelecemos assim que tudo teria de ser contado com a imagem e com a música juntas. O começo é aquele material magnífico dos anos 50 sobre o Rio de Janeiro...

São imagens do seu primeiro filme, "Rio 40 Graus" [1955]?
Não. Mas são dessa época. São imagens do arquivo dum grande produtor de documentários de propaganda, o Jean Manzon [1915-1990]. Eu trabalhei na produtora dele, também. Nós comprámos os direitos. Aquilo regista essa época: aquele avião da Panair... Quem não viveu aquela época, diz: "Puxa! Isto deve ser muito antigo". Quem a viveu, lembra que a Panair acabou nos anos 60... E depois há a primeira canção, "Se todos fossem iguais a você", é a Gal Costa cantando para o Tom. Então eu disse: "Já temos o começo do filme". Achar o final também foi fácil: aquele concerto no Carnegie Hall e o Tom no desfile de Carnaval [da Escola de Samba da Mangueira]. Foram os dois momentos máximos, a apoteose da sua vida. Só nos faltava trabalhar o miolo...

O filme abdica assumidamente de abordar a história pessoal, a vida privada de Tom Jobim, que só aparece no fim, em duas fotografias com os filhos.
Sim, são os filhos do primeiro e do segundo casamento. O resto é só a música.

Por que é que escolheu Tom Jobim para tema do seu filme? Que lugar é que ele ocupa na música brasileira?
No final da segunda guerra, o jazz reapareceu no Brasil com muita intensidade. Impressionou uma juventude de compositores como ele. O Tom criou uma construção musical que combina o jazz com a percussão tradicional brasileira - é o seu toque, a Bossa Nova. Ele viajou e instalou-se nos Estados Unidos e ficou superconhecido lá. Uma das vezes em que eu fui aos Estados Unidos, ouvi a música do Tom no rádio do táxi, e aí comentei para o motorista: "Brasilien music!". E ele respondeu, um pouco mal-encarado: "This is not brasilien music, this is bossa nova!". Na vida artística, o princípio da nação é importante. Mas a arte tem também outra dimensão, universal, que supera as divisas. Especialmente na música: ninguém pergunta a nacionalidade de um saxofonista...

A certa altura, no filme, faz um paralelismo entre a música de Tom Jobim e a construção de Brasília, com a arquitectura de Oscar Niemeyer. Há uma relação entre a música e o modernismo, movimento que depois se estende também ao cinema brasileiro?
São movimentos paralelos, que aconteceram espontaneamente. Talvez uma vontade de modernizar o país, na saída da Segunda Guerra e no fim duma ditadura que durou vinte anos. Havia aquela perspectiva optimista, querer que tudo fosse novo, uma predisposição para produzir em todas as áreas peças que pudessem abrir caminho para o novo. No fundo, foi um movimento social que exigiu a criação cultural noutro sentido, não na perpetuação das mesmas formas... É curioso ver que o cinema foi o último a livrar-se do mimetismo tradicional. A literatura já se tinha livrado nos anos 20, como a arte moderna, e a música erudita também. A música popular seguiu o seu ritmo, sempre com a assimilação de todas as influências que formaram o povo brasileiro, da África, da Europa, mesmo do índio... Essa coisa toda que resultou na música brasileira. Enquanto no cinema, continuava-se num absurdo mimetismo. Por exemplo, montou-se uma grande companhia de cinema em S. Paulo [a Vera Cruz], com todo o melhor equipamento do mundo: contratou-se montadores na Suécia, fotógrafos na Indonésia, técnicos na Itália, para fazer cinema como se o filme fosse alguma coisa não cultural. Fazer um produto que não revelava o Brasil, nem para os brasileiros. Com algumas excepções. E sempre sem directores brasileiros. "O Cangaceiro" [Lima Barreto, 1953] é o primeiro filme dirigido por um brasileiro nessa companhia. Os directores normalmente eram italianos.

É normalmente considerado "o pai" do Cinema Novo brasileiro. Assume essa responsabilidade?
O que aconteceu é que eu tinha uma formação muito ligada à vida literária. Eu fui estudar cinema para Paris, mas o navio demorou tanto que quando eu cheguei lá, perdi a matrícula (risos). Comecei então a fazer cinema sob a influência do neo-realismo.

Apesar de ter ficado a viver algum tempo em Paris, na altura em que começava a despontar a geração dos "Cahiers du Cinéma"...
Primeiro, foi o neo-realismo italiano. Depois é que chegou a geração do Godard. O neo-realismo deu-nos uma grande lição de produção: filmar onde a gente puder, filmar na rua... Naquele cinema mimético que tínhamos no Brasil, o actor negro não existia - é como se não existisse o negro na nossa sociedade. Então cortavam o cabelo, colocavam lentes artificiais para porem os olhos azuis. Era esse cinema fechado que faziam. E com uma pretensão única: todo o filme da Vera Cruz apresentava um trilho de abertura assim: "Do planalto paulista para as telas do mundo!". Como se bastasse essa frase para fazer com que o cinema feito em S. Paulo fosse circular em todo o mundo. Surgiu, então, essa ideia de ter o cinema também inserido na nossa produção cultural, como já acontecia com a música, com a pintura. Todo o modernismo se instalou. Mas o cinema não tinha conhecido o modernismo nos anos 50. Aí surgiu essa ideia do neo-realismo, que mostrava que era possível filmar mesmo fora do estúdio, com poucos recursos técnicos. É por isso que o neo-realismo influenciou o cinema na Índia, por exemplo: o Satyajit Ray não teria existido se não fosse o neo-realismo. Isso foi a grande influência.

Diz-se que o Cinema Novo brasileiro se antecipou, de certo modo, aos movimentos congéneres de vários países europeus, como os de França e de Portugal, por exemplo.
Foi uma sensação de libertação... É curioso que o Cinema Novo não foi uma coisa coesa, um grupo de jovens com as mesmas ideias, não. Foi algo espontâneo. Para dizer a verdade, a expressão "Cinema Novo" foi devida a nós, jovens, que visávamos a realização de cinema, e queríamos também fazer uma revista. Era mais fácil, pensávamos, fazer uma revista, chamada "Cinema Novo", onde registávamos as nossas visões, as nossas utopias. Escolhemos o nome imitando o de uma revista italiana, de um grande crítico de que não lembro o nome. Mas, entretanto, começámos a fazer os filmes. Eu já tinha feito cinco. E o Glauber [Rocha], o [Leon] Hirszman, o Joaquim Pedro [de Andrade], o Carlos Diegues, todos arranjaram condições para fazer filmes. Então esquecemos a revista. Esse é o grupo do Cinema Novo, da revista que não chegou a existir, e é mais a isto que se deve a expressão de Cinema Novo.

Há uma característica que atravessa a sua obra, que é o trabalho sobre a literatura, a adaptação de obras literárias, logo desde "Vidas Secas", a partir de Graciliano Ramos. Foi essa a razão que justificou a sua entrada na Academia Brasileira de Letras, em 2006?
É verdade. Acho que sim.

Porque decidiu recorrer à literatura, que é um expediente diferente do que aconteceu com as gerações do Cinema Novo?
Foi espontaneamente. O meu primeiro filme, "Rio 40 Graus", foi feito com roteiro original meu. Com o passar do tempo, vejo no filme a influência da literatura do Jorge Amado, que estava fazendo a minha cabeça: as crianças pobres que vão para a cidade e têm essas aventuras... "Jubiabá", "Capitães da Areia", esses romances têm essa característica, esses elementos que me influenciaram para fazer uma coisa parecida. Isso surgiu de uma maneira muito espontânea. E eu conhecia esse mundo, as favelas... Mas, na hora de criar, o meu modelo era o Jorge Amado. A primeira adaptação que fiz foi o Nelson Rodrigues, "Boca de Ouro" [1962]. Antes dele, e antes mesmo do "Rio 40 Graus", eu tinha tentado fazer "Vidas Secas". Mas choveu, e eu perdi todas as condições. Inventei então o "Mandacarau Vermelho" [1961]. E quando voltei para o Rio, fui contratado para fazer "Boca de Ouro". De seguida, voltei ao projecto de fazer "Vidas Secas", desta vez no lugar certo, no sertão. Consegui fazer o filme.

Foi difícil a preparação desse filme?
Lembrei-me de fazer o filme quando fiz um documentário na Bahia, numa época em que estava acontecendo aquela terrível tragédia da seca. Eu vi os nordestinos famintos, as crianças famélicas comendo farinha. Então, comecei a escrever o roteiro. Eu tinha a cabeça de jovem jornalista a querer fazer reportagem. Mas era uma reportagem superficial. Eu não compreendia, não tinha informação, não tinha vivido o interior daquele fenómeno social da seca e das suas consequências. Faltava-me uma ligação mais íntima com aquela matéria. E também das causas permanentes, de haver gente tão pobre e gente tão rica naquele espaço. Entre os livros que lia e que consultava para fazer o roteiro, eu tinha o "Vidas Secas", do Graciliano Ramos. Então vi que estava lá tudo. Isso deu certo, e fiquei mais confiante.

Tenho de contar uma história. Eu era ainda assistente de direcção, estávamos filmando no interior de S. Paulo, e o director de fotografia, Rui Santos, era muito amigo do Graciliano Ramos. Então ele me propôs: "Você não quer fazer uma adaptação do ‘S. Bernardo' [romance de 1934]"?. Muito bem. Eu filmava de dia e, de noite, botava no quarto a escrever essa adaptação. Quando estava na metade da história de S. Bernardo - era sobre um fazendeiro poderoso, mas ao mesmo tempo um homem terrível, grande explorador da força de trabalho das pessoas, e também um bandido, que na juventude assaltava, apropriava-se do que não era dele. Um dia resolveu casar com a professora que contratara. No meio da história, que se passa em 1930, perante esse homem muito duro e severo, ela se mata.

Eu fiz o roteiro, mas fiquei com pena: matar logo a personagem feminina, uma professora, que tinha o sonho de mudar o mundo... Aí falei para o fotógrafo, pedindo-lhe para conversar com o Graciliano. E ele me respondeu, de um modo seco e severo. "Você pode fazer o que quiser, mas não bota o meu nome nisso. Você quer saber porquê essa mulher se mata? É a morte dela que vai causar no marido a reflexão sobre a situação dele e da sociedade, que provocou a reestruturação mental daquele personagem. A morte dela foi também fundamental para eu escrever o livro. E também, se não fosse aquele suicídio, você não ia ler o livro, nem ter vontade de fazer o filme". E era verdade. Então aprendi que podia mexer no livro, mas tinha que manter-me fiel. Se eu pegar num livro, não posso contradizer as ideias básicas, a filosofia. Ou, então, não faço o filme.

Não teve problemas com os escritores que adaptou, ao longo da sua carreira?
Há só um caso em que fiz alterações. Foi "Fome de Amor" [1968, baseado no romance de Guilherme Figueiredo, "História para se Ouvir de Noite"]. A história era muito diferente. Mas eu fui contratado como director e, na produção, disseram-me "faça o que você quiser". Então não fiz roteiro, fiz a experiência de escrever directamente com a câmara.

Na última década, tem trabalhado principalmente em documentários. É por ser mais fácil de produzir?
A produção é bem mais tranquila. Os meios são bem mais modestos do que uma produção de longa-metragem e de ficção. Por exemplo, a adaptação de "Casa Grande & Senzala" [2000, série televisiva a partir do livro de Gilberto Freyre, de 1933] foi muito complicada. O livro é um monumento, tem combinações de temas sociais, história e ficção também. A minha ideia era fazer uma tradução do texto literário para um texto também visual e sonoro. Para facilitar a leitura do livro a pessoas que não têm capacidade ou formação. Foi essa a minha ideia, trabalhar nesse sentido. Era também, de certa forma, um documentário.

Por que é que decidiu estrear "A Música Segundo Tom Jobim" no estrangeiro, antes de chegar às salas brasileiras?
Porque o filme foi convidado, primeiro, para o Festival de Nova Iorque, e depois para os de Copenhaga e de Amesterdão: e agora aqui na Feira - eu nem sabia que o festival tinha longas-metragens, pensei que era só de curtas... Em Janeiro [dia 20] estreia finalmente no Brasil, no Rio e em S. Paulo.

Como vê a situação actual do cinema brasileiro, e do próprio cinema em geral, num tempo de novas tecnologias, em que se diz mesmo que o cinema acabou?
Estive um dia destes com o Manoel de Oliveira [no dia 2 de Dezembro, em Guimarães, numa sessão pública a convite da Capital Europeia da Cultura], e ele também tem a mesmo opinião: as novas tecnologias facilitaram enormemente o nosso trabalho. São muito bem-vindas. O importante é a linguagem, e não é a tecnologia que faz a linguagem. Ela mantém-se, a outro nível. A tecnologia facilita a aplicação das nossas ideias... Estamos a viver apenas uma passagem.

E o cinema brasileiro?
O cinema brasileiro ressurgiu agora. Em 1990, com o Presidente Collor [de Mello], essa figura que era como um "cangaceiro", fechou tudo. Ele acabou com o cinema, acabou com o Ministério da Cultura. Mas foram feitas, entretanto, duas leis importantes, que apoiam a cultura e dão incentivos fiscais, facilitam a obtenção de recursos para fazer filmes, publicar um livro, etc... O Brasil é muito grande, tem muita gente aqui e ali, vários focos culturais, que não são antagónicos. Temos todos as mesmas bases culturais e históricas, o mesmo sentido da criação. O que aconteceu, eu comparo com as margens do rio de São Francisco, nos Estados Unidos. Você tem aí o deserto puro, a catinga. Mas os italianos e os franceses foram lá e começaram a irrigar essa base enorme do rio, e hoje tem a produção de uva, de fruta... É só um pouco de água. O cinema no Brasil, e evidentemente toda a manifestação de criação artística, também precisa de um pouco de água, e então ressurge com muita força.
Hoje, o cinema brasileiro é feito em vários espaços do país. No Nordeste, o cinema de Pernambuco é o mais ousado, o mais agressivo tematicamente. O cinema do Rio e de S. Paulo é outra coisa. A produção brasileira chegou, no ano passado, a quase cem filmes. E há também muitas escolas de cinema. Dantes, havia só a Escola de Paris, ou a dos Estados Unidos. Eu fundei duas escolas de cinema, uma em Brasília e outra em Niterói, no Estado do Rio de Janeiro. Depois apareceram outras, tanto da área pública como da privada. Então há uma participação renovada, com muita juventude. Isso do ponto de vista da criação. Mas, do ponto de vista da distribuição, esse é um problema. É a mesma coisa que vivemos nos anos 30 e nos anos 50. O Rio tem mais de duas mil salas, mas a distribuição é, na maioria, americana. E na televisão, os canais abertos têm 1500 filmes por ano, mas a maioria, quase a totalidade, é filme importado.

O que conhece do cinema português?
Conheço, claro, o cinema do Manoel [de Oliveira], que o mundo inteiro conhece. Lá no Brasil, toda a sua obra é exibida comercialmente. Lembro-me de filmes que vi na Cinemateca, do Paulo Rocha, do meu amigo José Fonseca e Costa, que é quase da minha idade e que eu admiro muito. E também do João Botelho. Os mais novos, não acompanho.

Desde quando conhece Manoel de Oliveira?
Conheci-o em 1956, em Paris, no primeiro Encontro Internacional de Cineastas. Eu estava lá com o meu primeiro filme, "Rio 40 Graus". Depois encontrei-o no Festival de Cannes, a última vez foi no centenário do cinema [1995]. Ele é muito querido no Brasil, foi homenageado no ano passado no Festival de S. Paulo.

Qual é o seu próximo projecto?
Já tenho o roteiro pronto. É a adaptação de um livro de história - não é um romance ­- sobre D. Pedro II, o nosso imperador. Falta-me agora conseguir os recursos.