"Grande parte da sociedade brasileira prefere o silêncio sobre os crimes da ditadura"

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Protesto estudantil no início dos anos 1970 contra o regime militar Agência Estado/AE/Archive

Os militares dirigiram a ditadura, mas com a colaboração de muitos civis. A recém-criada Comissão da Verdade enfrenta um tabu do Brasil

Há uma semana, em Brasília, Dilma Rousseff assinou a lei que cria a Comissão da Verdade, para apurar os crimes da ditadura instaurada pelos militares em 1964. A própria Presidente esteve presa três anos e foi torturada.

Ao contrário dos seus vizinhos, Argentina, Chile, Uruguai, o Brasil só agora se prepara para enfrentar esse buraco negro da história recente. "É inadmissível que ainda tratemos o tema da repressão como um tabu", disse há dias à Folha de São Paulo o chefe da Amnistia Internacional no Brasil, Atila Roque.

Além do tempo que demorou a ser criada, a comissão enfrenta críticas, nomeadamente por não ter poder para punir torturadores, e os familiares temem pressões de quem esteve envolvido na ditadura. Na cerimónia da assinatura previa-se que Vera Paiva, filha de um torturado, Rubens Paiva, lesse um texto, e isso foi vetado, alegadamente pela presença de militares.

Dias depois, num debate sobre Direitos Humanos, a filósofa Marilena Chauí defendeu: "É preciso fazer a "história dos vencidos". Esse é o papel da memória, e ela só pode cumprir esse papel se aquilo que vai narrar é de facto o que a sociedade fez e faz. A história do vencedor, e isso é típico no caso do Brasil, é a história do Estado."

Resta saber quem integrará a comissão. Os embates políticos só estão a começar.

Nesta entrevista, a pedido do entrevistado feita por email, o historiador Daniel Aarão Reis - coordenador do volume de uma nova História do Brasil relativo ao período 1960-2010 (ver perfil) - disseca os fantasmas que a Comissão da Verdade traz ao de cima.

A tortura foi uma política de estado no Brasil da ditadura?

A ditadura instaurada em 1964, efetivamente, teve a tortura como política de Estado. Retomou, assim, uma triste tradição presente na sociedade brasileira desde os tempos da Colónia, convertendo-a em política de Estado, como já tinha sido o caso na época do Estado Novo, outra sinistra ditadura que a sociedade brasileira conheceu entre 1937 e 1945.

Infelizmente, não é esta a avaliação que ainda prevalece na sociedade, a tortura sendo atribuída, por uma maioria, e também por muitas instituições e políticos, aos "porões" e a "excessos".

A Comissão da Verdade não vai permitir o julgamento de torturadores. Devemos interpretar isto como um sinal do poder que os militares ainda têm de impor condições?

Não se trata apenas do corporativismo dos militares, embora este aspecto seja relevante. Não se trata apenas da força e do poder remanescentes dos militares que se nutre, aliás, muito mais da timidez dos governos que se sucedem sem coragem de enfrentar esta questão. Trata-se de algo muito maior, e não gratuitamente o Supremo Tribunal Federal vem de confirmar a amnistia aos torturadores.

Vejo tudo isto como indicação de uma tendência expressiva, envolvendo segmentos sociais e lideranças políticas, personalidades diversas em todos os âmbitos. Eu diria que grande parte da sociedade ainda prefere manter esta questão sob silêncio.

A ONU pediu ao Brasil a revogação da Lei da Amnistia de 1979. O que deveria fazer o Governo?

Embora haja muitas controvérsias a respeito, vejo a Lei da Amnistia como um pacto de sociedade quando, na prática, embora não explicitamente, foram amnistiados torturados e torturadores. Em tese, pode parecer paradoxal, mas o Brasil já tinha tradição neste aspecto, firmada em 1945, quando também, na prática, foram amnistiados presos e carcereiros, torturados e torturadores. Do que se trata, portanto, a meu ver, é da revisão da Lei de Amnistia de 1979.

Chile, Argentina e Uruguai o fizeram, ou seja, reviram suas primeiras leis de Amnistia, promulgadas ainda sob forte pressão da ditadura, que se esvaía. Mas, no Brasil, por enquanto, prevaleceram as forças interessadas em manter o pacto construído em 1979.

Ora, isto coloca o país numa situação delicada no plano internacional, pois o Brasil assinou tratados internacionais considerando a tortura como crime imprescritível e ao mesmo tempo amnistia torturadores. Uma contradição insanável. Ou os torturadores não são amnistiados ou o Brasil rasga os tratados assinados.

Mesmo não tendo poder judicial, a Comissão da Verdade pode ser um passo decisivo no enfrentamento dos crimes da ditadura?

Faço votos que sim, mas não posso deixar de externar meu cepticismo. A Comissão da Verdade não tem orçamento próprio, seus convites sequer têm poder obrigatório, não tem nenhum poder judicial, o tempo dela é limitado, o número de seus integrantes é ridículo, ou seja, a boa sorte e a efectividade da comissão dependerá da boa vontade dos envolvidos. Ora, como se sabe, os militares declaram, sem sorrir, que não há documentos que comprovem as torturas em seus estabelecimentos, ou seja, não temos bons sinais deste lado. De onde virão então os bons sinais? Da acção da comissão? De seu poder de persuasão? Minhas dúvidas fundamentam meu cepticismo. Esperemos que eu esteja equivocado.

A filha de uma vítima da ditadura, Rubens Paiva, não terá discursado na cerimónia de Brasília por pressão dos militares e há sinais de cepticismo da parte de familiares atingidos. O que podem fazer?

Será que foi mesmo por causa da pressão dos militares? Ou foi em virtude da timidez das lideranças civis? Seja como foi, esta é mais uma evidência do "espírito de conciliação" que regeu a constituição da Comissão da Verdade. É o preço - alto - da unanimidade que se buscou. É provável que esta conciliação se faça à custa de algo que dá nome à comissão: à custa da verdade.

Qual a dimensão da participação civil na ditadura?

Tenho insistido muito nesta questão e, felizmente, já muitos historiadores passam a chamar a ditadura instaurada em 1964 como uma ditadura de carácter civil-militar. O silêncio sobre a participação civil, em parte derivada do emprego da expressão "ditadura militar", que eu mesmo, hélas, já empreguei, não contribui para a melhor compreensão do período ditatorial que o país viveu.

Desde a génese - pense-se nas Marchas da Família com Deus pela Liberdade - até ao fim - pense-se nas votações importantes da Arena (partido da ditadura) -, temos um quadro de participação de lideranças políticas, empresariais, eclesiásticas, sociais, além de segmentos sociais, inclusive populares, na sustentação da ditadura.

Sempre houve oposição, e importante, mas não podemos fechar os olhos aos apoios civis, decisivos em toda a trajetória da ditadura. Aliás, penso que foi mais o esvaziamento destes apoios, do que a luta contra o regime, que levou à substituição gradativa da ditadura por um regime democrático.

Quais as balizas temporais correctas da ditadura?

Em vez da periodização usual, consagrada pelo senso comum e sustentada pela preguiça intelectual, que estende a ditadura até 1985, sustento que a ditadura acabou no Brasil em 1979, com a revogação dos Actos Institucionais e a promulgação da Lei da Amnistia. A partir daí, desapareceram os instrumentos de excepção, que qualificam uma ditadura.

Defendo a ideia que, a partir de então, iniciou-se um período de transição - uma transição democrática, que se estende até 1988, quando se aprovou uma nova Constituição e se revogou aquilo que se chamava com razão o "entulho autoritário" (leis determinadas pela ditadura e incorporadas à Constituição também aprovada sob a ditadura, em 1967).

A partir de 1988, temos de facto a democracia plenamente constituída, embora possam se fazer críticas à carta constitucional.

Por que o senso comum prefere a data de 1985 para o fim da ditadura? Porque foi então que ascendeu ao poder um líder civil, ou seja, a escolha de 1985 é uma forma de consagrar a expressão "ditadura militar". A equação simplória é a seguinte: entram os civis, acabou a ditadura, dito de outro modo, saem os militares, acabou a ditadura.

Ora, o civil que ascende ao poder, José Sarney, foi um homem da ditadura, um líder civil da ditadura. Para mim, a manutenção de 1985 como data de "encerramento" da ditadura é uma operação de silenciamento, de encobrimento, da participação dos civis na construção da ditadura.

Por que é que o Brasil ainda não conseguiu enfrentar este seu passado?

No plano das instituições e das lideranças do país, devido ao corporativismo dos militares e à timidez das lideranças políticas. Mas há um plano mais geral, mais importante, de carácter social, expresso na resistência de amplos segmentos sociais em discutir este desagradável assunto.

Uma situação como a da França após a II Guerra Mundial, que não queria discutir a colaboração com o nazismo, preferindo a autocomplacência de figurar a sociedade francesa como "resistente", em sua grande maioria, à ocupação nazista.

Portugal viveu um fenómeno semelhante ao se libertar do salazarismo - quais são as obras que analisam em profundidade os fundamentos sociais e históricos do salazarismo?

No Brasil, vivemos um processo semelhante. A ditadura brasileira foi uma construção social, histórica. Mas a maioria ainda prefere imaginar que foi algo "externo", que desceu sobre a sociedade como uma nave marciana, uma chapa de chumbo que baixou sobre a sociedade, aprisionando-a, esmagando-a. Gostam de chamar os anos mais sinistros da ditadura como "anos de chumbo". Querem se esquecer que foram também anos de ouro, e não para poucas pessoas.

Que dificuldades enfrentam os historiadores que querem estudar o período? Os militares dizem que não há mais documentos por revelar.

Os historiadores têm fontes bastante expressivas para analisar o período: fontes judiciais, imprensa da época, documentação de instituições públicas, memórias dos que viveram o período, obras literárias e artísticas, canções, esportes, etc.

Claro, se os militares fossem obrigados a mostrar a documentação que eles dizem não existir, teríamos mais um continente a explorar. Mas não nos faltam documentos para analisar a época. O que falta a muitos é vontade para desenvolver ângulos inovadores e, sobretudo, para "descobrir" a ditadura como construção histórica e social. A maioria prefere estudar a "resistência", como se toda a sociedade houvesse, sempre, resistido em seu conjunto à ditadura.

Uma história para boi dormir, como se diz no Brasil, e que acalenta boas e confortáveis memórias. Dorme-se melhor com uma memória indulgente do que com uma memória atormentada.

Veja bem: o que proponho não é uma "caça às bruxas", de resto, inexistentes, o que me preocupa é elaborar uma compreensão da época... por que o Brasil teve, entre 1937 e 1979, ou seja, um período de 42 anos, duas ditaduras, ambas durando 23 anos, e que tiveram a tortura como política de Estado? Não seria o caso da sociedade brasileira pensar um pouco sobre isto? Sobre os fundamentos históricos e sociais "disto"?

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