Capitão Fausto e a passada da Gazela

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Apresentemo-los: Manuel Palha (guitarra), Domingos Coimbra (baixo), Francisco Ferreira (teclas), Tomás Wallenstein (voz e guitarra) e Salvador Seabra (bateria)

Os Capitão Fausto são apaixonados pelo psicadelismo dos sessentas, mas entregam-se à divagação entre canções de refrão inteiro. São gente de aqui e de agora. “Gazela” é o seu primeiro álbum. E uma óptima surpresa

Ibiza. Terra dos sonhos para pessoas em busca de sol e de corpos disponíveis ao toque. Cidade que, diz-se, é capital da batida chunga, com lugar reservado no anedotário pop. Os Capitão Fausto não têm, aparentemente, qualquer relação com Ibiza. São uma banda rock lisboeta que nos fala de concertos incríveis dos Tame Impala e do "10000 Anos Depois Entre Vénus e Marte" de José Cid. Uma banda que intitula "Gazela" o seu recomendadíssimo álbum de estreia e que, com os seus cinco membros espalhados por um par de mesas em esplanada protegida da chuva, explica sem revelar demasiado que o irrequieto antílope é uma saudável obsessão da banda. "Há que salientar que já há cinco ou seis anos que temos isto com as gazelas". Fala Domingos, o baixista. Isto? "Gostamos muito de gazelas".

Não há que revelar tudo - tal como o não revelam as letras da banda, que são curtos quadros do quotidiano (faixa etária 19/22 anos) abertos a interpretação. Gazelas, portanto. Por elas, o teclista Francisco transformou-se em taxidermista psicadélico e, para a capa do novo álbum, desenhou uma graciosamente trespassada, mostrando vísceras coloridas, a observar-nos, misteriosa. Não há nada de "gore" na gazela. Colorido psicadélico. Coisa bonita e luminosa. Como a música dos Capitão Fausto, que, e aqui regressamos ao início, nos falam de Tame Impala e de José Cid, que não se cansam de elogiar o psicadelismo dos sessentas e o prog dos setentas, mas, atente-se, já tiveram a sua temporada em Ibiza.

"Uma senhora viu-nos num concerto em Cascais e convidou-nos para ir lá em mini digressão", conta Domingos. A "senhora" tinha hotéis lá na terra, os Capitão Fausto tocavam e dormiam nos hotéis dela. "Foi uma loucura". Sem batida "chunga". Aqueles Capitão Fausto não são estes que agora nos aparecem com um disco em que o gosto pela divagação psicadélica se conjuga com o apreço pop por essa coisa chamada canção.

Em Ibiza, os Capitão Fausto eram uma banda que tocava "Beatles, Elvis Presley, Chuck Berry, Dobbie Brothers e", riem-se, "uma [canção] de Robert Palmer". Os Capitão Fausto eram, portanto, aquilo a que se chama uma banda de "covers" - que, no contexto rock'n'roll, estão hoje classificados no grau mais baixo da escala cool. E os Capitão Fausto, pessoal entusiasmado no contar da sua história e em falar de maquetes dos Pink Floyd e dos Radiohead, confessam-no sem pudor, coisa pouco habitual desde os tempos em que os CTT, ou Conjunto Típico Torreense, deram o salto de grupo de baile para o boom do rock português e gravaram uma canção chamada "Destruição". Isto quer dizer duas coisas. Que os Capitão Fausto sabem que são bons o suficiente para que esse período a tocar canções de outros não constitua mácula. E que os Capitão Fausto, muito simplesmente, estão-se borrifando para hierarquias de "coolness".

Não são gangue, mas têm covil

A entrevista com o Ípsilon é uma conversa saltitante. A dinâmica de pergunta e resposta rapidamente dá lugar a um corrupio em que cada um dos Capitão Fausto pega na resposta de outro para a completar - e depois outro lança um aparte e já mudámos de assunto e, certíssimo, continuemos. Apresentemo-los: Manuel Palha (guitarra), Domingos Coimbra (baixo), Francisco Ferreira (teclas), Tomás Wallenstein (voz e guitarra) e Salvador Seabra (bateria).

Logo a início, Domingos pôs as cartas na mesa. Novamente, sem vestígio de pose para impressionar. Os Capitão Fausto, explica, nasceram de acordo com o "cliché de quase todas as bandas rock": amigos de longa data trocam discos, falam de discos, ouvem discos nos carros uns dos outros, arranjam instrumentos e começam a tocar. À medida que se vai desfiando o "cliché" e avançando na história, começa a revelar-se aquilo que interessa.

Este pessoal não é um gangue - são demasiado simpáticos e extrovertidos - mas, musicalmente, trabalha enquanto tal. A sala de ensaio, que foi anteriormente uma cave inutilizada na casa de Domingos, é o seu covil. Aquilo que ouvimos em "Gazela" nasceu ali, hora após hora, semana após semana - mesmo se "muito do trabalho de banda", aponta o guitarrista Manuel, "é feito fora da sala de ensaios, muitas vezes no carro do [vocalista e guitarrista] Tomás".

A música que nasceu entre carros e caves é trabalho meticuloso, trabalhado, pensado, mas em que esse lado cerebral parece ausente. São canções, senhoras e senhores, são canções construídas por gente com muitas ideias na cabeça. E por isso, num momento, a cadência das palavras leva-nos a pensar nos Mutantes com o sotaque fechado português, no momento a seguir os sintetizadores fazem a banda levantar voo em tapete mágico (movido a electricidade) e, por todo o lado, sente-se a energia anfetaminada das guitarras nervosas de uns Arctic Monkeys. "A maneira como fazemos canções é provavelmente resultado do fácil acesso que tivemos desde a adolescência a tanta e tanta música", reflecte Tomás. É música nascida do "excesso de informação" que a internet nos começou a trazer nesse passado longínquo que era o mundo há 15 anos.

O que os Capitão Fausto fizeram foi não ceder à especialização. Abraçaram tudo. "Aprender a moldar e a dar forma", continua Tomás. Faz sentido. Vejamos a salganhada de nomes elencados na carta de apresentação no Facebook: Frank Zappa, Beatles, Radiohead, Deerhunter, Can, Gentle Giant, Bela Fleck & The Flecktones, Tame Impala, Manel Cruz. Não os procurem em vão nas canções de "Gazela". Não os identificarão. Lançamos na mesa o nome de Manel Cruz. Está lá como homenagem. Os Ornatos Violeta foram uma das bandas que os "‘puxou' para o português" - curiosamente, as bandas que "puxaram" estes lisboetas estão todas a norte: Manuel Palha acrescenta Peixe:Avião e doismileoito à banda de "Capitão Romance".

Há nos Capitão Fausto em óptimo equilíbrio entre o metódico e diletante; um perfeccionismo que deixa espaço livre à procura descontraída - não por acaso, apontam a "disciplina" nas gravações como contribuição inestimável de Pedro da Rosa, o guitarrista d'Os Golpes que assumiu as funções de produtor.

"Gazela" nasceu numa nova editora chamada, curiosamente, Chifre. Nela sairá na segunda-feira "Canções Para Senhoras", o álbum a solo de Diego Armés, vocalista dos Feromona, e brevemente um EP de David Pires, baterista dos Pontos Negros.

A "Gazela", rápida, misteriosa e elegante, chegou primeiro. Ibiza está longe. A acção decorre aqui e agora. Agarrem-na enquanto puderem. Valerá a pena.

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