"Quem me lançou foi o Pai Natal"

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Foi pastor de rebanhos de cabras e ovelhas, marçano de mercearia, paquete de hotel, polícia marítimo, guarda-costas, boxeur, mas também já foi conde, comandante da Marinha, cliente de cabaret, cowboy, diabo, "o homem mais forte do mundo", pirata... ah, e é "o rei dos pais natais".

Cipriano Antunes, 64 anos, gosta de estar sempre preparado para qualquer trabalho de figuração que possa aparecer. Mantém-se em forma, fazendo musculação, body combat, luta corpo a corpo e natação. Afinal, foi o seu físico que conquistou o primeiro trabalho como figurante, em 2005. "Vinha na Baixa [de Lisboa] com manga cava e ar de cowboy e pararam-me na rua, tinha perfil para um anúncio da Vodafone. Fui ao casting e fiquei como cowboy."

Desde então, foram muitos os trabalhos que fez na categoria que poderíamos chamar "homem forte e espadaúdo". Vejamos: foi "o homem mais forte do mundo" num videoclip de Rui Reininho, diz que está no YouTube a levantar pesos e dobrar ferros, pondo a render o curso de Fuzileiros Especiais, a sua carreira na Marinha e os seus 15 anos de pugilista; também foi lenhador na série juvenil Floribella (SIC), xerife na novela Rosa Fogo (SIC), "pirata dos piratas do KFC [uma cadeia de fast-food]" e recentemente foi "ao casting para [fazer de] Zeus".

Mas é num papel mais terno que mais tem singrado. Não é a sua forma física, mas as suas barbas que lhe asseguram a maior regularidade de papéis, embora sazonais. "Quem me lançou foi o Pai Natal." Já o foi para o Intermarché, ZON, SIC, Câmara Municipal de Cascais, El Corte Inglés, Continente. "Sou o rei dos pais natais."

É por isso que tudo o que tem a ver com as suas longas barbas brancas não é deixado ao acaso e é como se de cultivo se tratasse. Passado o Natal, apara-as em Janeiro. "É a única altura em que tiro férias das barbas. Fico só com a pêra para poder fazer outros trabalhos"; por volta de Março, deixa de as cortar, lava-as todos os dias, aplicando-lhes "creme de branquear e champô para dar brilho". Ao mesmo tempo, toma "complexo B e castanha da Índia, para fortalecimento". "Pode puxar, parece palha de aço." Confirma-se. O inconveniente de ter "a barba tão perfeita é que pode parecer artificial".

Dos tempos de "ho-ho-ho" recorda um pedido sentido de uma das crianças que se lhe sentou na perna esquerda. "Pediu-me para o pai voltar para casa "porque a gente não tem dinheiro para comer"." Perante este pedido, não podia só alimentar a ilusão e responder o que sempre responde, "vou tentar", com a mesma atitude de quem ouve o desejo de mais um brinquedo. "Cheguei ao senhor [ao pai] e disse que lhe queria dar uma palavrinha." Em traços largos, contou-lhe que o filho não tinha pedido uma prenda, que o tinha pedido a ele. "O pai ficou emocionado, foi abraçar a mãe e saíram os três do shopping."

Desde muito pequeno, com cinco anos, Cipriano Antunes começou a pastorear cabras e ovelhas na sua aldeia natal, Cernache do Bonjardim, numa família de 11 filhos em que "havia tanta fome" que o pai um dia decidiu andar pela aldeia "a pedir para a santa, a Senhora das Neves", fingindo que era ele o organizador da festa religiosa desse ano. Conseguiu angariar chouriços, presuntos. "Comemo-los todos." Em resultado, o pai passou seis meses na cadeia por burla e a família ficou banida pelo padre de ir à Missa do Galo, uma interdição que foi levantada "só depois do 25 de Abril". Agora sabe que a pena foi injusta, era o que Código Penal chamaria "estado de necessidade".

Aos sete anos, fugiu para Lisboa; aos 11 nos, foi marçano de mercearia; aos 13, era paquete do Hotel Avenida Palace, entrou com 16 anos para a Marinha, saiu aos 62 anos. Com a figuração, preencheu "o vazio" que lhe ficou com a reforma. Saiu da "família naval" por limite de idade e ficou "como se estivesse abandonado, como se estivesse perdido no meio da Amazónia". É com orgulho que mostra uma imagem na revista da Armada onde se escreve foi ele o último a içar a bandeira portuguesa em Angola. O mundo da figuração "é uma forma de provar aos meus amigos que estou vivo e vivo com intensidade". E "qualquer homem normal gosta de aparecer na comunicação social". a

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