50 anos? Não dei por isto passar

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A infância de Paulo de Carvalho foi passada no bairro de Alvalade, "dividido socialmente pela Avenida da Roma" pedro cunha

O apreço por um dirigente desportivo deu-lhe o nome pelo qual Portugal o conhece. A música entrou-lhe vida dentro pela rádio e com latas de caramelos e lápis para tamborilar. Um cravo vermelho surgiu-lhe como premonição. Paulo de Carvalho celebra os seus 50 anos de carreira.

Nasceu a 15 de Maio e começou a cantar aos 15 anos. Aos 25, escreveu que "dez anos é muito tempo, muitos dias, muitas horas a cantar". Mas já está a comemorar 50 anos de carreira e, contrariando a canção, diz-nos que não deu pelo passar dos dias. Apesar dos muitos discos, canções, festivais e concertos, dentro e fora do país. Este ano foi lançado um CD/DVD para assinalar a efeméride, com o registo de um concerto gravado ao vivo no Museu do Oriente, onde ele canta a dada altura com dois dos seus filhos, também cantores: Mafalda Sachetti e Bernardo Agir. Nos últimos tempos, em ribaltas mais reservadas, tem feito vocalizos num quinteto de jazz com Carlos Barretto, José Salgueiro, João Moreira e Vítor Zamora. Ah, e fará 65 anos em 2012. Chamaram-lhe Manuel Paulo de Carvalho Costa. Quis ser Paulo de Carvalho.

O que é que o livrou de ser Manuel Costa?

Foi o facto de eu gostar muito da pessoa que era dirigente desportivo da Confederação Brasileira dos Desportos e que dá hoje nome a um estádio de São Paulo: Paulo Machado de Carvalho [1901-1992]. Isso trouxe-me duas coisas, uma boa e outra má. A má foi o meu pai ter ficado com um certo desgosto de eu não utilizar o Costa; a boa foi a grande safa no serviço militar, porque manuéis costa existiam 400 mil no quartel, de maneira que ninguém me conhecia, não era ninguém e tentava não dar nas vistas. Nunca falei com o meu pai a sério sobre isto até porque ele andava embarcado, era barman em navios de passageiros e de carga, e eu nunca tive uma conversa de pai para filho com ele. Provavelmente será uma das minhas grandes frustrações. Nunca me dei mal com ele, mas gostaria de o ter conhecido melhor. A figura presente foi sempre da minha mãe, ela estava sempre ali, filho único, ainda por cima...

O que fazia a sua mãe? Era doméstica?

Era doméstica. Eu sei que ela quando era nova tinha um trabalho que já não se usa e que ninguém já sabe o que é: ajuntadeira. Eram as pessoas que cosiam as solas à parte de cima do sapato. Depois deixou. Como o meu pai era um privilegiado (chamava-se "marítimo" às pessoas que trabalhavam nos barcos), a minha mãe deixou de ter grande necessidade de trabalhar e eu passei a ter os melhores brinquedos lá da rua.

Rua que era em Alvalade...

Eu nasci [em 1947] na fábrica dos bebés, a Maternidade Alfredo da Costa [Lisboa]. A família era toda da freguesia de São Cristóvão, onde é o largo dos Empregados do Comércio, nas costas da sede do CDS. Mas depois fizeram ali um mercado e correram com toda a gente para fora de portas. Alvalade, nessa altura, onde está hoje a estátua peninsular, era hortas. Para mim não foi problema. Tinha três anos e viver ali ou noutro lado era a mesma coisa. Difícil foi para a minha avó. Onde era a igreja para ela ir à missa todos os dias? Quantas vezes não vim com ela atravessar a Avenida da Igreja para ela ir à missa, ao Campo Grande, o que não era grande perigo porque passavam uns dois carros por hora, mas dava-me gozo porque ficava do lado fora da igreja, a brincar, até a missa acabar.

Como é que foi crescer naquele sítio?

Foi muito bom. O Bairro de Alvalade foi feito pelo Estado Novo, e muito bem feito, mas era dividido socialmente pela Avenida de Roma. Na parte de baixo estavam os empregados dos serviços, na de cima os chefes dos serviços. A única coisa que teríamos nos dois lados eram os informadores e os agentes da PIDE. Nós morávamos na Afonso Lopes Vieira, a primeira rua de quem entra na Avenida da Igreja. E as nossas traseiras davam para os pátios, onde havia ciganos e pessoas mais pobres do que nós. Mas era com eles que eu me dava. A parte de cima... era outra gente. Mas a miudagem não nota isso, mistura-se, brinca, joga a bola e faz trinta por uma linha. Da minha parte, isso sim, houve uma aprendizagem grande: nos pátios via como a roupa era estendida, com o pau no chão em lugar de ser na janela como nós já tínhamos em casa...

Isso nas ruas. E a escola primária?

Havia os centros republicanos, que eram progressistas. O Estado Novo embirrava um bocado com eles mas deixava-os existir. E eu andei no centro Alferes Malheiro, no Campo Grande. Ainda lá está a escola. Acabei ali a 4.ª classe mas, como chumbei no exame de admissão, tive a possibilidade de ir para o Colégio Moderno repetir aquela 4.ª outra vez. Depois fui para a Eugénio dos Santos fazer os dois anos do preparatório, para depois escolhermos se queríamos ir para a indústria ou para o comércio.

A sua escolha já estava feita?

Derivou do facto de terem arranjado forma de eu ir trabalhar para os seguros como miúdo dos recados. Fui para o comércio, estudar à noite, a partir das 18h, antes de ir para casa, para depois passar àquilo que se chamava "a carteira" [hoje é o quadro].

Em que companhia foi?

Era a companhia de um dos grandes homens do Norte, na verdadeira acepção da palavra, o Afonso Pinto de Magalhães. A Mutualidade.

Quando é que a música começa a entrar na sua vida?

Em casa, através da rádio. Não tínhamos gira-discos nem televisão. Íamos ao café ver. Andava-se sossegadamente na rua, às onze, meia-noite. Muitas vezes, depois de vir do café, às dez, dez e meia, a minha mãe pensava que eu estava a dormir mas eu ficava na cama com um rádio pequenito a ouvir a 23.ª Hora, o programa dos Associados, a Rádio Renascença, que na altura era do melhor que havia, com música muito variada: italiana, francesa, espanhola e anglo-saxónica, logicamente. E fui-me formando, escolhendo o que queria e o que não queria. O meu pai, mais tarde, como a carreira que ele fazia era muito Inglaterra-América do Sul, passando por Vigo, Rio de Janeiro, Montevideu, etc., trouxe-me uns discos do Brasil que, esses sim, me formaram completamente. Trouxe-me talvez o primeiro disco de um grupo que eu admiro (hoje tenho-os todos em CD, que o meu querido amigo Ivan Lins me trouxe do Japão): o Tamba Trio.

Veio daí o gosto pela bateria?

Não, a bateria teve a ver com o facto de eu não saber tocar viola. Naquela altura, quando se formavam os conjuntos, quem não sabia tocar viola ia para a bateria. Pensávamos nós que a bateria era um instrumento menor...

Como é que aprendeu, então?

É a velha história de pegar em latas de caramelos e lápis e tocar, a mão direita faz isto, a esquerda faz aquilo. Ouvindo, batendo enquanto eram horas, não podia fazer barulho porque por baixa vivia um senhor que era da PIDE e a mulher fazia chantagem com a minha mãe. Os vizinhos da frente tinham violas, juntávamo-nos debaixo do candeeiro frente à porta de casa, a cantarolar, eu fazia uma vozezitas e eles cantarolavam. Nem Beatles havia, eram os Everly Brothers, cantava-se o Tom Dooley. A vizinhança não gostava muito, era um bairro de gente trabalhadora, deitavam-se cedo. Gritavam: "Vão trabalhar, malandros! Vão dormir!" As coisas nasceram assim. Mais tarde perguntavam-nos: "Vocês pensavam na importância social dos Sheiks, por causa dos cabelos grandes?" Eu queria era miúdas e tocar bateria, queria lá saber...

No seu primeiro encontro com Carlos Mendes, com quem viria depois a integrar os Sheiks, é apresentado por ele como "muito vestido, de gravatinha"...

Porque trabalhava na companhia de seguros e foi um colega da companhia que me levou. Ele é que conhecia o Carlos Mendes, o [Fernando] Chaby, o Jorge Barreto (que era o primeiro baterista e saiu para entrar o Edmundo). Nós íamos a pé pela Almirante Reis acima, a conversar. Lógico que eu ia de gravatinha e casaco, eles não.

Os Sheiks foram formados por essa altura?

Nós já tocávamos desde 1962, eu com o meus vizinhos, o Carlos, o Chaby e Jorge como Windsors. Eles queriam continuar como Windsors, eu não quis, porque nunca gostei de continuar coisas. Ou se faz de novo ou não tem graça. Então tínhamos de escolher um nome: baseámo-nos num nome curto, com a primeira sílaba acentuada e que fosse lido em qualquer parte do mundo. Esta era a base. Mas é mentira. Porque, na nossa santa ingenuidade, pensávamos que Sheiks era lido da mesma maneira em toda a parte, isto quando em inglês se lê "xiks"! Depois vieram uns especialistas dizer que tínhamos escolhido o nome por causa do "shake" [agitar] inglês, mesmo vendo-nos de turbante, em cima de um camelo e com a palavra escrita daquela maneira...

Qual foi a primeira canção que escreveu para os Sheiks?

Eu e o Carlos éramos os compositores de serviço. Havia aqueles EP, em vinil, com duas canções de cada lado. A primeira música que eu fiz, curiosamente, foi em português. Chamava-se Velho moinho. Entra no EP do Missing you. Há um tipo que eu hoje não ouço nem compro, não gosto, mas na altura, por via de um tema instrumental, nos influenciou um bocado: o Roberto Carlos. No lado B do Calhambeque ele tinha um instrumental que era muito bonito. E eu, na altura, tinha aquela mania de fazer as coisas em português abrasileirado. Fiz O copo, A mala...

Nessa altura não estava muito preocupado com a voz...

Não, só fazia segundas vozes. Cantávamos os quatro bem, afinados, mas tocávamos mal. O Luís Villas-Boas, um dos meus mestres, que quanto mais não seja me ensinou a ouvir música, a primeira vez que me viu tocar bateria, na Sociedade Nacional de Belas-Artes, virou-se para mim e disse: "Eh pá, você a cantar não é mau de todo, a tocar é uma merda, se fosse a você, desistia já." Mas mesmo pessoas como ele, que tinha o bom hábito de saber ouvir, olhavam para nós e viam que cantávamos afinados. Mais tarde, os Sheiks foram por aí fora, há aquela ida para França...

É verdade que vos propuseram nacionalizarem-se franceses e ficarem por lá?

Não posso afirmar que seja verdade. Eu não estava ao pé quando alguém propôs isso ao Fernando Chaby. Mas essa ideia do Chaby, que é um publicitário, sempre foi, era muito curiosa. A Inglaterra tinha grupos, os Estados Unidos ainda não, tinham cantores. Mas aquilo dava muito dinheiro e os franceses não tinham ninguém. De repente, aparecem-lhes lá uns tipos que até cantavam em inglês (porque nós estivemos durante um mês numa das grandes discotecas de Paris, que era de dois monstros: o Eddie Barclay, dos discos, e a Sylvie Vartan) e houve a ideia de nos aproveitar para contrapor aos ingleses.

Mas havia o problema da tropa, não?

Esse problema estaria resolvido se o Carlos [Mendes] não tivesse querido, e muito bem, voltar para o seu curso de Arquitectura e para os pais. Quem é que tinha ido à frente, para tratar das coisas? O Rui Simões [mais tarde cineasta], na altura Rui César Simões, que até passou um mau bocado porque ele já levava a companheira com uma criança nos braços e grávida de outra, pensando que ia ficar lá, e depois teve de ir à procura de vida. Só que eu ainda não tinha percebido que conseguia cantar sozinho. Se tivesse sabido, tínhamos lá ficado, mesmo sem Carlos.

Quando é que se dá esse flash de perceber que consegue cantar sozinho?

É em 1970, com o Pedro Osório a convidar-me para o Festival da Canção. Houve uma pequena luta, com ele a tentar convencer-me a mudar a tessitura. Eu cantava cantigas da Aretha Franklin no tom dela! Agudo, superagudo, como naquele filme, o Farinelli. Ora os Sheiks tinham acabado em 1967, em 1968 estava eu naquilo a que chamo a minha universidade da música, o Thilo"s Combo. Eu era um puto de 20 anos com gajos de 40 anos, altíssimos músicos. Eles tinham um clube e tinham de alimentar aquilo para as pessoas não se irem embora e eu estava a tocar, a tocar, ainda que não ganhasse mais por causa disso. Começava às nove, nove e meia com jantares e às sextas e sábados às vezes ia até às seis da manhã, com pequenos períodos de descanso. Era sempre a abrir. Nessa altura eu já podia dizer que tocava bateria. E bem.

Mas entretanto vem a tropa...

Em Outubro de 1968. Nos intervalos da tropa, fiz o Fluido, a Banda 4... Corri Portugal continental à pala da tropa, não fui lá para fora mas corri.

E não foi lá para fora porquê?

Só soube anos depois de ter saído da tropa: o meu pai meteu uma cunha a um padre. Andei sempre a sofrer com isso, nunca ninguém me disse nada. O truque foi enviarem-me para uma especialidade que acabava naquele ano. E assim já não ia. Eu só iria com muito azar de várias pessoas: meu, e de vários gajos que teriam de morrer para eu ir. Mas estive três meses a fazer uma especialidade na Figueira da Foz. Comecei a dar-me com malta de uma banda de Viseu e da Figueira, que eram os Tubarões, e ao mesmo tempo com os Álamos de Coimbra. Acabei por ajudar a formar vários grupos. O Fluido gravou várias coisas, entre elas um texto do Dórdio Guimarães que ele escreveu no dia da primeira ida do homem à Lua, que se chama O dia da Lua. Gravámos um EP.

Mas voltemos ao Festival de 1970. Cantou o Corre Nina. Estava nervoso?

Não, estava na maior. Mas houve uma história curiosa. Nós tínhamos um cachet, que era muito menor do que o custo de um smoking. E o meu querido Melo Pereira, que já morreu, que era o grande organizador e dinamizador do festival (ele e o Luís Andrade), chegou ao pé de mim e disse-me: "O senhor não se esqueça que tem de vir de smoking." Não lhe disse nada mas pensei para comigo: ir de smoking até era giro, mas que é isso de "ter que vir"? Até gostava, mas se tenho que vir não venho. E não fui. Tiveram de me deixar cantar na mesma porque só apareci na hora de subir ao palco. Ia de casaquinho e camisa aberta, de fato cinzento.

A verdade é que voltou no ano seguinte...

Sim, em 1971, com Flor sem tempo. Mais uma vez de fato. Aí usufruo de uma campanha de marketing chefiada pelo António Rolo Duarte na Movierecord, que era a empresa da RTP. Mas havia quatro grandes cantigas nesse ano. Ganhou a Tonicha com a Menina, eu fiquei em segundo, mas em terceiro ficou uma das melhores canções da música portuguesa que é o Cavalo à solta [de Fernando Tordo e Ary dos Santos]. E em quarto lugar ficou o Duarte Mendes, um dos capitães [de Abril], com Adolescente.

Em 1972 os festivais ficaram de fora, mas mesmo assim gravou um disco com duas canções do festival, A festa das cidades e Vamos cantar de pé, esta em inglês.

Fiz-me difícil. Tinha ido fazer uma tournée a Angola com o Fernando Tordo, corri o Sul de automóvel, 4500 quilómetros na altura, fomos a tudo quanto era terra cantar, com um trio chefiado pelo José Calvário. Ele, que tinha cá deixado as coisas preparadas, tinha duas músicas para o festival. Mas eu, por telefonemas, percebi que das dez cantigas me tinham convidado para nove. De maneira que resolvi fazer-me difícil e não fui a nenhuma. Fui para a plateia ver. Mas gravei o disco, porque as editoras estavam preocupadas em ganhar. Nós, não, nós só queríamos era cantar uns com os outros.

Soube se esse disco vendeu bem?

Nunca me preocupei com isso. O primeiro disco que eu soube o que se vendeu foi uma coisa chamada Os Meninos de Huambo, em 1985.

Nesses anos gravou outro disco, um single, com duas canções em inglês escritas pelo espanhol Manolo Diaz (dos Aguaviva): Walk on the grass e Waiting for the bus.

Isso foi uma promoção para a Flor sem tempo. Eu estava na Movieplay, que trabalhava directamente com a Movierecord, da RTP. E desenvolveu-se uma campanha tal que quase que enchi o Terreiro do Paço por causa de uma flor que eu devia levar ou não levar no dia do festival [um passatempo da rádio]. E eu que vivia ao pé da Avenida de Roma, sozinho nessa altura, quando saí de casa para ir para apanhar um táxi, esqueci-me da flor. Agora veja-se o acaso de tudo isto: entro na florista Roma para comprar a flor e peço uma orquídea negra. Não havia. Então apontei para outra que lá estava e disse: é esta. O que era? Um cravo vermelho. Um acaso que seria uma premonição.

Na sequência dessa ligação a Espanha, acabou por gravar um LP lá, mas em inglês.

Isso foi o meu primeiro LP. Chamava-se Eu, Paulo de Carvalho. O que é curioso é andarmos todos, provavelmente por duas ou três gerações a cantar em inglês para tentar fazer uma carreira internacional e ela só se faz em português e com música portuguesa. A Mariza, o Carlos do Carmo, a Ana Moura, cantam em português.

Mas a ideia de cantar em inglês tinha também a ver com dar a entender a letra, não?

É verdade. O director de promoção da casa Arnaldo Trindade, que era o Carlos Cruz, só faltou bater-me (estou a exagerar um bocado) para eu cantar em inglês no Festival o E depoisdo adeus. E eu disse-lhe que não cantava. Era uma jogada.

O ano de 1972 é ainda o do Festival do Rio de Janeiro, onde você vai com a Maria vida fria...

A segunda letra, porque a primeira era Antes que seja tarde. E uma ditadura qualquer, não sei se a brasileira se a portuguesa, não deixou. De maneira que o José Niza teve de fazer a Maria vida fria a correr e eu tive que a decorar.

Nesse festival o José Afonso teve uma vaia imensa [cantaou A Morte saiu à rua]...

Mas eu também tive. Qualquer português teria, naquela altura, no Maracanãzinho, com 35 mil gajos. Acontece que o Zeca foi cantar de viola na mão com dois percussionistas. E eu cantei com uma orquestra atrás a fazer um grande barulho. E eles calaram-se. Na comitiva também ia a Laura Alves, que integrava o júri. Pouca gente refere isso. Mas esses foram dos 20 dias da minha vida mais ricos. Nunca tinha ido ao Brasil e nesses dias conheci aquele a quem hoje trato por irmão, o Ivan Lins, tive o grato prazer de ficar pregado à cadeira do clube onde estava ao ouvir o Luizinho Eça, que era o pianista do Tamba Trio, a tocar duas canções com a Elis Regina a cantar. Vi gente como o Quinteto Violado, os Novos Baianos... a música brasileira estava num período fantástico.

E em Portugal a mudança estava próxima. Em 1974 canta o E depois do adeus no festival, que pouco depois é escolhida como senha do 25 de Abril, e cai a ditadura. O que significaram os novos tempos para si, do ponto de vista musical?

Nada. Significou manter-me na mesma linha. Mas acabou a possibilidade das orquestras. E é aí que eu faço dois discos com produção e arranjos do Júlio Pereira. E começou outro tipo de músicas, já a compor muito mais as minhas coisas.

Há uma coisa que lhe é apontada como incoerência: escrever o hino do PPD e depois militar no PCP. Na verdade como sucederam essas duas coisas?

Fiz o hino do PPD a pedido da direcção do partido, música e letra ["Pão, paz, terra e liberdade..."], e o que é curioso é que é exactamente o que eu penso. Está lá, não deixam de o pôr e ainda bem. Quem falou comigo primeiro foi uma senhora, Teresa, e depois quando houve que formalizar teve de ser com a direcção, com o Sá Carneiro à frente.

E quando se deu a sua ligação ao PCP?

Em 1980. E até 1987. Não ganhei nada com isso, também. Houve pessoas que no dia 26 já lá estavam à porta e eu só entrei em 80. Teve um bocado a ver com solidariedade, injustiças. Foi depois da pior votação de sempre da APU [coligação eleitoral ligada ao PCP]. Aderi quando estavam na mó de baixo. Fui militante, com cartão e tudo. Uma das minhas frustrações foi, por disciplina partidária, não ter votado Maria de Lourdes Pintasilgo para a Presidência. Em 1987 disse que queria sair, à mesma pessoa que me recebeu, o Domingos Lopes. Uns 15 dias mais tarde, o Álvaro [Cunhal] pediu para falar comigo e eu fui falar com ele. E disse-lhe aquelas coisas todas que a gente diz aqui na rua. Foi um monólogo bestial: quinze minutos a falar e ele a ouvir. No fim só me disse uma coisa: "Só espero que no teu trabalho não percas de vista a luta do nosso povo." E disse: "Mas isso já eu fazia antes de vir para aqui." Prova de que ele não levou a mal foi ter-me convidado depois para o aniversário dele, para beber um copo.

Em 1985, já alguns anos depois disso, Os Meninos do Huambo foi disco de ouro. Como é que chegou a esta canção?

Foi o Carlos do Carmo. Ele ia muito a Angola nessa altura e era muito amigo do Ruy Mingas. Já o Summertime dos Sheiks é uma versão que era cantada pelo Ruy Mingas connosco, os miúdos, a acompanhá-lo nos cafés à noite, em Lisboa. Ora o Ruy manda pelo Carlos do Carmo uma fita de arrasto com aquela cantiga. O Carlos não deve ter percebido muito bem o que era aquilo. Mas eu, que tinha decidido pegar numa guitarra e numa viola e fazer um disco de fados, peguei na cantiga, ajeitei a letra (não fazia sentido em Portugal falar das FAPLA e do poder popular), e desatei a cantá-la. Para ver como funcionam algumas editoras: o disco chegou às 55 mil unidades e fecharam a torneira: não fabricaram mais. Só anos depois, em CD. Porquê? O senhor que estava à frente da multinacional aqui tinha de dar contas todos os anos do que vendia. Se lhe perguntavam e ele dissesse que tinha vendido 80 mil, queriam que no ano seguinte vendesse 100 mil... Tinha que dar contas ao parceiro que vinha da Alemanha.

Foi no final dessa década, em 1989, que surgiu o projecto Só Nós Três, onde se juntou a Carlos Mendes e Fernando Tordo...

Há ali um período de afastamento, em relação ao Carlos e sobretudo ao Fernando, a seguir ao Só Nós Três. Em Portugal tem havido diversos espectáculos com a importância que os seus participantes têm, na música portuguesa. Desde os Resistência ao Zé Mário com o Sérgio e o Fausto. Quanto ao Só Nós Três é um espectáculo em que todos os participantes se preocupam com todas as componentes da parte artística, ou seja: o vestir, o som, a música, o texto, o cantar. Não é só educar o povo, é fazer bem a profissão. E é nesse sentido que eu digo que este é provavelmente o mais importante espectáculo que se fez por três músicos da nossa geração.

Foi essa ideia que vos levou a retomar esse espectáculo este ano, com encerramento marcado para o Auditório dos Oceanos, em Lisboa, a 30 de Dezembro?

O espectáculo esteve 22 anos parado. Agora voltámos porque o tempo muda, nós crescemos, pensamos as coisas de uma forma que nesta altura faz sentido. Não o fizemos por termos falta de trabalho a solo, mas porque nos dá gozo. Às vezes até nos excedemos um bocado. Que ninguém pense que aquilo é um conjunto. Aquilo é o juntar de três gajos com muita importância na música ligeira portuguesa. Só, mais nada.

E os Música d"Alma, onde cantou com Vicente Amigo, Tito Paris e Filipe Mukenga, o que significa para si esse projecto, gravado quando fez 30 anos de carreira?

Há alguns discos meus dos quais gosto muito e que para mim são muito importantes. Um é esse, outro é o Alma, gravado com a Orquestra Filarmónica de Londres, e o Mátria, que é talvez o disco de que eu gosto mais, só com textos de mulheres, e ao qual eu dei esse nome por causa também de uma mulher, a Natália Correia.

Na sua carreira e nos seus trabalhos, há vários projectos onde se nota a constância da palavra vida: Vida, Uma Voz Uma Vida, 33. Vivo, agora Vivo outra vez, no título do CD/DVD que comemora em 2011 os seus 50 anos de carreira. O que é a vida para si?

É o mais importante disto tudo. Entre a profissional e a familiar, não desligo uma da outra. Eu sou o gajo que vai ao supermercado e leva os filhos à escola...

Há uma frase sua, numa entrevista, que vai nesse sentido: "A pessoa que eu sou é a mesma que faz as músicas que eu canto." É isso mesmo que quer dizer?

Na minha vida, nas relações com as pessoas, não há mentira nenhuma. Se eu estiver chateado e não me apetecer que as pessoas saibam de alguma coisa, digo-lhes isso na cara. Assim como não mostro a minha casa e a minha família, não faz sentido. Não me sirvo da minha família para vender o meu produto.

De há uns tempos para cá, as suas interpretações têm-se aproximado de vocalizos mais chegados ao jazz ou à soul, lembrando os tempos de Walk on the grass. Nessa altura, falamos de 1972, dizia ter sido influenciado por nomes como Ray Charles...

Sim, é verdade. Se tiver que escolher um cantor é o Ray Charles. Depois começo a olhar para os cantores todos e verdadeiramente os únicos cantores brancos que posso citar são o Tony Bennett e o David Clayton-Thomas dos Blood, Sweat & Tears. Não gosto do Sinatra, tal como não gosto do Elvis. Agora se falarmos do Lou Rawls, do Al Jarreau, do Stevie Wonder e, de novo, do Ray Charles, esses sim, são os meus.

Como é que alguém que escreveu numa canção, há quatro décadas, que "dez anos é muito tempo" vê agora estes 50, que é o quíntuplo desse "muito tempo"?

Não dei por isto a passar. Não me interessa o que ganho ou não ganho, o que perco ou não perco. O que me preocupa é saber com quem é que vou tocar amanhã, se é preciso fazer uma música para fulano... É sempre a questão da música. Esta comemoração dos 50 anos, em meu entender, vai ser uma luta feroz que não sei se vou conseguir ganhar. Mas é um pouco o fechar de um ciclo, para sair disparado para outro lado. Mais intimista, mais jazzístico, mas muito mais baseado em temas portugueses. Estou a acabar um disco que quero fazer já. Não será todo de originais. Há muitas cantigas de que gosto, e que poucos conhecem, que ando agora a trabalhar de outra maneira.

Disse, recentemente: "Para mim, tem sido difícil fazer futuro." Porquê?

Por causa do E depois do adeus ou dos Meninos de Huambo, não tenho direito a cantar nada de novo. Mas estou confiante de que isto vai ser um recomeço para conquistar gente nova. Gente que sabe quem eu sou mas não me conhece de lado nenhum.

nuno.pacheco@publico.pt

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