Os labirintos da memória

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“Muriel, ou o Tempo de um Regresso” (1963) é a obra-prima desta primeira fase

Em busca da unidade perdida do nosso recente inconsciente colectivo

Muriel, ou o Tempo de um Regresso
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Sem Extras????


A Guerra Acabou
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Clap Filmes

Começando embora por uma série de documentários artísticos ("Visite à Oscar Dominguez", de 1947, "Van Gogh", de 1948, ou "Gauguin", de 1950, entre outros, sobre Hartung, Picasso ou Goya) e por curtas-metragens de diferentes incidências, podemos afirmar que o mais relevante da primeira fase da extensa obra de Alain Resnais aparece sinalizada pela preponderância da exploração dos labirintos da memória, como mero rito de passagem ou como pesadelo recorrente: "Noite e Nevoeiro" (1955) revisita a memória dos campos de concentração, num dos mais terríficos, "abstractos" e obcecantes olhares sobre o Holocausto; "Toute la Mémoire du Monde" (1956) instrumentaliza a biblioteca enquanto depósito de um saber estruturado; "Hiroshima, Meu Amor" (1959), a primeira longa, com a colaboração de Marguerite Duras, vai mais longe, ao expor as feridas abertas do terror nuclear, à distância ("Não viste nada em Hiroshima..."); "O Último Ano em Marienbad" (1961) elabora um exercício complexo em que passado e presente se misturam, num jogo de imprevisíveis consequências, que dilui o tempo.

Os filmes que a Clap Filmes agora edita, em excelentes cópias, tanto de imagem como de som, embora sem extras, o que, no caso vertente, se revela um desperdício (vai sendo tempo de estudar o cineasta francês em profundidade, desvendando ligações e estabelecendo elos significativos), prosseguem neste caminho de fragmentação da mente, em busca da unidade perdida do nosso recente inconsciente colectivo.

"Muriel, ou o Tempo de um Regresso" (1963), que revisto agora avulta, porventura, como a obra-prima desta primeira fase, estrutura duas realidades históricas convergentes: dois antigos amantes (Delphine Seyrig e Jean-Pierre Kérien) recordam os tempos da Grande Guerra numa cidade marítima do Norte da França (Boulogne sur-Mer, mostrando ainda as cicatrizes de um conflito mal sanado), e tentam um regresso impossível a amores interrompidos; o enteado dela, ainda assombrado pelas memórias dos bombardeamentos, quando criança, junta-lhes os seus fantasmas recentes da Guerra da Argélia, das atrocidades que envolvem uma jovem, Muriel, torturada pelos soldados, cuja morte se recusa a admitir, presentificando-a numa noiva imaginária e ausente.

A velocidade da montagem, sobrepondo planos curtos e fracturados num "puzzle"de desconjuntados fragmentos, obriga-nos a um esforço de reconstrução, de tal modo abre para uma pluralidade de personagens e situações: a inclusão de um filme no filme, arremedo de "home movie", rodado em cores saturadas, que contrastam com a contrastada cor dominante, figura a memória da Argélia como pesadelo constante e horrífico "paraíso perdido". A banda de som actua com autonomia, desde os risos registados no gravador, até à obsidiante recorrência da música fantasmática de Hans Werner Henze, vocalizada pela soprano Rita Streich, intervindo nos momentos mais oníricos de um filme, sempre nas margens de um sonho difuso e ritual, passando pela voz melíflua e quebrada da Seyrig, numa ária eternamente interrupta. Os reencontros e desencontros amorosos apostam na presença de jantares, festas, despedidas pungentes, passagens por um casino (ainda o jogo como motivo e como metáfora da vida, a lembrar "Marienbad"), também ele mais ilusório do que real. Aliás, o real em "Muriel" aparece sempre filtrado pelo mecanismo da decomposição da narrativa, numa amnésia geométrica a realçar a omnipresença das incontornáveis memórias, anunciando já as viagens pelo esquecimento compulsivo de "Je t'Aime, Je t'Aime" (1968) ou a escrita como metanarrativa de "Providence" (1977). Uma questão grave ensombra a edição, uma legendagem inacreditável com múltiplos erros: província passa a "cá na Provença", região do Sul da França, nos antípodas de Boulogne; "no fim do mundo" traduz-se por "com o mundo às costas"; "coups de gueule" (ou seja gritos) surge como "Guerra do Golfo", o que demonstra o mais extraordinário dos contrasensos cronológicos. E acreditem que estamos apenas a exemplificar.

"A Guerra Acabou" (1966) pode não possuir idêntica relevância, mas configura curiosas rimas internas, na medida em que o argumento de Jorge Semprún se socorre das reminiscências da Guerra Civil Espanhola e dos malefícios do franquismo para discorrer sobre a resistência e a clandestinidade no presente narrativo dos anos 60. Existem também fracturas e saltos narrativos, mas as personagens são menos complexas, menos torturadas, conduzidas pelo instinto de subversão de um regime institucionalizado por uma guerra que acabou há 30 anos. Esta dimensão política "transparente" não elide porém os estigmas de uma memória não pacificada, porque gravada no exílio e na instabilidade individual e colectiva. E, se a crise ideológica parece resolver-se na perfeição de um "thriller" político, a mesma angústia inominável prevalece no protagonista (magnífico Yves Montand) e na labiríntica "via-sacra" mental, que percorre, tudo num preto-e-branco assombrado e fantasmático. Sim, "ler" o Resnais de hoje exige esta revisita dupla, até para entendermos a sua progressão e o seu uso do aleatório como estratégia.

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