Torne-se perito

Burocracia condena crianças dos PALOP que vêm tratar cancro

Foto
Guiné-Bissau é um dos países que beneficia do acordo de cooperação NUNO FERREIRA SANTOS

Médico Gentil Martins já escreveu a ministros e embaixadores, alertando para a necessidade de ultrapassar procedimentos, de modo a que os doentes não cheguem a Portugal já em fase terminal e quando o tratamento é, em muitos casos, inútil

Era guineense, tinha dois anos e um cancro nos olhos (retinoblastoma). Já nada havia a fazer quando chegou a Portugal. Morreu pouco tempo depois, no Instituto Português de Oncologia (IPO), em Lisboa. Lá morreram também um rapaz de 14 anos, da Guiné-Bissau, com cancro nos ossos (osteo-sarcoma do fémur) apenas dez dias depois de ter chegado a Portugal, já com metástases pulmonares. E uma menina de quatro anos, recém-chegada de S. Tomé e Príncipe com um cancro de pele (melanoma). O que começou com um pequeno sinal evoluiu para um tumor quase do tamanho de uma laranja a sair da órbita. Quando chegaram a Portugal, a doença já estava num estado muito avançado. Morreram todos. Mas poderiam ter sobrevivido se tivessem começado a ser tratados há mais tempo.

Estas foram algumas das muitas crianças com cancro provenientes dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) que foram transferidas este ano para Portugal, ao abrigo de acordos de cooperação no domínio da Saúde. Mas vieram já em fase terminal. "São apenas os doentes mais recentes, e a lista é, infelizmente, quase interminável", alerta o médico António Gentil Martins numa carta enviada há dois meses ao ministro dos Negócios Estrangeiros, ao secretário de Estado da Saúde e aos embaixadores daqueles países africanos.

Gentil Martins diz que "é demasiado frequente os doentes chegarem (inutilmente) para tratamento em fase final da sua vida, ou quando a terapêutica já só pode ser desnecessariamente agressiva ou até, eventualmente, ineficaz". Na carta, o médico aponta os "problemas burocráticos" como causa principal desta situação que "urge ultrapassar". Reconhece que "apesar das dificuldades" existentes em muitos dos PALOP, "o diagnóstico é muitas vezes feito correctamente e a tempo e horas". O problema, afirma, é o tempo que passa entre o diagnóstico e a transferência para os hospitais portugueses", afirma, salientando que "não se pode "fazer de conta" que o problema não existe, pois gasta-se dinheiro inutilmente e, pior do que isso, prejudicam-se gravemente os doentes, negando-lhes a possibilidade de cura".

No Centro de Lisboa do Instituto Português de Oncologia Francisco Gentil (IPOFG) é recebida uma média de 20 crianças por ano provenientes, sobretudo, de Cabo Verde, seguindo-se as que vêm da Guiné-Bissau e de São Tomé e Príncipe. Mais raramente vêm de Angola ou de Moçambique. Apresentam, sobretudo, tumores sólidos como tumores cerebrais, dos olhos, dos ossos, dos músculos, do sistema nervoso, dos rins ou do fígado. Habitualmente estão já em estado muito avançado. A maior parte destas crianças "morre", segundo Gentil Martins, ou tem tratamentos "mais complexos e mais sequelas", devido às terapias mais agressivas pelo avançado estado da doença. Na sua opinião, o problema da demora na intervenção junto desses doentes deve-se "fundamentalmente nos países de origem, a uma excessiva e contraproducente burocracia".

980 doentes num ano

O problema não pode ser resumido apenas a esta perspectiva, segundo Carlos Queta Baldé , primeiro-secretário da Embaixada da Guiné-Bissau em Lisboa, o país africano de onde vêm mais doentes para tratamento em Portugal, segundo dados da Direcção-Geral da Saúde (DGS). Na Guiné, os casos considerados de maior urgência podem seguir directamente para as urgências dos hospitais portugueses que, segundo o acordo assinado pelos dois países, pode receber anualmente até 300 doentes. Os menos urgentes são enviados para uma junta médica e os processos seguem para a Embaixada em Portugal, explica Carlos Baldé. Depois são enviados para a Direcção-Geral da Saúde e aí "começa a burocracia", afirma.

Os casos são encaminhados para os vários hospitais para a marcação das consultas. A data é depois comunicada à embaixada, que informa o Ministério da Saúde na Guiné-Bissau. O doente tem depois de solicitar o visto de entrada em Portugal ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Por vezes sucede que a marcação da consulta é feita num prazo inferior ao da concessão do visto, os doentes perdem a vez e têm de aguardar nova marcação, o que ainda atrasa mais todo o processo, esclarece Baldé.

Desde Janeiro até ao final de Novembro, existiam 459 pedidos de consultas da parte de doentes guineenses. Só 93 obtiveram resposta, afirma Carlos Baldé. "Não sei quantas chamadas de doentes aflitos recebo por dia a pedir consultas."

"Os doentes evacuados têm os mesmos direitos e deveres que os doentes nacionais", nomeadamente no que respeita ao acesso e aos prazos de "marcação de consultas, tempos de espera para cirurgia, etc.", justifica o responsável da Mobilidade de Doentes da Direcção-Geral da Saúde (DGS), Cláudio Correia.

No ano passado foram transferidos 980 doentes dos PALOP para Portugal, a maior parte da Guiné-Bissau, segundo os dados da DGS. Os "processos de evacuação urgentes" foram respondidos em "24 horas a 48 horas" e o "tempo médio de resposta" nos casos de "evacuação para acesso a cuidados de saúde programados (marcação de consultas da especialidade, etc.)" foi de "uma semana", referem os números disponíveis.

Sugerir correcção