Os erros e convicções de um político profissional

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Soares, preso pela PIDE a 15 de Fevereiro de 1949 fotografias/mário soares um político assume-se/círculo de leitores

Há as mil histórias de Mário Soares que todos conhecem. E há agora, com um "modesto ensaio" seu, lançado hoje no CCB, em Lisboa, mais mil que estavam por contar. Sobre Cunhal, que surge como um homem vaidoso, frio e que amuava. Sobre Otelo, que quebrou aos gritos negociações de cessar-fogo. Sobre Palma Carlos, que se embebedou e disse o que não devia. Um dos políticos mais marcantes do Portugal contemporâneo assume-se.

Mário Soares gosta de polémicas, percebe-se bem quando chegamos ao fim de Um Político Assume-se, o seu novo ensaio, lançado hoje em Lisboa. E tem muitas para contar.

Algures, já no fim das quase 550 páginas, o ex-Presidente socialista comenta com estranheza o facto de um livro com entrevistas suas, publicado há 15 anos, não ter suscitado "qualquer polémica" na altura, ninguém se indignou.

E fica a pergunta: este novo livro, frontal e crítico, cómico e incómodo, vai criar polémica?

"Não são memórias", diz o autor na primeira linha. É "um modesto ensaio autobiográfico", "apenas um itinerário ideológico". Tratando-se de Mário Soares, este "modesto ensaio" é um balanço de 80 anos da vida política de Portugal - a sua memória política mais recuada (e ao som de tiros de canhão) leva-nos para a frustrada revolução de 26 de Agosto de 1936, na qual o seu pai participou, tinha Soares sete anos.

Independentemente do género literário, chegado ao fim da leitura deste "assumir político", o leitor percorreu a ritmo acelerado quase um século de história, alguns episódios novos, talvez polémicos. O leitor comunista lerá um retrato muito crítico de Álvaro Cunhal; o leitor do PSD lerá críticas incómodas sobre Sá Carneiro, Cavaco Silva e "alguns deputados provincianos"; o leitor fã de Ramalho Eanes lerá acusações ferozes; o leitorfã de Sócrates não encontrará mais do que uma análisebranca; o leitor fã de Otelo Saraiva de Carvalho lerá revelações incríveis; e o leitor...

Soares percebeu que era um político em 1942, quando entrou na Universidade. Foi republicano, antifascista, comunista ("fiquei vacinado", disse anos mais tarde), neutralista, socialista democrático, europeísta, anticolonialista (os adjectivos são seus).

Um Político Assume-se, chama-se o livro (editado pelo Círculo de Leitores), e o verbo não foi com certeza escolhido por acaso. Soares, que faz dentro de dias 87 anos, assume erros, hesitações, tristezas, desilusões. Conta episódios que passaram de dramáticos a hilariantes, faz acusações frontais, fala da dor da traição.

Os erros

É com naturalidade que Soares fala dos seus erros. Erros de análise, como não ter previsto que a II Guerra Mundial "durasse tanto tempo e que não trouxesse com ela o fim do salazarismo. Dois erros colossais..." (pág. 40), e não ter acreditado que a "ditadura caísse como um fruto podre, sem qualquer resistência" (pág. 179). Erros tácticos, como a formação do I Governo Constitucional, em 1976: "Comecei logo por um erro grave, o ter constituído um governo minoritário, sem exigir à Assembleia a votação de uma moção de confiança. Ou então não ter proposto ao PPD ou ao CDS - ou aos dois - qualquer forma de coligação. Foi um erro devido à minha falta de experiência política e administrativa que, passado um ano, facilmente reconheci" (pág.293). E outro nas presidenciais de 2006: "A seguir cometi um erro grave", conta. "Em vez de consolidar a organização da campanha e começar imediatamente a dar uma volta eleitoral pelo país, resolvi ir a França e ao Brasil contactar os nossos emigrantes" (pág. 473). E não ter, na mesma campanha, previsto o efeito negativo de ter tido Sócrates a discursar nos seus comícios. "Havia já então um efectivo mal-estar contra o Governo." Inclui também erros de excesso retórico, que foi procurar em discursos antigos: "No relatório ao I Congresso, que voltei a ler agora, há frases que só se explicam por razões tácticas e outras por alguma ingenuidade. Como defender "uma sociedade sem classes" ou "o caminho da auto-gestão para certas empresas"..."

As convicções

Com a mesma naturalidade, defende as "ideias certas" pelas quais se bateu contra-corrente e antes do tempo: acreditou "logo" no relatório de Krutchev sobre Estaline, visto por muitos como uma invenção da CIA. E reclama para si a visão clara no caos do pós-25 de Abril de 1974: "Desde o princípio achei que a Revolução dos Cravos devia ser uma revolução democrática de tipo ocidental, com três objectivos: descolonizar, como forma de pôr fim às guerras coloniais; democratizar, legitimando o poder político, segundo o voto popular; e desenvolver, aproximarmo-nos da Europa da CEE" (pág. 202).

As revelações incómodas

Cunhal, a quem Soares dedicamuitoespaço e atenção, não é nunca caracterizado com adjectivos. Em vez disso, o autor relata os episódios, os movimentos, os gestos, as reuniões, reconstrói diálogos. Em muitos casos, usa a frase "fiquei esclarecido" - que surge ao longo de todo o livro em momentos-chave, como a batuta do maestro que marca com firmeza o ritmo da música. "Estou esclarecido", vai repetindo Soares em relação a Cunhal, Marcelo Caetano, Spínola, Eanes (que acusa de "oportunismo político" e "hipocrisia", e de ser pouco entusiasta em relação à adesão de Portugal à CEE). E foi esclarecido que Soares se sentiu no dia em que Cunhal regressou a Portugal, vindo do exílio, cinco dias depois do 25 de Abril. "À saída do aeroporto estava uma pequena multidão à espera de Cunhal. E, paradoxalmente, havia um tanque estacionado. Para quê, pensei eu? Cunhal subiu para o tanque e, salvo erro, entre um soldado e um marinheiro, retirou um discurso do bolso e começou a falar. Um dirigente comunista, que não recordo quem fosse, convidou-me a subir para o tanque, o que fiz com alguma relutância, diga-se. Quando Cunhal se apercebeu que eu estava ao lado dele, disse qualquer coisa a um camarada, o qual, pouco depois me pediu para descer, porque - disse - tinha havido um equívoco. Desci com grande gosto, porque percebi o cenário: Cunhal entre um soldado e um marinheiro, em cima de um tanque, era algo que lembrava Lenine, no seu regresso a Moscovo..." (pág. 183).

As hesitações

Não há muitas hesitações nesta história. Soares surge como um homem de acção, convicto, que toma decisões sem medo, mesmo que a seguir tenha de admitir que errou. Mas há uma hesitação histórica. O seu grupo mais próximo, "quando se esboçou a hipótese da candidatura de Humberto Delgado levantou-lhe reticências várias", conta Soares. "Que diabo, fora salazarista e tinha escrito um Manual da Legião Portuguesa! Na verdade, não o conhecíamos. Vindo das fileiras do salazarismo, não o considerávamos suficientemente anti-salazarista. Jaime Cortesão era o nosso candidato natural." (pág. 80)

E as pequenas revelações inesperadas

Há muitas. Em Junho de 1974, em pleno pós-revolução, com a Europa ainda muito excitada por a longa ditadura portuguesa ter acabado e a democracia estar a nascer no país, o primeiro-ministro Palma Carlos foi com Soares, então ministro dos Negócios Estrangeiros, a Bruxelas. Num jantar onde estavam Harold Wilson, primeiro-ministro britânico, e James Callaghan, ministro dos Negócios Estrangeiros, deu-se o insólito: "Palma Carlos tinha vindo a beber whisky, desde Lisboa, porque tinha medo de andar de avião. Continuou na embaixada americana e, depois, durante os aperitivos na embaixada britânica nossa anfitriã. O tema que interessava aos nossos hóspedes era, naturalmente, a descolonização. Callaghan pediu-me para eu fazer uma rápida exposição. Fiz, acentuando a necessidade prioritária de assegurar o cessar-fogo e depois de negociar, a curto prazo, o reconhecimento à autodeterminação e as independências. Tudo parecia sem surpresas. Fomos jantar; havia vinho e mais conhaque. Aos brindes, Wilson, que também me parecia bastante alegre, resolveu fazer um brinde a Portugal por ter entrado no bom caminho da concessão das independências. Aí Palma Carlos levantou-se e disse: "Isso não é assim. As colónias são nossas e não as vamos negociar." Deve ter-se lembrado do ultimato inglês e teve uma explosão patriótica. A discussão azedou-se. Callaghan e eu tentámos apaziguá-los. Eis senão quando começam aos abraços a sublinhar a recíproca admiração. No dia seguinte ninguém se lembrava do incidente..." (pág. 208)

Nestes primeiros dias logo a seguir à revolução, Soares não parava em Lisboa. Decidido a negociar o cessar-fogo com as ainda colónias portuguesas, prepara reuniões em vários lugares. A 6 de Junho encontra-se com Samora Machel, líder da FRELIMO (Moçambique), sob os auspícios de Kenneth Kaunda, Presidente da Zâmbia, em Lusaka - no que ficou conhecido como o "abraço de Lusaka". Mas aconteceu o impensável. Conta o autor: "Spínola, à última hora, comunicou-me que viajaria comigo o major Otelo Saraiva de Carvalho. Não sabia quem era o Otelo, que até então tinha sido extremamente discreto. Perguntei ao Victor Cunha Rego [seu chefe de gabinete] se sabia quem era. Disse-me que não mas ia averiguar. Com efeito, quase à minha entrada para o avião, o Cunha Rego chegou ao pé de mim e disse-me ao ouvido: "O seu companheiro de viagem é extremamente importante: foi ele que dirigiu e planeou o 25 de Abril." Fiquei atónito. Fomos via Londres e de Londres a Lusaka. Tivemos imenso tempo para conversar e o relacionamento foi muito fácil. Simpatizámos, reciprocamente. Quando começámos as conversações - em que participaram também Samora, Chissano e outros dirigentes da FRELIMO - preveni Otelo: "Peço-lhe o favor de não intervir, deixe-me conduzir as negociações, se tiver alguma coisa para dizer, diga-me, que interrompemos a reunião e falamos a sós." No entanto, a certa altura, não se conteve e disse-me em voz alta: "Senhor Dr., não insista no cessar-fogo, a guerra está perdida, falemos de independência." Samora exultou e disse-lhe sem complexos: "Bem se vê que és moçambicano (eu não sabia que Otelo tinha nascido em Moçambique) ainda te nomeio general do nosso exército"... Interrompi a reunião e regressámos a Lisboa." Já em Belém, quando Spínola percebeu o que se passou, "começou aos gritos contra Otelo, chamando-lhe "traidor", etc. E, de repente, levantou-se e disse, peremptório: "Ponham-se na rua!" O Otelo e eu saímos, eu mais espantado do que ele. E disse-me, calmamente: "Não faça caso... O velho já não manda nada!"Fiquei elucidado." (pág. 211).

E há revelações menos divertidas, como as que se referem - de novo, e sempre - a Cunhal. Como a cena do mapa. Esse é o momento em que, para o convencer a desistir de avançar com o golpe de 25 de Novembro de 1975, Costa Gomes, então Presidente, o chama. À beira de uma guerra civil, militares comunistas tinham ocupado a RTP e anunciado a nova fase da Revolução Popular; em Monsanto, o chefe de Estado Maior das Forças Armadas fora preso pelos paraquedistas da extrema-esquerda; Lisboa estava cercada com barragens das forças comunistas em todas as saídas. "Por volta das duas da manhã tivemos a notícia que Cunhal dera ordem aos seus militantes para regressarem a casa", conta Soares. "Friamente, consciente da desproporção de forças - quando Costa Gomes lhe mostrou o mapa militar - fez recolher os comunistas e abandonou os extremistas de esquerda, à sua triste sorte." (pág.282)

Na mesma altura, Cunhal disse abertamente que não acreditava na democracia. "Cunhal, ainda eufórico, declarou que não haveria em Portugal uma democracia burguesa; o nosso caminho era outro e original", escreve Soares. "Mais tarde, numa entrevista a Oriana Falacci, uma conhecida jornalista italiana, declarou peremptoriamente: "Em Portugal nunca haverá um sistema parlamentar." Depois negou que tivesse dito essa frase. Mas a jornalista publicou um livro de entrevistas e tinha uma cassete com a voz de Cunhal... Tudo isso veio a lume." (pág. 253)

Viagem no tempo

Um Político Assume-se é uma viagem a outro tempo - através da opinião de Soares. Um tempo em que o PSD ameaçava não assinar o Tratado de Adesão à CEE, em que os governos duravam apenas uns meses e em que havia sucessivos governos de "iniciativa presidencial"; um tempo em que "Portugal era uma espécie de laboratório político que atraiu centenas de observadores, jornalistas e analistas estrangeiros, para estudarem à lupa um pequeno país."

E é um elogio à política - "uma missão pública, honrosa e desinteressada para servir a pátria e os outros", uma missão que "implica ideias, ideais, fortes convicções, vontade de servir, desinteresse pessoal, patriotismo". Soares é um político profissional e tem muito orgulho nisso.

Faz, porque Soares tem 87 anos e uma boa memória, um arco de oito décadas de história. Vemo-lo no início da sua formação política a ouvir a Rádio Madrid em casa, com a família, para acompanhar a Guerra Civil de Espanha; a seguir, aos 12 anos, a mudar para a BBC para acompanhar a II Guerra Mundial; e depois a acreditar no comunismo. Foi através de um operário das Caldas da Rainha que conheceu mineiros, operários, trabalhadores e agricultores com quem fazia reuniões à noite, em sítios esconsos, onde chegava de bicicleta. Vemo-lo a seguir o ataque a Pearl Harbour, no dia em que faz 17 anos; e, aos 24 anos, a dar um salto decisivo."Comecei a pensar pela minha própria cabeça."

Daí a frequentar assiduamente a sede da PIDE, em Lisboa, foi um passo. "Quando o Inspector Superior Sachetti me comunicou, uma noite, numa cela do fatídico terceiro andar da PIDE, que Salazar resolvera mandar-me para São Tomé e me disse: "O senhor tem andado a brincar connosco. O Doutor Salazar cansou-se. Vai para São Tomé. Será como uma pedra que se atira a um poço, nos próximos meses haverá uma pequena agitação, mas depois ninguém se lembrará mais que houve um advogado chamado Mário Soares." O pior é que eu acreditei. Mas aguentei. O que poderia fazer mais contra o meu destino?..."

Soares faz uma pausa, abre uma nova entrada e escreve: "Felizmente, Sachetti enganou-se. Percebi isso logo à partida, quando me meteram num avião da TAP, com destino a São Tomé. Pela janela, vi que o aeroporto estava em grande reboliço com pessoas, jovens e mais velhos a protestar, enquanto a polícia carregava contra os manifestantes. Percebi que se tratava de um protesto espontâneo contra a minha deportação e fiquei bem disposto. Meteram-me em 1ª. classe, para que a grande maioria dos passageiros não desse pela minha presença. Nesse tempo a TAP servia bem. Lembro-me que jantei opiparamente e que no final além do café, bebi um conhaque e fumei um charuto. Pensava que talvez fosse a última vez que o podia fazer..."

Soares estava em São Tomé, a cortar o cabelo, quando Salazar caiu da cadeira. "Um dia, estava num barbeiro local, onde os brancos raramente iam, e ouvi, num rádio que só apanhava a Emissora Nacional, um locutor de serviço ler um comunicado formal. Dizia assim: "Ontem S. Exª. o Senhor Presidente do Conselho foi operado a um hematoma cerebral. A operação correu bem e Sua Exª. está em franca convalescença." Dei um salto na cadeira e gritei, num impulso espontâneo: "O quê? Um hematoma cerebral, com 80 anos, Salazar acabou!"

Apresentação do livro Mário Soares, Um Político Assume-se

LISBOA Hoje, às 18h30, Sala Luís de Freitas Branco, CCB. Apresentam Pedro Adão Silva e Pedro Marques Lopes. PORTO 5 de Dezembro, às 18h30, Fundação Engenheiro António Almeida (Rua Tenente Valadim, 325). Apresentam Bárbara Reis e Valter Hugo Mãe.

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