Quando a cabeça não tem juízo

Um requintado exercício de modulação ao serviço de um olhar glacial e entomológico já não sobre corpos mutantes mas sobre mentes inquietas

Não é a primeira vez que David Cronenberg faz um filme que é, à superfície, “pouco Cronenbergiano”, e que os devotos do cineasta clamam ao desassossego e à desilusão, “olhem! O nosso homem vendeu-se, perdeu o interesse, acomodou-se”. Não é surpreendente: não queremos que os nossos heróis mudem, queremos sempre que eles sejam igualmente ousados e inovadores, mas sem se afastarem do que lhes conhecemos. E nada disto teria importância se o novo Cronenberg fosse o anunciado sonífero de prestígio, tratando-se de uma adaptação ao cinema da peça teatral de Christopher Hampton (“Ligações Perigosas”) sobre a clivagem que afastou Sigmund Freud do seu discípulo Carl Jung, nascida da atracção deste por um caso - ler-se: paciente - excepcional. Horror, horror, Cronenberg filma teatro! E de facto está tudo no seu lugar, actores impecáveis nos seus fatinhos, reconstituição de Belle Époque digna de uma série da BBC, tudo muito certinho e acomodadinho e fastidiosozinho.


E, depois, percebe-se que esse “tudo no seu lugar” é precisamente aquilo de que Cronenberg se serve para sondar a natureza humana, restituindo no processo a claustrofobia de um colete de forças social que serve de pano de fundo à libertação dos desejos e das pulsões das suas personagens. É um filme de superfícies plácidas e de inquietações subterrâneas, de extraordinária e meticulosa atenção aos pormenores - e, de facto, é só nos pormenores de um olhar, de uma palavra, de uma pausa, requintadamente sublinhados por Cronenberg como a chave desta história, que se compreende tudo o que se joga.

Um “filho” que se emancipa do “pai” profissional, um Jung a libertar-se do estigma de Freud, mas também a contradição de dois homens que procuram desfazer as grilhetas de uma sociedade rígida sem realmente se libertarem delas, de duas maneiras de ver o mundo que se opõem e, ao fazê-lo, funcionam um pouco como uma antecipação das grandes questões que sacudiram a sociedade europeia durante o século XX (o sexo, a religião, a raça, a ciência, a diferença).

Sim, “Um Método Perigoso” é um Cronenberg, no modo glacial, entomológico como esta história é contada, no modo abrupto como o cineasta ejecta tudo aquilo que é desnecessário ao seu objectivo; como reforça até a teatralidade do seu dispositivo narrativo herdado da peça de Hampton para melhor sinalizar os desejos vulcânicos que fervilham por baixo da propriedade e das boas maneiras deste mundo em transição do século XIX para o século XX. Compacto e intenso, é provavelmente o filme maior da fase pós-“eXistenZ” do cineasta, onde o fascínio cerebral pelos corpos mutantes se desviou inteiramente para a mente: veja-se como a Sabina Spielrein de Keira Knightley começa o filme numa caricatura de trejeitos e histerismos de “corpo mutante” antes de se modular progressivamente, numa mente inquieta igual de Jung (Michael Fassbender a explicar porque é que é um dos mais entusiasmantes actores contemporâneos) ou Freud (Viggo Mortensen).

“Modulação”, aliás, é a palavra-chave de “Um Método Perigoso”, a sensação de que tudo o que aqui há para dizer se revela no modo como uma frase é colocada, com uma elegância e um requinte tanto mais preciosos quanto subversivos. Pode não ser o Cronenberg que desejávamos, ou o Cronenberg que esperávamos, mas é um grande Cronenberg - e um dos grandes filmes do ano.

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