Ornatos Violeta: morte por amizade

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O desastre começou a anunciar-se quando, de forma tragicamente romântica, decidiram viver juntos na mesma casa

Esta não é uma história do rock como as outras. Os Ornatos Violeta, cuja quase totalidade da obra acaba de ser lançada numa caixa, pararam em nome da amizade. Mário Barreiros e Nelson Carvalho, seus produtores, ajudam-nos a recordar a banda

Se procurarmos com afinco em qualquer compêndio de histórias marcantes no imaginário do rock, é quase certo que qualquer referência a uma garrafa de champanhe deve acabar com a mesma arremessada contra a cabeça de alguém, e o espumante francês a misturar-se alegremente com sangue a escorrer em barda. No caso atípico dos Ornatos Violeta, a tensão crescente entre os cinco e o despertar para a evidência de que era impossível continuarem a viver juntos e a partilhar um projecto comum foi acompanhado pelo som não de um tabefe rancoroso de vários meses mas sim pelo de uma rolha a voar para o tecto. Manel Cruz, Peixe, Elísio Donas, Nuno Prata e Kinorm abriam uma garrafa de champanhe e suspiravam de alívio. De repente, tudo era simples: acabavam-se as editoras, as discussões sobre autorias, a pressão mediática, uma chusma de gente a segredar-lhes o que deviam, o que podiam ou não fazer, rádios a querer escolher-lhes os singles. Sobrava a única coisa que lhes interessava e com que tinham começado: a amizade.

O desastre tinha começado a anunciar-se quando, de forma tragicamente romântica, decidiram viver juntos na mesma casa. Tudo se complicou quando a criatividade colectiva saiu da casa de banho e deu de caras com a partilha de hábitos diários e com o desfile de defeitos e incompatibilidades em tronco nu e toalha turca enrolada à cintura. Deixara de haver onde esconder os conflitos, estava tudo à vista e não dava para fechar a porta e esquecer que os problemas tinham ficado estacionados na sala à espera de nova oportunidade para estalar. Quando o primeiro deixou descer à boca aquilo que passava pela cabeça de todos - "Bora acabar?" -, tudo se resolveu a voltaram a entender-se. Os dois filhos que haviam deixado ao mundo, "Cão!" e "O Monstro Precisa de Amigos", não precisavam já de custódia partilhada; o terceiro, sonhado ainda em conjunto, foi pacificamente abortado.

O ano era o de 2002, "Monte Elvis" era uma miragem - um monte por onde passavam de carro e só com muito cansaço e muita moca se conseguia ver Elvis Presley, diziam - que ainda não tinha forma definida e, ironicamente, o fim representava um notável tiro na culatra dirigido contra o administrador holandês da Universal, editora que contratara os Ornatos. Rudi Steenhuisen vaticinara que o grupo chegara ao ponto em que ou começavam a fazer televisões, playbacks, ganhavam dinheiro e explodiam para lá do seu culto, ou acabavam. Teve razão. Ainda que de forma totalmente enviesada. O público tornara-se, igualmente e de forma mais perversa, castigador. Se era, por um lado, a razão de ser da banda, por outro exigia coisas como ouvir canções como "Punk Moda Funk" e "Ouvi Dizer" que Manel Cruz já não tinha paciência para repetir em palco. As actuações em festas académicas também desgastaram o vocalista, que juraria não voltar a entrar nesses circuitos que implicavam tocar às quatro da manhã para gente demasiado alcoolizada para dar pela diferença entre Ornatos Violeta, Quim Barreiros ou uma sessão de karaoke. No meio disto, como era evidente, a música ficara semi-esquecida a um canto.

Daí que Manel Cruz se tenha voltado para bandas que nunca se prolongavam muito tempo - os Pluto gravaram um único disco, os Supernada fizeram jus ao nome e nem isso deixaram - e nenhum dos outros elementos se dedicou continuadamente a um projecto que fizesse sombra à banda onde se tinham feito músicos. A excepção tem sido a carreira a solo de Nuno Prata. Mesmo quando saiu da toca para tocar o álbum caseiro do projecto Foge Foge Bandido, Cruz apurou a fórmula até ao ponto em que, muito provavelmente, só lhe restará acabar o grupo.

Vida de estúdio

Mário Barreiros, produtor dos dois álbuns dos Ornatos, não se lembra de detectar quaisquer tensões anormais no grupo: "Eles eram muito próximos, muito amigos desde os 15 anos, da Escola Soares dos Reis". Aliás, na altura em que se formaram, em 1991, adoptaram a designação Suores dos Reis, até ao dia em que Kinorm, ao folhear um dicionário, teve um amor à primeira vista com a palavra "ornato". Durante as gravações de "O Monstro Precisa de Amigos", Barreiros lembra-se apenas de identificar "aquela insatisfação permanente dos grandes artistas e que, normalmente, tem a ver com a arte em si e uma forma de a fazer chegar mais longe". Tanto assim que, terminado "Cão!" (1998), Barreiros não teve dúvidas de que aquela gente não estava votada ao anonimato. De resto, reconhecendo dois discos igualmente "fortes de intensidade e de intenção", o produtor revela preferência pelo álbum de estreia, cativado pela "frescura e pela ingenuidade quase adolescente".

Nas gravações de "Monstro", havia de participar igualmente Nelson Carvalho, que auxiliou Barreiros nas gravações e nas misturas. Após um encontro com Peixe no antigo Via Rápida, Carvalho passa a ser igualmente o técnico de som nos concertos do grupo. E é ele quem, a meias com Mário Pereira, regista as últimas gravações dos Ornatos, pensadas como avistamento do tal "Monte Elvis". "Éramos todos muito novos", recorda. "Eles viveram aquilo tudo muito intensamente, moravam juntos e várias coisas levaram a algum cansaço. Sei que o Manel tem uma procura constante por coisas que o estimulam e não me parece que os Ornatos o fossem estimular muito mais tempo. Por outro lado, havia a autoria das músicas e ia ser difícil interpretar as músicas dos outros como faria com as dele".

"Monte Elvis", diz, não foi além da vontade de encontrar um novo caminho, embora reconheça que no lugar de "Pára-me Agora" - o tema revelado na caixa agora lançada, que "não é mau exemplo" do que estava a ser alinhavado - poderia encontrar-se um outro par de temas em semelhante estado de acabamento. "Havia uma coisa mais visceral", por comparação a "Monstro", diz-nos. Quanto à influência deixada pelo grupo, Carvalho gosta de lembrar o simbolismo de, numa mesma noite de queima das fitas, ter visto Da Weasel e Clã tocarem versões do grupo. Algo que aconteceu também com os brasileiros A Banda Mais Bonita da Cidade, há uma semana, no Mexefest, quando tocaram "Capitão Romance". Mas convenhamos que não há banda mais bonita do que aquela que se mata para preservar a amizade.

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